Políticas
públicas de segurança alimentar: a necessidade de parcerias
Semíramis
Martins Álvares Domene
A
produção de alimentos para atender ao crescimento populacional
é uma preocupação secular. As primeiras teorias sobre
a capacidade de abastecimento frente às previsões de crescimento
do número de habitantes no planeta mostravam um cenário catastrófico.
Em decorrência disto, muitos recursos foram investidos na busca de fontes
alimentares alternativas, meios de produção de rações
alimentares em larga escala, entre outras propostas que atualmente tendem
a perder crédito.
A
reversão da hipótese de carência de alimentos foi determinada
pelo notável ganho de eficiência demonstrado pelo setor agroindustrial,
que em menos de meio século incorporou um salto tecnológico
traduzido na obtenção, ano após ano, de safras recordes
de produção. Dados da FAO mostram que o fornecimento per capita
de energia no Brasil passou de 2810 Kcal em 1990-1992 para 3010 kcal em 2000-2002[1],
o que representa um aumento de disponibilidade de 7%. No mesmo período
a prevalência de desnutrição caiu de 12 para 9% da população.
É
lamentável, contudo, que essa reversão não se dê
em todo o globo; ao contrário do que podem sugerir médias internacionais,
os valores desagregados mostram que em muitos países a situação
de acesso aos alimentos piorou nesse intervalo de 10 anos. Regiões
como a América Central apresentaram um aumento de prevalência
de desnutrição de 17 para 20%; na África sub-sahariana,
situações dramáticas mostram um aumento de 22,7 milhões
para 45 milhões de desnutridos, ou um salto de 36 para 55% da população
daquela região.
Esses
dados sugerem que em países como o Brasil as questões de acesso,
que até a década de 70 eram priorizadas para explicar os determinantes
da fome, parecem estar encontrando seu equacionamento. A melhoria dos indicadores
foi fortemente influenciada pelo fortalecimento dos sistemas de produção
e distribuição de alimentos, bem como pelo aumento do poder
de compra decorrente da reorientação da política econômica,
que trouxe desaceleração da inflação e crescimento
constante, embora ainda em níveis menores do que os desejáveis
frente à capacidade produtiva do país.
Esta
transformação não se dá de maneira uniforme, e
a queda anual de cerca de 8 milhões de desnutridos no mundo não
será suficiente para reduzir o número de desnutridos à
metade até 2015, fragilizando o compromisso dos países signatários
da Conferência Mundial sobre Alimentação, relizada em
1974, de garantir que todo homem, mulher ou criança esteja livre do
risco de fome e desnutrição. Mesmo no Brasil, estudos focais[2]
mostram que a distribuição desigual da pobreza, um dos mais
fortes determinantes da fome, pode ajudar a encobrir focos em que são
encontradas prevalências de desnutrição tão elevadas
quanto a observada em países como da América Central.
A
partir da perspectiva do planejamento em saúde, pode-se identificar
algumas razões para o insucesso das medidas até aqui adotadas.
Inicialmente, falta monitoramento. A implantação de um sistema
que preveja o diagnóstico, para adequado mapeamento da situação
e das necessidades alimentares da população, dos mecanismos
e das estruturas já disponíveis para ações de
intervenção, em uma perspectiva de médio e longo prazo,
depende do estabelecimento de políticas públicas concebidas
em uma perspectiva de continuidade, e com ampla participação
da sociedade e da comunidade acadêmica. No Brasil, a proposta em curso
do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional – SISVAN, encontra
dificuldades operacionais, ao propor a implantação de um protocolo
de avaliação e registro pouco familiar para a rotina dos serviços.
Há ainda o fato de que a subnotificação, já evidente
em registros na literatura, contribui para fazer dos dados oficiais um indicador
sujeito a ressalvas, uma vez que grande parte da população está
fora do sistema de saúde[3].
O
conceito sobre segurança nutricional e sua articulação
com a segurança alimentar exige a confluência de várias
especialidades, o que é, naturalmente, mais complexo[4], mas possibilita
a ampliação da temática, com a inclusão das situações
de risco derivadas de inadequações alimentares não exclusivamente
determinadas por carência.
O
Brasil é pródigo em políticas na área de alimentação
e nutrição desde que no governo Getúlio Vargas, com forte
apelo populista, foi criado o Serviço de Alimentação
da Previdência Social – SAPS, sucedido por diversas iniciativas
em que o assistencialismo era a marca identificadora, especialmente na forma
de programas de distribuição de alimentos. Embora de caráter
emergencial para dar resposta ao indivíduo faminto, o que é
absolutamente legítimo, tais iniciativas não apresentaram-se
como medidas estruturantes, tornando-se inócuas.
