Sobre qualificações e competências
Rogerio Valle
Falar em qualificação, agora, é out. O in é falar em competências. Qual a diferença, além da volátil sensação de estar na moda?
A literatura internacional fala em qualificação para designar, basicamente, um potencial cognitivo que:
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foi obtido, quase sempre, em instituições de formação profissional;
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foi legitimado através de uma certificação pública, estatal ou privada;
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é reconhecido nas negociações e contratos de trabalho (classificação, remuneração, etc.).
A outra noção, por sua vez, sempre aparece associada ao desempenho. Ou seja: quando se ouve a palavra competência, pode-se ter certeza de que o assunto são os resultados do trabalho. A novidade é que, recentemente, esta noção tenha passado a ser o eixo de uma nova proposta administrativa, que veio reconfigurar o estagnado cenário teórico dos "recursos humanos": a gestão de competências. Apresenta-se como uma negação (na prática, mais retórica do que real) da análise de cargos e, num salto ainda maior, dos planos de cargos e salários, ambos instituídos na fase áurea do fordismo. A operação se dá em dois momentos. Primeiramente, temos uma espécie de mapeamento das características e habilidades do indivíduo nos campos cognitivo, psicomotor, relacional, emocional, social e tudo mais o que se queira. Tarefa, logo se vê, bastante complicada. O passo seguinte é organizar a evolução dessas características e habilidades individuais, através da definição de roteiros que, associados a promoções ou coisas parecidas, guiem os esforços de aprimoramento profissional.
Não demorou muito a surgir a idéia de que esse mapeamento fosse realizado por órgãos externos às empresas, de modo a que os atestados que dele resultassem tivessem uma validade mais genérica. Tantos foram os atores a promover essa idéia (técnicos de organismos e bancos internacionais, funcionários públicos, dirigentes de organizações patronais e sindicais e mesmo porta-vozes de empresas), que podemos falar de um verdadeiro "movimento ideológico", pretendendo regular o mercado de trabalho interno e externo das empresas. Seus resultados, no entanto, são decepcionantes. Após mais de uma década de discussões, os sistemas nacionais de certificação não deslancharam (exceto, talvez, no Reino Unido). O que tem vingado, isto sim, é a atestação das competências dentro das empresas. Mas as dificuldades, aqui também, são enormes. Os casos de fracasso começam a se multiplicar. Eles resultam da omissão de uma consideração básica: certificados são, antes de mais nada, documentos assinados, isto é, documentos onde alguém proclama algo sobre alguém. Sua validade está sempre condicionada ao prestígio de quem atesta. Por exemplo, sabe-se que a certificação de empresas pela ISO 9000 passa atualmente por uma discreta "crise de legitimidade": como vários órgãos certificadores perderam credibilidade (por exemplo, prestando consultoria a empresas que depois irão auditar), os profissionais e as empresas passaram a associar o valor dos certificados de seus fornecedores à reputação do órgão que os emitiu. Um outro exemplo interessante é o caso do CTC de Recife, escola alternativa cujo diploma vale, em sua região, tanto ou mais do que o do Senai. Mesmo quando a credibilidade de quem diz a certificação é claramente reconhecida, há um outro problema: trata-se de atestados específicos e provisórios. Sob esse aspecto, a única instância que pode dizer a certificação de competências com voz clara e indiscutível é, em última análise, a própria comunidade de trabalho, conceito que não coincide com o de empresa (malgrado todo o blá-blá-blá da literatura apologética).
No fundo, o que está em jogo é retirar a gestão dos conhecimentos produtivos das mãos do aparelho escolar e transferi-la para as empresas, ou para novos órgãos específicos. Há certos aspectos compreensíveis nesta intenção, mas é preciso ver os limites de tal mudança. O processo de qualificação dos trabalhadores exige um campo educacional formal, solo ainda fertilíssimo para o desenvolvimento do potencial de competências de cada futuro trabalhador. Há, é verdade, a questão da experiência. O movimento pelas competências reivindica o reconhecimento da experiência do trabalhador: mesmo um trabalhador que nunca freqüentou escolas pode receber um certificado, atestando seu valor profissional. Mas, ao opor escola (diploma) e experiência (certificado de competências), ele ignora que a primeira pode atuar como um espaço de ampliação da visão de mundo dos sujeitos, logo, de bloqueio às experiências fechadas em si. Aliás, a valorização da experiência do trabalhador não é uma idéia nova: no pós-68, ela era defendida pelos que a opunham ao "saber dominante" do taylorismo, da escola ou do partido. É irônico vê-la reaparecer na fala de empresários, gerentes, policy makers e técnicos de organismos internacionais. Em todo caso, a experiência não é apenas um saber tático, contrastando com o saber teórico. Ela constitui e é constituída por ambos. Se não for fecundada teoricamente, a experiência é estática e insuficiente para os atuais desafios. Conhecimento informal e conhecimento formalizado não são conflitantes, mas se alimentam e se criticam reciprocamente.
A valia do que hoje se chama saber tácito (savoir-faire) está na sua capacidade de tomar uma parcela da cultura técnica (conhecimento enciclopédico e de fundo, arquivado na memória de longo prazo das pessoas) e ativá-la, isto é, trazê-la à memória presente (operacional e temporária), transformando-a em conhecimento frontal e aplicado, sempre que decisões precisam ser tomadas. Este conceito de ativação de conhecimentos rompe radicalmente com os dualismos entre o sensível e o inteligível (gigantesca e operante herança das filosofias racionalista e empirista) e entre o tácito e o formalizado (base das teorias contemporâneas sobre a gestão do conhecimento). O conhecimento ativado é uma forma integrada (i.e., que reúne dialeticamente tudo que os dualismos cindiram) e integral (sem diminuições ou restrições) de saber, que permite a construção de uma representação mental dos eventos, a partir da percepção e interpretação dos sinais e signos oriundos do contexto da ação.
