Biotecnologia
transforma bases da pesquisa agrícola
Sergio
Salles-Filho e
Maria Beatriz Bonacelli
Um
dos assuntos em destaque no noticiário nacional nos últimos
meses são os resultados positivos das atividades econômicas
relacionadas à agricultura. Praticamente todos os dias há
uma notícia sobre a contribuição da agricultura
e da agroindústria à economia brasileira, seja por
conta da colheita de grãos, seja pela exportação
de suco de laranja ou de frutas tropicais, seja pela abertura de
nichos de mercados para produtos exóticos, como carne de
jacaré, rã e - esta ainda mais exótica - bode.
Os
números em geral chamam a atenção, pois se
contrapõem à maioria dos resultados apresentados em
vários outros setores da economia. A agricultura e a agroindústria
vêm, literalmente, "salvando a pátria" de
um desastre maior quanto ao baixo desempenho do crescimento do PIB
nacional.
Entretanto,
esse contexto de bons números e resultados está, em
alguma medida, ameaçado. O resto do mundo não ficará
aguardando de braços cruzados até que tomemos decisões
importantes, especialmente as relativas ao plantio e consumo de
transgênicos, e que afetam diretamente o quadro regulatório
e, portanto, as estratégias de investimento e de produção,
e as orientações para a pesquisa. Nada mais temerário
ao investidor que a falta de definições claras a respeito
das regras do jogo.
Nada
mais angustiante ao pesquisador que a indefinição
daquilo que pode ou não pode ser pesquisado, o que pode e
o que não pode ser testado, a possibilidade de perda de anos
de experimentos e do atraso no avanço do conhecimento. A
agricultura brasileira apresenta as características que hoje
a enaltecem graças a muita pesquisa. E graças às
pesquisas em biotecnologia, o que não significa necessariamente
o desenvolvimento de produto transgênico.
Este
não é mais um artigo sobre transgênicos - embora
a eles se faça referência. Este é um artigo
sobre a importância da biotecnologia na pesquisa e na produção
agrícola e agroindustrial, com maior ênfase naquilo
que diz respeito à agricultura. Engenharia genética
(que produz transgênicos) é apenas uma das ferramentas
da moderna biotecnologia, esta sim, uma vastíssima área
do conhecimento com imensas aplicações práticas
e peça fundamental para o avanço do conhecimento.
Conhecer e controlar fenômenos biológicos é
um desafio permanente, parte do processo de conquista do saber.
Nós mesmos, entes biológicos, pouco conhecemos sobre
nossa própria complexidade.
Há
cerca de vinte anos acompanhando esse tema, um dos aspectos mais
interessantes que pudemos presenciar foi a popularização
do debate. De alguma maneira, o Brasil vem acompanhando o debate
que se dá no mundo inteiro sobre o desenvolvimento da moderna
biotecnologia, com destaque aos já populares, mas ainda pouco
conhecidos, transgênicos.
Querendo ou não e por caminhos um tanto tortuosos, o Brasil
vem praticando o controle social da ciência e da tecnologia.
Ponto positivo, sem dúvida. Uma sociedade democrática
pode e deve desenvolver mecanismos de controle sobre os rumos da
ciência e da tecnologia. Entretanto, o caminho pelo qual isto
vem sendo feito poderia, talvez, ser tão bem informado quanto
apaixonado.
Melhorar
o nível do debate por meio de informação mais
bem divulgada seria um bom serviço ao nosso aprendizado.
Como sempre há um conteúdo político nesse tipo
de debate, as atitudes apaixonadas são inevitáveis
e bem-vindas. Sua força é essencial para equilibrar
um jogo que é quase sempre jogado entre desiguais. Mas, paixão
não basta, até porque seus efeitos colaterais podem
ser essencialmente negativos. O combate apaixonado e desinformado
aos transgênicos (sem entrar em qualquer mérito) pode
prejudicar o avanço em outros temas relacionados à
biotecnologia, como o próprio melhoramento vegetal e animal
e o desenvolvimento de cultivares e raças.
Na
verdade, todo o chamado pacote tecnológico da agricultura
produtivista, desenvolvido e ofertado em todo o mundo desde os anos
1960, tem como ponto de convergência e referência a
tecnologia biológica. Máquinas de plantar e colher,
fertilizantes e suas combinações, técnicas
de cultivo, pesticidas (químicos ou biológicos) etc.
convergem para as características biológicas das cultivares.