A
complexidade do problema exige a adoção de medidas que sejam
capazes de atender, de um lado a questões imediatas e de caráter
humanitário, como distribuir comida a quem nada tem, mas que de outro
trabalhem na perspectiva de consolidar uma cadeia produtiva que disponibilize
ao mercado alimentos em quantidade suficiente, com qualidade e baixo preço,
paralelamente ao crescimento de emprego e renda.
Neste
aspecto, enxerga-se aqui o potencial de uma aliança estratégica,
entre o estado, a universidade e o setor produtivo, para que os recursos tecnológicos
sejam colocados a serviço dos gestores públicos, a quem cabe
a implementação de iniciativas por meio da mais eficiente utilização
dos parcos recursos disponíveis no orçamento da federação,
de estados e municípios.
Embora
de indiscutível mérito por ter incluído a temática
da segurança alimentar na agenda de debates nacional, o programa Fome
Zero[5], ao assumir a associação entre fome e pobreza de maneira
contundente, mostra sua concepção em uma matriz fortemente econômica.
Sua implantação padece de deficiências de ordem logística,
sobretudo por limites para cadastramento de beneficiários, e para a
distribuição e acompanhamento do uso dos recursos por parte
das famílias[6]. A experiência até aqui indica que poderá
haver ganhos com o aprimoramento de sua interlocução com a saúde,
notadamente por meio da sinergia com o SISVAN e com o Programa de Saúde
da Família.
É
preciso “contaminar” as ações decorrentes das políticas
públicas na área de nutrição com uma visão
que permita compreender as estratégias de sobrevivência empregadas
por cidadãos muito pobres, ao mesmo tempo que dê conta de conter
o aumento das doenças crônicas. Mantidas as atuais taxas de crescimento,
a obesidade e suas complicações irão determinar ônus
crescente ao já deficitário Sistema de Saúde.
Para
ampliar o debate em torno de propostas de políticas estruturantes de
alimentação e nutrição, o Grupo de Estudos Nutrição
e Pobreza, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São
Paulo reuniu, em agosto de 2005, 25 representantes de três ministérios
(Saúde, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e Educação)
e 25 representantes de universidades, para três dias de trabalho na
oficina Diagnóstico e soluções dos problemas alimentares
e nutricionais no Brasil: formando parcerias. Os resultados deste trabalho
serão brevemente publicados, e apontam de maneira inequívoca
os avanços possíveis a partir da identificação
de medidas prioritárias concebidas de maneira articulada e com a perspectiva
de subsidiarem políticas de estado. O esforço de identificar
o potencial de contribuição de estruturas já concebidas,
evitando-se o caminho fácil de propor novas medidas inéditas
que se revelam inócuas, exige dedicação para alianças
de entidades e setores, o que não é tarefa simples. Neste sentido,
reforça-se a participação do Conselho de Segurança
Alimentar (Consea), como elemento interlocutor entre governo e sociedade.
Os
problemas a serem tratados pela política de segurança alimentar
e nutricional são conhecidos; precisamos ajustar nosso potencial de
resposta à sua dimensão, e este é o desafio.
Semíramis
Martins Álvares Domene é professora titular da Fculdade de Nutrição
da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Campinas).
Referências
[1].
FAO. The state of food insecurity in the world 2004. Monitoring progress
towards the World Food Summit and Millennium Development Goals. Rome,
2004.
[2].
FERREIRA, H. S.; ALBUQUERQUE, M. F. M. e SILVA, R. Perfil antropométrico
da população residente em invasão do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). Porto Calvo, Alagoas-Brasil. Revista de Epidemiologia,
vol. 2, 1996, p. 114.
[3].
SAWAYA, A.L.; SOLYMOS, G.M.B..; FLORÊNCIO, T.M.M.T. Os dois Brasis:
quem são, onde estão e como vivem os pobres brasileiros. Estud.
av., Ago 2003, vol.17, no.48, p.21-44.
[4].
LOBSTEIN, T. Food Policies: A threat to health? Proc Nutr Soc 2002,
nov., 61(4), pp. 579-585.
[5].
INSTITUTO CIDADANIA. Projeto Fome Zero. Uma proposta de política de
segurança alimentar para o Brasil. São Paulo, 2001. 118 p.
[6].
YASBEK, M. C. O programa Fome Zero no contexto das políticas sociais
brasileiras. São Paulo Perspec., Jun 2004, vol.18, no.2, p.104-112.
Semíramis
Martins Álvares Domene é professora titular da Fculdade de Nutrição
da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Campinas).