Índios
sofrem com o consumo de álcool
Juberty
Antônio de Souza é professor assistente no Departamento
de Clínica Médica da Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, psiquiatra pela Associação Brasileira
de Psiquiatria e mestre em Saúde Coletiva. Vem trabalhando
com populações indígenas há cerca de
10 anos, analisando o alcoolismo, diabetes e saúde mental.
A pesquisa
mais recente relata o uso de bebidas alcoólicas entre os
Kaingáng (do Paraná) e Terena (do Mato Grosso do Sul).
Foi observado que o consumo de bebidas alcoólicas tem se
intensificado entre esses grupos e, no quadro de morbidade ambulatorial,
ele aparece como principal causa da mortalidade ligada a fatores
externos, tais como, acidentes, brigas, quedas e atropelamentos.
Doenças como cirrose, diabetes, hipertensão arterial,
doenças do coração, do aparelho digestivo,
depressão e estresse, entre outras, estão correlacionadas
ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas.
ComCiência
- Os índices de consumo de bebidas alcoólicas são
semelhantes entre os Kaingáng e os Terena?
Juberty de Sousa - Entre os Kaingáng foi verificado que
aqueles que fizeram uso de bebidas alcoólicas, nos últimos
12 meses, constituem 26,8% do total. Quando verificamos este dado
em relação ao sexo, as proporções foram
de 40,1% entre os homens e 14,2% entre as mulheres. É de
se notar que estas são bem maiores do que as proporções
de consumo de bebidas em populações não indígenas.
No estudo de prevalência realizado, em 1997, entre os Terena,
foi encontrada uma taxa de 10,1% na população geral.
Entretanto, quando considerada a idade acima de 15 anos, a proporção
de alcoolistas se elevou para 17,6% na população aldeada
e para 19,7% na população vivendo na periferia da
cidade de Sidrolândia (MS).
ComCiência
- A pesquisa foi realizada em que áreas indígenas?
Sousa - No Paraná, vivem cerca de 10.000 Kaingáng
distribuídos em 17 terras indígenas (TI). A pesquisa
foi realizada na TI Apucaraninha, na região de Londrina,
onde vivem 1,3 mil pessoas. A pesquisa com os Terena abrangeu dois
locais. O primeiro local foi um conjunto de aldeias próximas
as cidades de Sidrolândia e Colônia Dois Irmãos
do Buriti, onde vivem 1.278 pessoas. O segundo foi a aldeia Tereré,
na qual 262 pessoas moram na periferia da cidade de Sidrolândia
(MS).
ComCiência
- Entre os Terena, há muita diferença de consumo de
bebidas alcoólicas entre a população aldeada
e a que vive na periferia da cidade?
Sousa - Entre o sexo masculino não há muita diferença
estatística. Os valores observados foram de 31% entre os
aldeados e 22,4% entre os não aldeados. Já no sexo
feminino, os valores encontrados na população aldeada
foram de 1,6%. Na população feminina que mora na periferia
da cidade, esta proporção pulou para 17,1%, ou seja,
uma porcentagem 10 vezes maior do que a encontrada nas mulheres
aldeadas e também maior do que a proporção
encontrada em mulheres não índias.
ComCiência
- Isso significa que quanto mais próximo das cidades mais
vulneráveis estão os índios?
Sousa - As populações estudadas mostram que sim.
Também em outros locais, com outras etnias, embora não
se tenha estudos epidemiológicos, parece que o fenômeno
se repete entre os Guarani no Mato Grosso do Sul e no Rio Grande
do Sul, entre os Maxacali no norte de Minas Gerais e ainda entre
os povos indígenas do Ceará.
ComCiência
- O contato interétnico é a principal causa no aumento
do alcoolismo entre os indígenas? Há outros fatores?
Sousa - Os outros fatores estudados também são
decorrentes do contato interétnico. Por exemplo, todos os
povos indígenas conhecidos conheciam as bebidas alcoólicas,
obtidas através da fermentação de frutas, legumes
e/ou raízes (milho, mandioca, etc), e raramente se vêem
descrições do que chamamos de dependência. É
provável até que existissem, mas não encontramos
registros. Há relatos de pessoas que abusavam das bebidas
fora dos rituais e em algumas situações eram até
condenadas à morte, mas que não era considerado como
um grande problema. Com o contato com os conquistadores, foram introduzidos
outros tipos de bebidas, principalmente as bebidas destiladas, com
maior teor alcoólico e com o incentivo de uso constante (e
não apenas nos rituais) e com isto levando à mudança
nos padrões e nos tipos de bebidas.
ComCiência
- De alguma forma, o fato do uso de bebidas em rituais facilitou
a passagem para o uso de bebidas com maior risco de dependência?