Técnicas de manejo, alimentação e nutrição,
defesa sanitária, reprodução animal etc. convergem
para características biológicas das raças.
Já se disse muitas vezes que as sementes são o principal
veículo do pacote tecnológico da agricultura, justamente
porque tudo o mais delas dependeria. De fato, há um movimento
interativo no desenvolvimento de tecnologias para a agricultura:
a pesquisa biológica interage com suas diversas formas e
com as pesquisas químicas e mecânicas gerando tecnologias
que se adaptam e fazem adaptar. Essa interação é
cada vez mais complexa. A biotecnologia vem transformando as bases
da pesquisa agrícola em todas as suas dimensões. Nesse
sentido, estamos vivendo uma revolução, ou pelo menos
uma mudança de paradigma. Aliás, estamos apenas no
início dessa mudança e nela entrando com uma boa vantagem.
Durante
os anos 1980 discutiu-se muito a importância dos países
menos desenvolvidos entrarem, de alguma forma, nas novas ondas tecnológicas.
Novos materiais, energia, microeletrônica, química
fina e biotecnologia eram algumas das áreas do conhecimento
chamadas de ponta ou portadoras de futuro (ou seja lá o nome
que se queira dar a isto). A questão era: o que é
essencialmente novo, ainda não difundido, abre oportunidades
para países mais atrasados. Havia, na verdade, a hipótese
de que ou se entra logo no início, na novidade, ou no final,
quando os custos de produção e transferência
estão amortizados (mas a rentabilidade também é
cadente). Ora, no caso de tecnologia agropecuária não
se trata nem de uma coisa, nem de outra. O sistema de inovação
na agropecuária brasileira detém conhecimento, gera
tecnologia e transforma essa tecnologia em inovação.
Talvez seja um dos únicos sistemas setoriais de inovação
do país em que haja amplo domínio e forte integração
da pesquisa à inovação, do laboratório
ao mercado.
Com
as mudanças em curso nos padrões de pesquisa biológica
- fruto da biologia molecular, de avanços na biologia celular
e da interação com outras áreas do conhecimento
-, o Brasil está diante de um desafio um pouco diferente
do de outras áreas e setores econômicos: partimos de
uma base de excelência que não é apenas científica
e tecnológica, mas produtiva e comercial. Temos um sistema
agropecuário de inovação que, embora com lacunas
a preencher e governança a ser criada, é razoavelmente
bem estruturado. Isto nos dá certa vantagem para incorporar
e desenvolver o que é novo, sem precisar sair do zero, nem
esperar pela amortização dos investimentos internacionais
nas tecnologias mais importantes. As técnicas de base biológica,
dentre as quais estão tecnologias muito além dos transgênicos,
já hoje são fundamentais na definição
de quem continuará a ser competitivo nos mercados interno
e externo.
O Sistema
Nacional de Pesquisa Agropecuária - SNPA representa o equivalente
a mais de duas "Embrapas" no país. São mais
de 5 mil pesquisadores (a maioria com pós-graduação),
mais de uma centena de centros de pesquisa (contando aqui as unidades
da Embrapa), centenas de laboratórios e salas de aulas, pesquisa
privada de bom nível em praticamente todas as culturas de
maior interesse comercial - cana, soja, trigo, laranja, arroz, café.
Cada vez mais a pesquisa é aproximada da inovação,
seja via mercado ou não.
É
falso pensar que a agropecuária é pouco incorporadora
de conhecimento. Os produtos finais, in natura, têm,
em geral, baixo valor agregado, por serem commodities produzidas
em várias partes do mundo. Mas competir nos dias de hoje,
mesmo no mercado de commodities, pressupõe uma capacitação
que não é trivial (quem nos dias de hoje ousaria dizer
que melhoramento genético é uma coisa banal?). De
outro lado, tem havido um movimento de diversificação
da produção que tem passado por estratégias
de inovação em produtos. A agricultura é fonte
inesgotável de geração de inovações
para a produção de alimentos e de matérias-primas.
