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Apenas qualificação não garante emprego

O ensino profissionalizante é bastante associado, no Brasil, a escolas técnicas mantidas pelo Estado e ao chamado "Sistema S", que engloba diversas instituições ligadas ao empresariado: Senai/Sesi (indústria), Senac/Sesc (comércio), Senat/Sest (transportes), Sebrae (micro e pequenas empresas) e Senar (rural). Além disso, historicamente, existem projetos menores, de prefeituras ou associações, que se propõem a sanar o problema da falta de qualificação dos trabalhadores e auxiliar no combate ao desemprego. O governo federal tem esboçado algumas iniciativas novas na área, porém os especialistas alertam para a necessidade de alguns cuidados para não perpetuar, mais uma vez, equívocos históricos.

Uma distinção importante, aparentemente simples, está associada à relação entre desemprego e a falta de qualificação do trabalhador. Segundo a educadora Azuete Fogaça, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), existe de fato uma população de baixa escolaridade que, na maioria dos casos, não apresenta qualificação formal adequada para as funções e atividades produtivas que eventualmente venham a exercer. No entanto, ela ressalta que "políticas de qualificação profissional não são políticas de geração de emprego". Já Remi Castioni, economista e consultor de programas e projetos educacionais, é um pouco mais enfático. Para ele, essa questão envolve um problema maior: "Em parte, esse discurso da 'falta de educação' subsidiou as explicações para responder à crise do emprego. Os indivíduos foram nomeados como responsáveis por não terem esse atributo - mais escolaridade - ao mesmo tempo em que se tirou a responsabilidade da sociedade e do Estado e, por conseqüência, da política econômica".

Para Castioni, que atuou durante cinco anos como gestor da Secretaria de Emprego e Relações de Trabalho do estado de São Paulo (SERT/SP), essa é a maneira mais fácil de fugir das causas centrais do problema: "atribuir aos indivíduos o sucesso no mercado de trabalho apenas por seus anos de escolaridade é negar as relações sociais de produção. Eles são apenas agentes passivos, pois quem determina o seu valor de uso é o capital" Em outras palavras, o emprego e o salário não dependem do indivíduo, mas da conjuntura econômica do país e do mundo, que tem como fim principal, no sistema capitalista, a geração de riquezas. Castioni ainda reforça sua explicação a partir das últimas pesquisas da Fundação Seade e do Dieese, que apontam os maiores índices de desemprego entre a população com maior escolaridade e maior experiência profissional.

Entretanto, como a educação deve contemplar a questão do trabalho e do emprego? Castioni afirma que a educação profissional tem suas especificidades que devem ser trabalhadas, mas um pressuposto é não abrir mão da escolaridade de base, que também acaba tendo repercussões no âmbito profissional: "Não se pode pensar em uma política de educação profissional sem resolver o problema do analfabetismo e da baixa escolaridade entre os trabalhadores. O economista lamenta que, embora essa constatação seja antiga, o problema ainda não foi enfrentado: "Há 70 anos, tendo Anísio Teixeira à frente, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova invocava isso", afirma.

Para Newton Balzan, professor da Puc-Campinas e da Unicamp, essa preocupação com a educação, no seu sentido mais amplo, deve estar presente nas diretrizes que orientam a prática escolar: "Toda educação, profissionalizante ou não, deve trabalhar com o conceito de cidadania, desenvolver valores" Balzan afirma que todo projeto definido como educacional deve ir muito além da preparação para o trabalho. "Qualquer tipo de qualificação profissional deve ser de responsabilidade exclusiva das empresas interessadas, que lucram com a capacitação de seus futuros trabalhadores", afirma.

Para Azuete Fogaça, a preocupação com a educação básica também se justifica, porém com outros argumentos: "Já é consensual a idéia de que, hoje, uma boa base de educação geral é a melhor qualificação. Isto porque, o mundo atual, em que a tecnologia impõe mudanças constantes nos processos produtivos, demanda do trabalhador a capacidade de se ajustar rapidamente a essas mudanças". Para ela, essa "capacidade de responder positivamente às mudanças" depende principalmente de uma base de educação geral que o trabalhador possua.

