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Parábola do Cão Digital Carlos Vogt I O poeta Rainer Maria Rilke define, no poema "O Cão", com poucas palavras, o que considera o essencial da condição canina: "nem excluído nem incluído". É assim que Roger Grenier, autor do livro Da dificuldade de ser cão inicia o capítulo "Um Olhar de Recriminação" em que trata das relações entre o poeta e esses ternos (quando ternos) animais domésticos a quem reprova, sobretudo, o fato de que suas vidas não durem tanto quanto a dos humanos. O que dizer, então, deste outro animalzinho social - o homem digital - criado pelo aparato tecnológico da chamada sociedade da informação que, ao contrário do cão do poeta, é "excluído ou incluído", sem termo médio possível? De fato, uma das obsessões programáticas dos teóricos idealizadores da sociedade da informação é o firme desígnio da inclusão digital das populações do planeta, pela universalização do acesso ao uso dos computadores e às facilidades eletrônicas que as suas redes mundiais proporcionam. É o que se pode ler, por exemplo, às pp. 9 e 10 do documento Ciência e Tecnologia para Construção da Sociedade da Informação, de 1999, do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), da Presidência da República quando, a propósito do paradigma da sociedade da informação, traz anotado: "Diante da incerteza social sobre a dimensão e o ritmo de inclusão dos brasileiros na nova consciência psicossocial que a Sociedade da Informação acarreta, a tarefa do governo brasileiro é a de criar condições para que haja crescente confiança pública nesse novo contexto social. Isso está, por exemplo, diretamente relacionado com os referenciais de proteção à privacidade individual, assim como de segurança nos fluxos de informações comerciais, financeiras, científicas e tecnológicas, dentre outras, e no armazenamento dessas informações por indivíduos e organizações de natureza pública e privada". No Livro Verde da Sociedade da Informação no Brasil, publicado em setembro de 2000, os números da inclusão social no "letrismo" digital não eram muito instigantes, embora se pudesse ver um quadro de evolução dos serviços públicos e privados com ofertas de facilidades ao cidadão antes desconhecidas. De fato, conforme pude escrever no artigo Informação e Simulacro que abre a edição nº 19, de março da 2001, da revista ComCiência, dedicada ao tema, o Brasil, mesmo que situado entre os 12 países mais bem posicionados, tem apenas 5% de sua população como usuária dos serviços de rede, com um grande déficit de meios físicos para acesso à Internet, poucos conteúdos em português (85% deles são em inglês), um número muito pequeno de telecentros para uso público e metas ainda tímidas realizadas pelos projetos governamentais de informatização das escolas públicas, considerando-se que menos de 4% das 165 mil escolas de ensino fundamental estavam, então, conectadas. II Mudou muito este quadro, no transcurso do último ano? Nem tanto, embora os serviços disponíveis para uma pequena parcela da população continuem a melhorar, oferecendo facilidades e presteza, pelas quais, em geral, os usuários, é claro, sempre pagam. Deixando de lado a relação, que não é pequena, dessas conquistas que pude também mencionar no artigo acima citado, o fato é que a "rede das redes", mesmo com acesso absoluto limitado - variando o percentual da população digitalmente incluída proporcionalmente à riqueza de cada país - acabou, pelos limites físicos, lógicos e tecnológicos dos sistemas em funcionamento e, pelo relativo grande afluxo de seus utilizadores, chegando a limitações incompatíveis com a ideologia do igualitarismo informacional propugnado pela Internet no processo de crescimento e expansão. Como constatou a revista Scientific American, em reportagem especial de março de 1997, "a Internet, como todo mundo que tem um modem sabe, foi vítima de seu próprio sucesso". Nascida como um sistema de comunicações para usos estratégicos do governo, ou seja, para permitir estratégias de comunicação alternativas às que se conheciam até o final dos anos 1960 e, num segundo momento, voltada ao ensino e à pesquisa nos EUA, onde nasceu, a Internet, alcançando interesses comerciais mundo afora, universalizou suas finalidades e utilizações mas restringiu sua capacidade como instrumento de ensino e pesquisa e selecionou, entre o grande público, os beneficiários de seu ambicioso e retórico programa de inclusão social informatizada. Em 1994, os usuários comerciais da Internet já eram o dobro dos usuários acadêmicos e, no ano seguinte, a National Science Foundation decidiu desativar o backbone NSFNCT, não sem antes tomar medidas para garantir a continuidade da Internet. Entre essas medidas, aquela que, em parceria com a empresa MCI, possibilitou, por cinco anos, um investimento de US$50 milhões para que a MCI operasse um novo backbone experimental de alta velocidade, o UBNS ( "Very High Speed Backbone Network Service"). A insatisfação da comunidade de ensino e pesquisa com os serviços da Internet, então crescente, faz com que, em 1996, duas iniciativas marquem o surgimento de uma nova etapa no desenvolvimento das tecnologias de informação e das tecnologias de rede: a Internet 2 e a Next Generation Internet (NGI), constituindo consórcios de várias universidades e empresas do setor e anunciando poderosos investimentos governamentais com vistas a aumentar a capacidade inteligente do sistema, não só do ponto de vista físico, mas sobretudo lógico e tecnológico, ou seja, implementar e potencializar a sua racionalidade informacional e comunicativa. Para permitir o uso da Internet para fins de ensino e pesquisa era preciso acelerar e fomentar a pesquisa em Internet e em novas tecnologias de informação e comunicação de um modo geral. Essa circularidade das relações entre a pesquisa em informática e a informatização da pesquisa, no sentido amplo e no sentido específico dessa área de conhecimento foi universalmente representada no chamado modelo da espiral tecnológica, criado pelo professor Ivan Moura Campos para representar, como se pode ver na figura abaixo, o movimento da evolução da Internet, que nascendo como um programa de pesquisa e desenvolvimento (P&D), expande-se para o uso comercial e é retomada, agora já num ponto tecnologicamente avançado, para um nosso ciclo de P&D. É neste ponto que nasce a Internet 2.
