Comunidades
terapêuticas: mecanismo eficiente no tratamento de dependentes
químicos
O papel
exercido pelas comunidades terapêuticas no tratamento psicossocial
dos dependentes químicos tem sido muito importante, tanto
em nível mundial como no Brasil. No decorrer dos últimos
anos, com o crescente consumo de drogas, houve uma grande expansão
dessas comunidades no país. Os principais problemas encontrados
nessa expansão são a má qualidade de atendimento
prestado por algumas comunidades e a falta de adequação
para abrigar os dependentes em busca de tratamento. Para solucionar
esses problemas, a Federação Brasileira de Comunidades
Terapêuticas (Febract), em conjunto com a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Secretaria Nacional
Antidrogas (Senad) editaram uma resolução capaz de
regulamentar o funcionamento de todas as comunidades terapêuticas
existentes no país.
Para tratar desse tema, a revista ComCiência ouviu
o professor Saulo Monte Serrat, membro do conselho deliberativo
da Febract e representante dessa entidade na comissão responsável
por definir o papel das comunidades terapêuticas no Brasil.
Comciência
- Quando e como surgiu a Febract?
Monte Serrat - Sou professor da Pontíficia Universidade
Católica de Campinas. Há uns vinte anos era responsável
pela disciplina de pós-graduação Psicologia
Comunitária e Institucional, que estudava problemas na comunidade
como alcoolismo, violência, prostituição, marginalização
social, entre outros. Já havia trabalhado na área
social na Federação das Entidades Assistencias de
Campinas (FEAC) e na Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais (Apae), mas nunca havia trabalhado com drogas. O assunto
'drogas' estava surgindo e comecei a estudar, pensando apenas em
dar aulas. Nesse momento conheci o Padre Haroldo Rahm, um pioneiro
no assunto, que me convidou a trabalhar com ele. Nessa época
vinha muita gente para Campinas, para a Fazenda do Senhor Jesus,
em busca de tratamento. Quando retornavam para suas cidades de origem,
para retribuir o que foi alcançado aqui, fundavam outras
comunidades, algumas até com o mesmo nome: Senhor Jesus.
Acontece que, mesmo com toda boa vontade, encontravam problemas
durante o tratamento dos pacientes, pela falta de capacitação
adequada. A partir daí, passamos a nos reunir todo final
de ano aqui em Campinas, para juntos debatermos os problemas e encontrar
soluções. A Federação Latino-Americana
de Comunidades Terapêuticas, fundada em 1978, sabendo do programa
que aqui era executado e das reuniões que fazíamos
todos os anos, designou Campinas para ser sede da 1ª Conferência
Latino-Americana de Comunidades Terapêuticas. Organizamos
o evento no período de 2 a 5 de abril de 1987 com muito êxito,
inclusive com a participação de especialistas internacionais.
O principal fato percebido durante essa época foi um antagonismo
entre as pessoas que trabalhavam a linha científica e as
pessoas que trabalhavam a linha da espiritualidade de tratamento.
Eles se hostilizavam entre si. A proposta da primeira conferência
foi somar esses dois esforços. Como conseqüência,
surgiu em 1990, a Federação Brasileira de Comunidades
Terapêuticas, instituição completamente ecumênica,
que acolhe pessoas de todas as convicções religiosas
e científicas.
ComCiência
- Qual o fator motivador dessa crescente expansão no número
de comunidades terapêuticas no Brasil?
Monte Serrat - O aumento significativo de comunidades terapêuticas
é uma resposta à evolução do consumo
de drogas ilícitas por parte dos jovens. Em termos mundiais,
posso afirmar que o número de comunidades terapêuticas
é muito grande, tanto em países de primeiro mundo
como também em países de terceiro mundo. Quando os
princípios de recuperação, de resgate da cidadania,
de reabilitação física e psicológica
e de reinserção social são corretamente aplicados,
os tratamentos apresentam resultados positivos e importantes. O
objetivo é agir nos fatores psicossociais do paciente. A
aplicação de medicamentos fica por conta de comunidades
próprias para esse fim, como hospitais e clínicas.
Sob esse aspecto psicossocial, a participação da família
é imprescindível. E o quadro atual é de mudança.
Ao mesmo tempo em que o número de pessoas que ingerem drogas
ilícitas aumentou, a compreensão e o enfrentamento
dos familiares com relação ao problema melhorou bastante.
