Comida
revela nossos valores culturais
“Somos
aquilo que comemos”. Essa frase, espécie de sentença moral
recorrente na fala de médicos e nutricionistas, é reveladora da
vinculação cada vez maior entre alimentação e saúde
presente na nossa sociedade. A preocupação com o corpo, o esforço
para se evitar doenças através daquilo que seria uma “alimentação
balanceada” ou mesmo o prazer à mesa sendo posto em segundo plano
em nome de uma suposta “qualidade de vida”. Tudo isso descreve a
forma como atualmente se configura a nossa relação com a comida:
o aspecto nutricional tem preponderado na nossa alimentação.
Essa
associação entre alimentação e nutrição
pode ser percebida no tipo de crítica suscitada pelo documentário
Super size me no qual a preocupação com os efeitos biológicos
da alimentação no organismo humano, através da associação
entre um certo padrão alimentar – a chamada junk food
– e a obesidade, é explícita. Se essa relação
estreita entre alimentação e nutrição é uma
característica marcante da nossa sociedade, não se pode esquecer
que comportamentos relativos à comida não são condicionados
apenas pelo seu valor nutricional. O comportamento em relação
à comida revela a cultura em que cada um está inserido.
“Na
China, por exemplo, comer no McDonald’s é sinal de mobilidade ascendente
e de amor pelos filhos. Onde quer que o McDonald’s se instale na Ásia,
as pessoas parecem admirar a iluminação feérica, os banheiros
limpos, o serviço rápido, a liberdade de escolha e o entretenimento
oferecido às crianças. Mas também percebe-se que eles gostam
mais dessas coisas do que propriamente da comida!”, lembra, num artigo
(“Comida
e antropologia: uma breve revisão”), o antropólogo norte-americano
Sidney Mintz ao afirmar que “o produto que o McDonald’s vende e
o que as pessoas compram não são necessariamente a mesma coisa,
ainda que a empresa tenha sucesso financeiro”.
Esses
comportamentos culturais variados em relação à comida do
McDonald’s – seja na China seja nos Estados Unidos de Super
size me – servem para lembrar que as representações
sociais em torno de um mesmo alimento podem variar a partir dos valores de cada
sociedade ou grupo social.
Um
exemplo dessa variação cultural pode ser notada em relação
à carne. Se para os vegetarianos ela é um alimento que deve ser
evitado por razões ideológicas – o “sacrifício”
e a morte de animais – para as classes mais pobres, uma característica
recorrente do aumento da renda e um sinal de ascensão social é
o incremento do consumo de proteína animal.
A
relação estreita entre nutrição e alimentação
– que tem criado fenômenos como os chamados “alimentos
funcionais” –
cria tabus fazendo com certos alimentos ricos em açúcar e gordura,
por exemplo, sejam cada vez mais demonizados em nossa cultura. Mas todas as
sociedades proíbem certas classes de alimentos e recomendam outras. A
criação de regras, de prescrições e proibições,
seja para a comida mas também em relação a outras atividades
– ao casamento, ao parentesco, à política, etc – faz
parte da chamada natureza humana. Por conta disso é que muitos antropólogos
têm se dedicado à antropologia da comida ou da alimentação.
Alimentos
proibidos
Se a ciência, através dos tabus e proibições criados
pela nutrição, é que tem, predominantemente, ditado as
regras e os valores em relação à comida na nossa sociedade,
não se pode esquecer das barreiras de outras ordens (religiosas, ideológicas,
folclóricas) presentes à mesa. Dentre as várias teorias,
escolas ou correntes de pensamento, dois tipos de explicação para
os tabus alimentares podem ser distinguidos na antropologia: uma de ordem mais
prática e outra que enfatiza as proibições alimentares
como operações simbólicas. Vejamos a questão da
origem da interdição da carne de porco entre os judeus.
Para
o antropólogo norte-americano Marvin Harris, os tabus religiosos em relação
à alimentação seriam regras culturais criadas a partir
de problemas de adaptação ecológica. Ao explicar a origem
do tabu da carne de porco no judaísmo no livro Vacas, porcos, guerras
e bruxas: os enigmas da cultura, Harris afirma que a criação
de suínos seria uma atividade incompatível com o nomadismo dos
pastores judeus que habitavam os desertos nos tempos bíblicos: os porcos
se alimentam diariamente, ao contrário dos animais ruminantes prescritos
pelo Velho Testamento. A proibição seria, assim, uma forma de
se impedir o consumo de uma carne cuja criação era inviável
economicamente para o grupo.
Já
para a antropóloga inglesa Mary Douglas no livro Pureza e perigo,
a proibição do consumo da carne de porco entre os judeus é
de ordem simbólica e não prática ou utilitária como
propõe Marvin Harris. A antropóloga parte da análise dos
textos do Levítico, um dos livros do Velho Testamento, para buscar aquelas
que seriam as bases dessa interdição: a restrição
à carne de porco seria expressão de um conjunto de valores da
religião judaica dos quais fariam parte noções de santidade
e de integridade. A partir dessas noções é que os mandamentos
do Velho Testamento classificam os animais que são bons para o consumo
– nesse caso, os ruminantes e de casco fendido tais como os carneiros
e as cabras – e os animais que não devem ser comidos. Nesse sentido,
seria necessário atentar não só para os animais considerados
tabus mas também para aqueles cujo consumo é recomendado.