III O governo brasileiro, tendo aderido ao programa da Internet 2, lançou, em 1999, através do Conselho e Ciência e Tecnologia (CCT), da Presidência da República, o documento Ciência e Tecnologia para a Construção da Sociedade da Informação, a que acima nos referimos e, em setembro de 2000, o Livro Verde da Sociedade da Informação, também aqui referido, engajando-se no esforço de cumprir científica, tecnológica e socialmente, no país, as grandes tarefas propugnadas pelo programa americano. A RNP2, em âmbito nacional e a Advanced ANSP (Advanced Academic Network São Paulo), mantida pela FAPESP, no estado de São Paulo, conduzem as iniciativas de pesquisa e desenvolvimento contidas no projeto. Passos importantes têm sido dados, embora do investimento ambicioso de R$ 3,4 bilhões entre 2000 e 2004, num dispêndio anual de R$ 850 milhões anunciados pelo governo federal, não se verão mais do que R$ 69,818 milhões efetivamente aplicados. O caso da rede ANSP, porque ligada à FAPESP e porque objeto programático das ações sempre bem planejadas, estruturadas e operacionalizadas pela Fundação, tem mostrado avanços mais consistentes e sistemáticos no âmbito das finalidades de ensino e pesquisa próprias da Internet. De qualquer modo, o "abismo digital" que separa os que têm e os que não têm acesso à Internet continua grande, profundo, mas sondável, mais ou menos na linha do artigo do jornalista Robert J. Samnelson, do Washinton Post, publicado no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, de 24/03/2002, p. B6, do Caderno de Economia, para quem não há relação mecânica entre as taxas de desemprego e o analfabetismo tecnológico das populações. Claro que o domínio das tecnologias de informação e comunicação constituem, cada vez mais, um requisito indispensável na formação dos jovens para sua habilitação profissional num mercado extremamente competitivo e transnacionalizado. O mesmo ocorre com a necessidade de seu domínio da expressão lingüística em sua língua materna e em pelo menos duas grandes línguas "francas" internacionais, como é hoje o caso do inglês e do espanhol. Se tiver o domínio das matemáticas estará, então, preparado para concorrer nas primeiras fileiras dos que disputam seu lugar ao sol. Mas a grande multidão dos que hoje não tem emprego e padecem da anorexia que tomou conta dos programas sociais dos governos pelo mundo se deve, de fato, à velha dama indigna da má distribuição da riqueza e da injustiça social. Sem o compromisso dos governos com a retomada do Estado de Bem Estar Social, nem a plena, plana e generalizada educação informacional trará conforto à sociedade, nem a sociedade, por mais incluída que esteja, virtualmente, na democracia digital da informação, deixará de permanecer, realmente, excluída do acesso, não só aos bens de consumo, mas às condições de desenvolvimento cultural humanístico que deve continuar a ser a utopia e o traço distintivo do homem em sua humanidade. IV Bem, mas de que é feita a humanidade do homem? De muitos predicados. Bons e maus. Nem bons nem maus, a exemplo de nosso herói Macunaíma, sem nenhum caráter. No caso da humanidade digital do homem tecnológico poder-se-ia dizer, para contrapô-la - uma das formas lógicas da definição - ao cachorrinho poético de Rilke, que o que a define é a contrariedade entre a inclusão e a exclusão sociais, enquanto que a "caninidade" do cão seria, nesse triângulo de contrários - para usar as categorias do pensamento formuladas pelo lógico francês Robert Blanché -, o termo médio da oposição: nem incluído nem excluído, da mesma forma que indiferente, ou facultativo estão para o obrigatório e o proibido, ou o amoral, para o moral e o imoral, ou ainda o amarelo para o verde e o vermelho, nos sinais de trânsito, significando "nem pare, nem siga". Desse modo, o cão, que jamais virá a ser socialmente digital, não sendo passível de nenhuma espécie de alfabetização, muito menos a tecnológica, além da importância que sempre teve na história afetiva de nossas vidas, constitui-se também num ícone de sábio ceticismo para a definição da nova humanidade do velho homem, ou da velha humanidade do novo homem e de todas as outras combinações possíveis com que gostosamente vamo-nos iludindo de esperanças. |
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Atualizado em 10/02/2002 |
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