Segurança
alimentar no semi-árido
Malaquias
Batista Filho
A
questão da segurança alimentar e nutricional no semi-árido
nordestino não pode ser dissociada do processo estrutural de desigualdade
que deforma, historicamente, o desenvolvimento econômico e social do
país (o terceiro em má distribuição de renda do
mundo) produzindo disparidades entre regiões, entre o espaço
urbano e a zona rural e, sobretudo, entre estratos sócio-econômicos
que caracterizam a complicada e injusta pirâmide de produção
e acesso aos bens e serviços no Brasil. Sem esquecer, obviamente, as
implicações do próprio contexto internacional: a divisão
perversa dos mercados entre países ricos e pobres, como reconhece e
até denuncia, pela primeira vez, um relatório recentíssimo
das Nações Unidas (The inequality predicament). É nesta
perspectiva que o problema alimentar e nutricional do Nordeste seco deve ser
compreendido e equacionado.
Antes
de tudo é necessário considerar que o semi-árido, com
980.000 km2 e 20 milhões de habitantes, constitui a mais extensa e
mais populosa área de pobreza de todo o mundo, em termos de terras
contínuas de um só país. Mais ainda: esta grande mancha
geográfica de pobreza está comprometida por disparidades internas
cruciais, como se pode ilustrar com o exemplo do semi-árido pernambucano:
assim, no pólo irrigado de Petrolina, a renda “per capita”
anual alcança 1.500 dólares, caindo para a metade (764 dólares)
no sertão do Moxotó e para 394 dólares na microrregião
do Pajeú.
Outra
ilustração crucial desse cenário de desigualdades: o
índice de condições de vida (ICV) dos municípios
do Nordeste seco varia de 0,33 em Pedro Alcântara, na Bahia, a 0,68
como melhor condição em Caicó, Rio Grande do Norte, enquanto
no Brasil, que já tem uma situação inferiorizada no ranking
mundial (79º lugar), o ICV era de 0,81, bem acima, portanto do valor
mais elevado de Caicó. Torna-se emblemática a observação
de que, na zona rural do semi-árido, onde se concentra a grande matriz
de pobreza dessa sub-região, a principal fonte de renda da população
consiste nas aposentadorias do chamado Funrural. Usando um trocadilho: a principal
atividade econômica é a inatividade remunerada dos aposentados
por velhice, por doenças ou por apadrinhamento político. É
uma situação singular no país e, possivelmente, em todo
o mundo.
É
dentro desse contexto que o problema da insegurança alimentar e nutricional
deve ser referenciado, com suas dimensões econômicas, ecológicas,
sociais e culturais.
A
situação alimentar e nutricional
Não existem dados recentes e representativos sobre o consumo alimentar
e o valor da dieta de populações do semi-árido. Há
pouco mais de um mês concluímos os trabalhos de campo de um inquérito
sobre alimentação, estado nutricional, condições
de saúde e situação sócio-econômica de famílias
urbanas e rurais de um município intencionalmente escolhido por suas
condições de pobreza (baixo índice de desenvolvimento
humano) no Cariri paraibano: São João do Tigre. Os dados de
consumo alimentar ainda não foram processados.
Estudo
realizado há 20 anos no Cariri (estado da Paraíba) e Moxotó
(Pernambuco) evidenciava uma dieta monótona, principalmente em frutas
e verduras, item que apenas alcançava a média de 7 gramas diárias
quando se recomenda, atualmente, 450 gramas. Em conseqüência, era
baixa a ingestão de vitamina A (77% das famílias não
alcançavam o nível de 50% das recomendações).
Ressaltava-se, ainda, que este nível crítico (50% de adequação)
não era atingido por 25% das famílias em relação
à niacina, 17% para a vitamina C e 16% para o cálcio, enquanto
a adequação de calorias apresentava um déficit médio
de 10%. Trata-se, sem dúvida, de um perfil alimentar qualitativa e
quantitativamente deficiente e, ainda que possa ter melhorado no curso das
duas décadas seguintes, provavelmente ainda não atende às
recomendações básicas de uma alimentação
saudável. Com um seríssimo agravante: a principal deficiência
da cesta alimentar das populações sertanejas, ou seja, o consumo
muito escasso de frutas e verduras, fica comprometido com o uso baixo e indiscriminado
de agrotóxicos.
Em
termos de estado nutricional propriamente dito, estudos mais consistentes
e atualizados evidenciam que cerca de 12% das crianças são desnutridas
(altura deficitária para a idade), entre 16 a 55% apresentam baixo
nível de vitamina A no sangue, 25 a 45% tem anemia. No meio rural,
entre homens e mulheres adultas, 7,2% seriam desnutridos. No entanto, a epidemia
nacional de obesidade em adultos já se manifesta como um problema mesmo
no meio rural do Nordeste, principalmente entre mulheres.