Sousa - No elemento humano de uma forma geral, há uma
tendência de ampliar uma conduta já existente. Assim,
os povos indígenas conheciam e ainda conhecem as bebidas
tradicionais e com o contato com outras etnias, através do
incentivo (implícito ou explícito), houve o aumento
do conhecimento e o uso de outras bebidas, notadamente os destilados,
e com isto aumentaram os prejuízos individuais e coletivos
nestes povos. Houve alterações nos rituais sendo usadas
bebidas destiladas, não originariamente dos povos indígenas,
e com isto facilitando as complicações delas decorrentes.
Além disso houve a propagação e aceitação,
por algumas etnias, de que a cerveja e o vinho não são
bebidas alcoólicas. Assim, algumas consideram apenas os destilados
(a pinga, a cachaça) como bebidas alcoólicas e como
tal capazes de provocarem algum prejuízo.
ComCiência - As altas taxas do alcoolismo entre os indígenas
podem ser explicadas pela genética?
Sousa - As explicações para a dependência
incluem as teorias psíquicas, as teorias sociais e as teorias
biológicas. Uma das teorias biológicas preconiza que
em algumas etnias há uma deficiência enzimática,
determinada geneticamente, que facilita o desenvolvimento da dependência
em menos tempo. Assim as pessoas do extremo oriente (Japão,
Coréia), do oriente médio (judeus), mostrariam maior
vulnerabilidade e desenvolvimento mais rápido da dependência.
Nos povos indígenas parece também haver essa vulnerabilidade,
e essa teoria fica ainda mais fortalecida em função
das evidências de que os nossos povos indígenas chegaram
no país, vindos do oriente através do Oceano Pacífico.
ComCiência
- A forma de tratar o alcoolismo entre os indígenas deve
ser diferente da população "não índia"?
Por quê?
Sousa - Há o consenso de que as pessoas devem ser tratadas
de acordo com o seu contexto cultural. Desta forma, não se
deve tratar um índio da mesma forma que é tratada
uma pessoa "não índia". Um exemplo disto
é que entre os índios Guarani, a pessoa procura dormir
sempre próximo de água corrente. Quando vem para a
Casa do Índio para ser tratado, há um sofrimento muito
grande por estar fora do seu ambiente, e as pessoas têm dificuldades
em perceber algumas dessas necessidades próprias do contexto
e terminam não ajudando a minimizar essas necessidades. Em
algumas situações bastaria abrir uma torneira, por
exemplo.
ComCiência
- Existem significados específicos para o "beber"
entre os índios?
Sousa - À semelhança dos "não índios",
entre os índios também existem significados específicos
para o beber. Em relação às bebidas tradicionais,
normalmente tinham a função de intermediar a comunicação
entre as pessoas e as diferentes divindades; em algumas etnias da
Amazônia serve para o alívio das tensões sociais
e para a resolução dos problemas do grupo. Com o contato
e as mudanças no beber, alguns dos significados também
mudaram. Assim, entre os Kaingang tem o significado de trazer alegria,
de esconder a vergonha por não conseguir falar a língua
portuguesa, servindo ainda de rito de passagem entre os jovens.
Com
Ciência - Qual a percepção que as comunidades
indígenas têm do alcoolismo?
Sousa - As comunidades indígenas, principalmente as
de contato mais prolongado, vêm tendo maior percepção
dos prejuízos individuais e sociais do uso das bebidas alcoólicas,
embora com alguma freqüência considerem que, como a responsabilidade
da introdução das bebidas alcoólicas tenha
sido dos "brancos", a responsabilidade de sanar esse problema
também seja dos "brancos". Comunidades mais organizadas
têm buscado outras formas de controle. Assim, por exemplo,
nas aldeias de Buriti, Córrego do Meio e Água Azul
dos povos Terena na região de Sidrolândia - MS, houve
um acordo de que se uma pessoa de uma aldeia estivesse bebendo em
outra aldeia, poderia ser "detido" e receber a punição
nesta aldeia, sem ser considerado como "afronta" por sua
aldeia de origem.
ComCiência
- Nas áreas indígenas existem programas de prevenção
e intervenção no consumo de bebidas alcóolicas?
O que é necessário para que se tornem eficazes?
Sousa - É recente a preocupação de uma
forma sistematizada para o controle ou do atendimento às
pessoas com problemas decorrentes do uso do álcool, embora
sempre tenham existido iniciativas nesse sentido por grupos ou organizações
não oficiais na busca da minimização dos prejuízos
individuais ou coletivos. Dessa forma há uma tradição
destes grupos no sentido de organização comunitária,
de atendimento às pessoas com problemas, de orientação
continuada aos professores e líderes na busca de formas de
enfrentamento do problema.
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