Trabalhando com biodiversidade
Conhecer a biodiversidade de uma região é uma tarefa
freqüentemente difícil, trabalhosa e demorada. Dois esforços básicos
são necessários: coletar os organismos no ambiente natural e acondicioná-los
em segurança em um local onde possam ser preservados e estudados.
Estas duas etapas básicas se desdobram em várias outras, também
complicadas.
1
- Inicialmente é necessário fazer uma prospecção no local de interesse
para saber qual é o melhor método de coleta que pode capturar os
organismos desejados. Cada grupo de organismos demanda um método
próprio de captura: é preciso montar armadilhas com iscas no meio
do mato para capturar pequenos roedores, ao passo que insetos podem
ser capturados com puçás, redes e pequenos potes de plástico. Aves
eventualmente não são capturadas, mas, sim, observadas. Um especialista
em aves pode detectar a presença de uma certa espécie na mata sem
nem observá-la, apenas ouvindo seu canto. Para coletar espécies
vegetais é preciso ter uma tesoura de poda, um alicate ou algo assim.
Para árvores não é necessário arrancá-las inteiras; apenas um ramo
com flores ou frutos. Para obter cobras é necessário um bastão comum
com um arame na ponta, através do qual se captura a cobra, que é
colocada em caixas de madeira. Enfim, cada especialista deve conhecer
seu grupo de estudo e desenvolver métodos adequados para obter os
espécimes.
2
- Posteriormente, estes espécimes são levados para o laboratório
e fixados, ou seja, recebem um tratamento para não apodrecerem.
Animais de corpo muito mole e úmido (como rãs, peixes e vários tipos
de organismos aquáticos) são conservados em álcool ou formol. Insetos
são espetados em um alfinete e guardados em ambiente bem seco, que
pode ter naftalina, para impedir a ação das traças. Esta etapa pode
parecer simples, mas não é. Insetos podem ser trazidos aos milhares
de uma viagem de coleta. Cada um deles recebe uma montagem individual
e boa parte do trabalho em um laboratório de entomologia é montar
os insetos em alfinetes. Mamíferos e aves têm que ser taxidermizados.
Neste processo se retira todo o interior (vísceras) do animal, e
ele é tratado com sais especiais que impedem a proliferação de fungos
e bactérias. Depois, é preenchido com um material de sustentação,
costurado e posicionado de forma a possibilitar uma visão bastante
fiel à de sua forma na natureza. Plantas são herborizadas:
prensadas entre folhas de cartolina ou papel de jornal e guardadas
em uma estufa, para perderem a umidade e se aplainarem. Depois de
dois ou três dias estão secas e dispostas como uma foto em um livro.
Então são guardadas em um herbário (uma sala com temperatura e umidade
controladas) para posterior consulta. Um ramo de planta tratado
desta maneira pode durar vários anos. É claro que nestes processos
perdem-se informações como a cor do animal ou de uma flor, por exemplo.
Mas o coletor que pegou o exemplar na natureza deve ter tomado nota
dessas informações e adicionado à ficha de identificação que vai
junto com o espécime.
3 - Em seguida começa uma fase complicada e que
pode durar muito mais tempo do que o imaginado: a identificação
da espécie. Identificar uma espécie consiste em atribuir ao espécime
que está sendo estudado um nome científico inequívoco e único, através
do qual se pode ter acesso às informações de que a ciência já dispõe.
Para isso, é preciso consultar dados bibliográficos sobre o animal
ou planta em questão e coleções que já possuem exemplares. A identificação
é feita quando se tem certeza de que o espécime em estudo é idêntico
a algum outro que já foi nomeado por um taxonomista. Isso inclui
semelhanças de forma do corpo, principalmente. Em aves pode-se usar
o canto. Este trabalho pode chegar a requintes de sofisticação,
como a elaboração de uma complexa terminologia anatômica para designar
as partes do corpo de uma mosca, por exemplo. Essa terminologia
é necessária quando dois especialistas têm que se referir à presença
ou ausência de certas partes do corpo da mosca para o correto diagnóstico
e identificação da espécie. Quando não se consegue atribuir um nome
já existente a algum organismo, porque ele não é semelhante a nenhum
já conhecido, significa que é uma espécie nova. Neste caso o descobridor
da espécie nova deve publicar um trabalho onde descreva detalhadamente
a anatomia dos espécimes que coletou. O trabalho deve incluir ainda
informações complementares, como a região geográfica onde a nova
espécie foi coletada, onde os organismos estavam (insetos, por exemplo,
podem habitar ocos de troncos, podem se enterrar no solo, no folhiço
da mata, podem estar em troncos de árvores vivas, nas folhas de
plantas, em cadáveres de animais...), o que faziam e horário do
dia em que foram coletados. Todas essas informações são relevantes
para que outro pesquisador interessado possa ir ao mesmo local e
coletar os animais. Outra informação muito interessante é o método
com que o pesquisador fez a coleta. Se com redes, puçás, armadilhas,
ou manualmente. Nesse trabalho o autor apresenta a espécie nova,
tornando-a conhecida da ciência. Ele deve então escolher um dos
exemplares coletados para ser o holótipo da espécie. Holótipo é
o primeiro espécime depositado em uma coleção e aquele que foi usado
no trabalho de descrição da espécie. Daí para frente, quando se
deseja saber se um animal pertence àquela espécie, é preciso compará-lo
com o holótipo. É atribuição do descobridor produzir um nome para
a nova espécie. Este nome deve ser latinizado (nomes científicos
são sempre em latim) e deve ajudar a descrever a espécie (por exemplo,
um bicho que tenha a região ventral negra, pode ser chamado de nigriventris;
uma planta com flores brancas pode ser chamada alviflora .
Ou ainda o organismo pode receber um nome que alude ao local onde
ele foi coletado, como o coral Meandrina brasiliensis. Meandrina
é o nome genérico e brasiliensis denota particularmente a
espécie. Por fim, o pesquisador que descobre uma espécie pode homenagear
alguém através da colocação do nome latinizado da pessoa no novo
organismo: é o caso do Trypanosoma cruzi (nome que foi dado
por Carlos Chagas ao agente causador da doença de Chagas) em homenagem
a Oswaldo Cruz. O nome "Cruz" é latinizado e recebe um " i " no
fim indicando homenagem, e passa a ser "cruzi". Após essas
etapas todas, o animal é depositado em uma coleção. Isso significa
que está disponível para ser estudado por especialistas, alunos
de biologia, técnicos, taxonomistas e outros. Pode ser comparado
com outros recém trazidos da natureza, para identificação. Mas este
trabalho todo, como descrito acima, deu poucas informações sobre
como estas espécies vivem na natureza e o que comem. Menos ainda
sobre qual é a abundância delas, ou seja, qual é o tamanho da população
de cada espécie. Para isso, os biólogos voltam ao campo com estratégias
ainda mais esquisitas. A avaliação do tamanho de uma população é
uma tarefa bem complicada e demanda uma matemática mais complexa.
Mas o trabalho básico de inventariar e catalogar a biodiversidade
de uma região começa com os passos acima.
Veja também o depoimento
de Marcelo Semeraro de Medeiros, participante do Projeto Revizee,
sobre o trabalho do biólogo em alto-mar.
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