Nesse
cenário, por suas conseqüências em termos de saúde
coletiva, dois problemas se sobressaem: a desnutrição em crianças,
desde que os dados do semi-árido representam os valores mais elevados
de todo o país, e a deficiência de vitamina A. Seria o quadro
mais usual, dramaticamente agravado no decurso das grandes estiagens, que
se reproduzem em intervalos de 8 a 10 anos.
Políticas
e ações mais recomendados
Algumas
proposições:
-
Preliminarmente, considerar o semi-árido tal como é: chuvas
escassas e irregulares, solos rasos e pobres, portanto, condições
desfavoráveis para as explorações agro-pecuárias
convencionais. Apenas 80.000 km2 (menos de 8% do território) representam
áreas de média e alta oferta ambiental, com razoáveis
probabilidades de uma produção regular e segura de alimentos.
Por outra parte, 354.000 km2 configuram esforços de baixa ou muito
baixa oferta ambiental, reunindo condições terrivelmente adversas
para a exploração agropecuária bem sucedida, sem precipitar
a exaustão do ecossistema. Desta forma, recomenda-se promover cultivos
alimentares e forrageiros adaptados ao ambiente como a palma forrageira
(que se presta muito bem para a alimentação humana, através
de suas folhas e seus frutos), o sorgo, a leucena, a algaroba, o umbuzeiro,
a maniçoba nativa, a cunhã, o feijão guandu, a atriplex,
o juazeiro, o aveloz, o faveleiro e outros, nativos ou importados.
-
Massificar
uma infraestrutura integrada de coleta, armazenamento e uso da água,
com tecnologia de baixo custo (cisternas caseiras, barragens submersas,
barreiros, cacimbões e poços profundos) ao invés de
sistemas de elevado custo e baixa cobertura, como açudes e a prática
de irrigação por inundação, com grande desperdício
de água e elevado risco de salinização dos solos.
-
Desenvolver
a irrigação de salvação, aplicada nos momentos
críticos dos ciclos agrícolas (floração, por
exemplo) quando ocorre grande parte das perdas parciais e até totais
dos cultivos, por conta da irregularidade das chuvas.
-
Difundir
novas alternativas alimentares (a palma forrageira, brotos e flores do gerimum
(abóbora), folhas de batata doce, atriplex, acerola, etc).
-
Racionalizar
os métodos de produção e descarte dos rebanhos (caprinos,
ovinos e aves domésticas) desenvolvendo cadeias produtivas que possam
duplicar ou triplicar a renda a partir dos patamares atuais, além
de ampliar a oferta primária de alimentos locais e multiplicar as
oportunidades de emprego.
-
Utilizar
os recursos emergenciais mobilizados na ocorrência das grandes secas
(historicamente entre 300 e 500 milhões de dólares desperdiçados
a fundo perdido) para custeio de medidas estratégicas estruturadas
(implantação de culturas resistentes as secas, formação
extensiva de recursos humanos, construção de poços,
cisternas e barragens submersas) de maneira que nas duas ou três crises
climáticas seguintes os efeitos da escassez de chuvas sejam abolidos
ou substancialmente atenuados.
-
Estimular
o desenvolvimento de cadeias produtivas que possam agregar preços
e maximizar a demanda de mão de obra (agroindústrias como
o biodisel, rações animais à base de matérias
primas locais, artesanato, turismo religioso, ecológico, por exemplo)
-
Mobilizar
o potencial de pesquisas e de ensino das universidades e outras instituições
de estudo para o desenvolvimento, adaptação validação
e difusão de conhecimentos técnicos, científicos e
humanísticos no contexto do semi-árido.
-
A
curto prazo, massificar a aplicação de vitamina A em megadoses
para controlar o problema secular da hipovitaminose A em crianças,
bem como intensificar, nos serviços de saúde, a vigilância
alimentar e nutricional dos grupos mais vulneráveis.
A
nosso ver, a insegurança alimentar e nutricional do semi-árido
deve ser enfocada menos nas limitações climáticas (escassez
e irregularidade das chuvas) e muito mais nos equívocos culturais e
políticos que podem ser representados no slogan irracional da luta
contra as secas que, desde os tempos do império, domina a mente dos
governantes e se espalha, como a força de uma profecia messiânica,
no imaginário de sua população.
Malaquias
Batista Filho é médico, membro do Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (Consea), bolsista do CNPq, docente e pesquisador
do Instituto Materno Infantil Prof. Fernando Figueira (Imip).
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