“Note-se
que não conformar-se com os dois critérios [ruminação
e casco fendido] necessários para a definição de gado é
a única razão dada, no Velho Testamento, para evitar o porco;
absolutamente nada é dito sobre os seus hábitos de chafurdar na
sujeira. Como o porco não fornece leite, couro nem lã, não
há nenhuma outra razão para criá-lo exceto por sua carne.
E se os israelitas não criavam porcos eles não poderiam estar
familiarizados com seus hábitos”. O porco, portanto, é considerado
impuro para o consumo não por suas características ou hábitos,
mas simplesmente porque ele foge à classificação dos animais
que são bons para o consumo segundo os mandamentos do Velho Testamento.
“Eu sugiro que, originariamente, a única razão para ele
ser considerado impuro é o fato de ele, enquanto porco selvagem, não
pertencer à classe dos antílopes e que quanto a isso está
em igualdade de condições com o camelo e o texugo, exatamente
como se afirma no livro”, explica Mary Douglas.
Essa
arbitrariedade na escolha do porco revela que a seleção e a escolha
de certos animais, seja para proibir o seu consumo, seja para recomendá-lo,
não seria explicável apenas de um ponto de vista utilitário.
As regras em torno da alimentação escapam, portanto, a uma praticidade
imediata e podem variar historicamente.
Alimentos
antes desvalorizados ou cujo consumo era restrito a determinados grupos e religiões
podem ter o seu status modificado. Essas transformações em relação
à comida acompanham as mudanças que acontecem no âmbito
da própria sociedade.
Status
do acarajé
Um exemplo de mudança de status de uma comida é o acarajé,
hoje considerado como um prato característico da culinária baiana.
A comercialização do acarajé tem início ainda no
período da escravidão com as chamadas escravas de ganho que trabalhavam,
nas ruas, para as suas senhoras, desempenhando diversas atividades, dentre elas,
a venda de quitutes nos seus tabuleiros.
O
acarajé ainda é tido como um bolinho característico do
candomblé. Mesmo ao ser comercializado e consumido fora do terreiro,
o acarajé ainda é considerado, pelas baianas, como uma comida
sagrada. Para elas, o bolinho de feijão fradinho frito no azeite de dendê
não pode ser separado de sua religião. Por isso, a sua receita
não pode ser modificada e deve ser preparada apenas pelos filhos-de-santo.
Só que as baianas, cada vez mais, têm que enfrentar a concorrência
do comércio do acarajé nos bares, supermercados e restaurantes.
Mas
sua venda como “bolinho de Jesus” pelos adeptos de religiões
evangélicas – que postam Bíblias em seus tabuleiros –
é o que tem causado mais polêmica. Muitas baianas indagam-se sobre
o por quê dos evangélicos quererem vender acarajé e não
qualquer outro quitute. Para a maioria das baianas de tabuleiro, filhas-de-santo,
o bolinho é indissociável do candomblé. Porém essa
indistinção não deixa de ser, também, uma estratégia
de diferenciação de seus produtos, num contexto de concorrência
cada mais acirrada que é Salvador, uma cidade que atrai muitos turistas
por ser considerada como o locus de africanismos no Brasil, a partir dos quais
uma inegável comercialização da cultura negra tem se constituído.
Brasil
Colônia
As relações de poder, as hierarquias entre os diferentes grupos
sociais e modo como elas se configuram historicamente também perpassam
os costumes relativos à comida. Um exemplo presente na história
do Brasil diz respeito aos hábitos alimentares dos portugueses no Brasil
Colônia. A despeito das dificuldades econômicas e de transporte,
os colonizadores portugueses mantiveram o consumo do pão de farinha de
trigo, do azeite e do vinho mesmo com o comprometimento da qualidade desses
produtos ao serem trazidos de Portugal para o Brasil.
Ao
contrário da tese de que os portugueses teriam aderido rapidamente aos
costumes do Brasil Colônia devido àquilo que seria a capacidade
lusitana de assimilação de culturas diferentes, o historiador
Evaldo Cabral de Mello afirma, no artigo “Nas fronteiras do paladar”
(Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 2000) que, ao longo de todo o período
quinhentista (1532-1630), os portugueses continuaram bastante apegados aos hábitos
alimentares correntes no Reino de Portugal, procurando reproduzi-los na Colônia.
“Mesmo
quem, como no caso dos jesuítas, havia substituído o trigo pela
mandioca, só usando farinha nobre para o fabrico de hóstias, não
dispensava os outros gêneros da metrópole, como o vinho e o azeite,
para não falar do vinagre, das azeitonas, dos queijos e de outras coisas
que deviam vir de Portugal. Era raro haver almoço ou jantar, por frugal
que tenha sido, em que não se aluda ao consumo do vinho, inclusive no
tocante ao passadio dos reinóis modestos, como aqueles artesãos
de Olinda que surgem nas páginas da documentação inquisitorial
fazendo seu repasto ortodoxamente europeu de pão, carne e vinho”,
descreve o historiador.
O
desprezo dos portugueses pelos produtos locais seria explicado pelo esforço
de se diferenciar socialmente dos nativos indígenas e dos africanos.
Os colonizadores deixavam, assim, de consumir a farinha de mandioca, a aguardente
de cana e o azeite de dendê por serem esses os alimentos consumidos por
aqueles que eram considerados “inferiores”.
(CC)
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