Para um indivíduo, o ato de qualificar-se (ou seja, sua qualificação) não é outra coisa senão a assimilação, por ele, da cultura técnica. O efeito deste ato, igualmente chamado de qualificação, pode ser definido como o potencial cognitivo (teórico e prático), obtido num sistema de educação formal, que provê o indivíduo com as condições necessárias ao desempenho de suas funções, inclusive a capacidade epistêmica de refletir sobre as ações suas e de seus colegas, dentro do respectivo contexto. Já a competência é a capacidade pessoal de ativação desta cultura técnica. Mais ainda, é capacidade para transformá-la, em circunstâncias para as quais o saber de fundo revelou-se insuficiente. Nos problemas semi-estruturados (i.e., quando há alto risco e efeitos interconectados, sem modelo prévio), que exigem microdecisões rápidas, a ausência de uma compreensão prévia e comum da situação (fornecida p. ex. pela tradição dos artesãos, ou pelos manuais e roteiros de fabricação da grande indústria) obriga os próprios agentes a assumir a incumbência de produzir um consenso de fundo para suas ações. A interpretação dos signos e sinais oferecidos pelo ambiente precisa gerar um consenso entre os trabalhadores. É essa atividade intersubjetiva de interpretação que determina, em meio aos signos e sinais oriundos do contexto do trabalho, quais as ações mais adequadas do ponto de vista da eficiência (mundo físico), Justiça (mundo social) e autenticidade (mundo subjetivo). Assim, a competência acaba recriando esse reservatório de interpretações prévias que denominamos cultura técnica. Aliás, a tomada de microdecisões (cruciais para o desempenho de processos menos rotinizáveis do que os do fordismo) é a verdadeira razão do atual interesse pela competência. As situações de anormalidade, de necessidade de ajuda ou de perigo são momentos propícios para que se desvende a real competência do trabalhador.
A aprendizagem precisa tanto da base adquirida na escola, quanto do desenvolvimento realizado no local de trabalho. A escola é o lugar da qualificação, a empresa, o do desempenho. O conceito de competências une esses dois mundos. Ele expressa a capacidade do trabalhador de ativar a cultura técnica de sua comunidade de trabalho, para interpretar inúmeros tipos de sinais e signos, verbais (p. ex., frases, durante diálogos sobre questões técnicas ou gerenciais) ou não (p. ex., sinais provenientes de uma máquina), provenientes do contexto físico, social e subjetivo. As competências devem ser vistas como uma mediação entre a qualificação e o desempenho no cargo. Elas explicam por que indivíduos com a mesma titulação podem ter desempenhos bem diferentes, num mesmo cargo.
Em vez de seguir a velha e onipresente classificação das qualificações em conhecimentos, habilidades e atitudes (portadora dos dualismos entre o sensível e o inteligível), preferimos classificar as competências em três grupos:
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competências técnicas, que permitem a interpretação dos processos físicos e organizacionais da produção;
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competências subjetivas, que permitem a interpretação das relações pessoais e interpessoais dentro da fábrica;
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competências sociais, que são aquelas que permitem interpretar o que ocorre fora dos muros da empresa, seja no mercado, seja no espaço público, seja na estrutura estatal.
Ao contrário das competências, a qualificação não pode ser pensada diretamente a partir do desempenho nos cargos. Cargos são sempre específicos e cambiantes, qualificação é sempre mais genérica e inercial. A educação tecnológica, que qualifica sujeitos, tem por obrigação prepará-los para vários cargos possíveis. Entre a qualificação e o futuro desempenho no cargo, há a mediação de várias formas possíveis de competência. Por isto, a educação tecnológica deve se voltar prioritariamente para o desenvolvimento da cultura técnica, sem se preocupar diretamente com as necessidades ligadas a esse ou aquele cargo específico.
As coisas se complicam, e muito, quando os resultados da avaliação de desempenho estão diretamente acoplados aos níveis de remuneração. Várias empresas de consultoria se apressaram em fornecer "modelos de remuneração por competências".
A origem da dificuldade está, a nosso ver, no vão esforço de resolver novas questões emergentes da área de relações de trabalho, usando-se ferramentas recauchutadas da área de RH. É impossível afastar-se das abordagens funcionalistas quando se discute os saberes envolvidos na produção e, contraditoriamente, mantê-las mais à frente, na avaliação de desempenho e nos sistemas de classificação e remuneração. Enquanto não se investir em novas formas de relações de trabalho, baseadas numa abordagem intersubjetiva, os "sistemas empresariais de gestão de competências" demonstrarão sua incompatibilidade com os planos de cargos e salários fordistas, ainda que se tente disfarçar estes últimos com novos nomes.
Rogério Valle (valle "arroba" pep "ponto" ufrj "ponto" br) é pesquisador do Laboratório de Sistemas Avançados de Gestão da Produção (SAGE), da COPPE/UFRJ.
Observação
Para um desenvolvimento das idéias expostas neste texto e estudos de caso, ver Rogerio Valle (org.), O Conhecimento em ação: novas competências para o trabalho no contexto da reestruturação produtiva. Rio, Relume Dumará, 2003. (voltar)
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