ComCiência
- Quantas comunidades terapêuticas estão em atividade
no Brasil atualmente?
Monte Serrat - O número de comunidades terapêuticas
é muito grande. As instituições filiadas à
Febract já são mais de 80, mas a nossa maior preocupação
são as comunidades clandestinas. A pessoa consegue um pedaço
de terra, tem uma idéia na cabeça de como recuperar
pessoas e abre uma comunidade terapêutica. Por esse motivo
solicitamos regulamentação, normas, fiscalização
etc. A partir de maio de 2003, nenhuma comunidade poderá
funcionar fora da resolução aprovada pela Anvisa.
ComCiência
- Como foi a participação da Febract na comissão
que discutiu a regulamentação das comunidades terapêuticas?
Monte Serrat - Como nossa preocupação era com
o mau atendimento feito por comunidades clandestinas, isentas de
fiscalização, trabalhamos pela aprovação
de uma resolução que pudesse garantir tratamento adequado
aos pacientes portadores de dependência química. Em
30 de maio de 2001, a Anvisa publicou a Resolução
RDC n° 101, estabelecendo diretrizes para o funcionamento dessas
instituições. Recentemente, discutimos o programa
que será utilizado na formação de pessoal para
atuar nas comunidades. Na Febract existe um Centro de Treinamento
criado justamente para isso.Recebemos pessoas do Brasil todo e treinamos
para que eles possam trabalhar nas comunidades terapêuticas.
Nos últimos oito anos, o curso passou por várias fases
de aperfeiçoamento para que pudéssemos ter os melhores
resultados.
ComCiência
- Como é feita a capacitação?
Monte SerratMonte SerratMonte SerratMonte Serrat - Em cada lugar
há um tipo de capacitação. No Brasil já
existe uma regulamentação que trata da capacitação
de profissionais para atuarem nas comunidades terapêuticas.
Já recebemos do MEC o novo programa que os futuros agentes
de saúde deverão cursar para trabalhar com pacientes
usuários de drogas. Eles tiveram o bom senso de dividir o
curso em módulos porque, normalmente, as comunidades terapêuticas
são pobres, e atendem a uma faixa muito carente da população.
Portanto, não dispõem de muitos recursos. Não
adianta querer formar e exigir muito de um profissional, pois quando
ele acaba o curso encontra um mercado de trabalho que não
é compatível com a formação. Na discussão
que tivemos em Brasília, sugerimos que o curso fosse formado
por vários módulos e que o profissional, a partir
do primeiro módulo, já pudesse ingressar nas comunidades
terapêuticas, exercendo funções mais elementares.
À medida que o profissional fosse completando os outros módulos
do curso poderia, então, se credenciar a exercer funções
mais elevadas.
ComCiência
- É possível quantificar o número de pessoas
que deixam de utilizar drogas a partir de tratamentos realizados
nas comunidades?
Monte Serrat - O número de pessoas que efetivamente deixam
de consumir drogas é, ainda, muito baixo. Dados estatísticos
mundiais revelam que apenas 30 a 35% das pessoas que freqüentam
uma comunidade terapêutica deixam definitivamente de consumir
drogas.
ComCiência
- Como o senhor classifica o programa comunidade terapêutica?
Monte Serrat - É preciso dizer que as comunidades terapêuticas
não se constituem no único mecanismo capaz de tratar
pessoas. Os pacientes de comunidades terapêuticas reagem de
maneiras diferentes, há inclusive os que não se adaptam
a essas comunidades e encontram recuperação nos Narcóticos
Anônimos, por exemplo. A comunidade terapêutica é
um programa muito bom, quando bem-aplicado, tanto que é encontrada
no mundo todo. A vantagem das comunidades é a flexibilidade.
Todas têm princípios e metodologias. Pode-se encontrar
uma comunidade constituída de muitos recursos materiais e
outra extremamente pobre e ambas serem terapêuticas. Basta
que apliquem os princípios e tenham pessoal capacitado.
ComCiência
- Uma grande parte do trabalho é feito de modo voluntário.
O que move essas pessoas a trabalharem dessa forma?
Monte Serrat - Nós temos uma convicção
e só isso já justifica o trabalho que fazemos. Nós
acreditamos na recuperação do dependente. Sempre acreditei
no ser humano, mas de uma maneira teórica. Depois de iniciar
meu trabalho nessa área vi que o ser humano tem uma capacidade
incrível de recuperar sua dignidade.
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