A moderna
biotecnologia, em todas as suas frentes, é absolutamente
crucial para que o país não perca uma de suas maiores
conquistas no veloz e competitivo mundo da ciência e da tecnologia:
capacitação em melhoramento genético animal
e vegetal. O Brasil tem forte competência em melhoramento
genético, dentre as melhores do mundo. O trabalho do melhorista
é profundamente alterado pelas técnicas de biologia
molecular e pelas possibilidades das tecnologias de informação,
com destaque para ferramentas computacionais que permitem fantástica
aceleração do trabalho de melhoramento.
Nos
últimos 10 anos vem ocorrendo um encurtamento do ciclo de
cultivares, permitido exatamente pela combinação de
3 áreas complementares: biologia molecular, genética
e tecnologias de informação. O melhoramento de plantas
e animais já trabalha com procedimentos de alto desempenho.
Há alguns anos atrás, quando escrevemos um artigo
sobre esta questão [1],
a expectativa era de uma redução de 10 vezes no tempo
de desenvolvimento de uma nova cultivar! Ou seja, estamos efetivamente
caminhando para uma nova ordem no trabalho do melhoramento. Mais
ainda, estamos caminhando para uma nova ordem no próprio
padrão de pesquisa agropecuária.
O avanço
da moderna biotecnologia altera forma e conteúdo do desenvolvimento
científico e tecnológico. Altera a forma de se fazer
pesquisa pelos seus requisitos de escala que, sendo crescentes,
exigem a mobilização de conjuntos cada vez maiores
de competências - as redes de pesquisa e de inovação
estão no coração da organização
da biotecnologia. Altera conteúdo por introduzir um novo
universo de investigação de causas e efeitos na construção
da vida. É, ao mesmo tempo, uma transformação
quantitativa e qualitativa.
Bem,
toda grande transformação enseja dúvidas e
riscos e o que vem ocorrendo com a biologia molecular e as técnicas
decorrentes de combinação genética entre espécies
não é exceção. O ativo envolvimento
de grandes corporações multinacionais, somado às
inúmeras e desconhecidas possibilidades que se abrem com
o novo conhecimento requerem, de fato, o exercício do controle
social do desenvolvimento científico e tecnológico.
Mas como se sabe, este exercício não está nem
nunca esteve desprovido de interesses e é, por natureza,
complexo em suas razões e motivações. No caso
da moderna biotecnologia tem sido particularmente difícil
separar interesses corporativos de atitudes realmente preocupadas
com o bem-estar. Muitas vezes a geléia geral das idéias
acaba sendo um grande desserviço para fins que se pretendiam
nobres.
Atenção!
Não são apenas as grandes corporações
multinacionais que dominam as novas tecnologias de base biológica.
No caso das aplicações agrícolas, o Brasil
é um país que está muito próximo da
fronteira. A força daquelas empresas aqui é mediada
exatamente pelo fato de contarmos com uma forte estrutura de pesquisa
(pública e privada). O papel de instituições
de pesquisa como a Embrapa não se resume a produzir novas
e melhores tecnologias. A Embrapa, em algumas culturas e regiões,
regula o próprio mercado de sementes ao estimular a formação
de associações de produtores (em geral pequenos produtores
de sementes) que exploram comercialmente as cultivares desenvolvidas
e protegidas em nome da Embrapa. Se assim não fosse, aí
sim seríamos o paraíso das multinacionais. É
preciso decidir se queremos ter no país estruturas e competências
fortes e atualizadas ou não. O que está em jogo é
a construção do futuro.
Num
mundo no qual o conhecimento é o fator crítico, o
mínimo que se espera é não abdicar de trajetórias
virtuosas, como tem sido a da pesquisa agrícola brasileira.
Controle-se sim os efeitos das novas tecnologias sobre a saúde
e o ambiente, mas não se perca o controle sobre os parâmetros
que determinam o futuro.
Notas:
1. Machado, J. A. & Salles Filho,
S. L. M. (1996). Reconverter ou perecer: capacitação
em melhoramento de plantas. Anais do XIX Simpósio de Gestão
da Inovação Tecnológica, São Paulo,
Brasil. [voltar]
Sergio
Salles-Filho é professor do Departamento de Política
Científica e Tecnológica (DPCT)/IG/Unicamp e Maria
Beatriz Bonacelli, é coordenadora do Grupo de Estudos
sobre Organização da Pesquisa e da Inovação
(GEOPI), do DPCT/IG/Unicamp.
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