Nesse contexto, existem diferentes pontos de vista também com relação às prioridades que devem ser estabelecidas para o ensino profissional. Para Azuete Fogaça, a rede de educação profissional deve garantir a formação de uma educação sólida em determinadas áreas ocupacionais, como mecânica, informática, telecomunicações, que tendem a se consolidar ou já estão consolidadas. Para ela, a rede de educação profissional, e particularmente a rede pública, devem ter uma perspectiva de longo prazo, isto é, ligada às tendências mais gerais da esfera produtiva: "Isso significa que só deve ser investido em novos cursos - o que muitas vezes significa aquisição de novos equipamentos e contratação de novos professores - depois que o mercado para essa nova ocupação estiver consolidado", afirma.

No entanto, ela realça que isso não significa uma operacionalização do ensino profissional visando apenas preparar para o emprego, mas em uma articulação com o "mundo do trabalho". Nesse sentido, está incluída a articulação da noção de trabalho como base da produção do conhecimento, do domínio da natureza, da busca por melhores condições de vida, do conhecimento da lógica capitalista e, dentro dela, da relação capital-trabalho.

Já Remi Castioni menciona que o principal problema da educação profissional, que está associado à educação como um todo, é a ausência de um sistema mais integrado. O pesquisador afirma que a realização de projetos pulverizados é um problema histórico que não foi superado no Brasil: "Tivemos várias experiências no passado, como o Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra Industrial - Pipmoi criado em dezembro de 1963, o Movimento Brasileiro de Alfabetização - Mobral, de dezembro de 1967, o Plano Nacional de Educação Profissional, depois transformado em Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador - Planfor, de 1995". Segundo Castioni, as estatísticas desses programas mostram que foram atendidas, no total, mais de 30 milhões de pessoas, mas os índices de analfabetismo na população economicamente ativa continuam inalterados, cerca de 10 milhões. O pesquisador defende que é um desperdício de tempo e dinheiro tentar proporcionar uma formação profissional passando por cima de problemas de base educacional.

Castioni considera que o Planfor, embora tenha conseguido realizar avanços localizados, apresentava problemas conceituais importantes. Iniciado em 1995 e atualmente interrompido, o Planfor foi um dos mecanismos de política pública de trabalho e renda vinculado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Os recursos vinham do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) e eram, depois, repassados aos estados ou a parceiros nacionais ou regionais por meio de convênios. Todos os convênios exigiam uma contrapartida, definida em lei para os estados - que, em média, era de 20%.

De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, até 2000, 11,6 milhões de trabalhadores passaram pelo Planfor, com investimento de R$ 1,8 bilhão do FAT, além das contrapartidas dos governos estaduais e parceiros privados. De acordo com os dados do governo, antes da realização do curso, 79% dos trabalhadores envolvidos no programa estavam empregados. Depois do curso esse índice subiu para 84%. Castioni afirma que os avanços ocorreram apenas em algumas regiões, atendendo a demandas locais.

Com relação ao papel do Sistema S, Castioni acha que deveria haver maior participação da sociedade na sua gestão e que deveria ser mais integrado às políticas educacionais como um todo: "É um sistema que recebe recursos públicos, via o sistema de transferências da Previdência Social, de R$ 5 bilhões/ano e arrecada outro tanto de quem freqüenta os cursos. É um sistema público com controle privado. Embora o governo participe da sua gestão e aprove os seus orçamentos, faz de conta que não vê o problema". Remi Castioni ainda afirma que se trata de um sistema que discrimina os próprios empresários, pois atende interesses da estrutura sindical tradicional patronal, que beneficia as grandes empresas em detrimento das pequenas.

No que diz respeito às instituições ligadas ao Sistema S, Azuete Fogaça acha que trabalham com uma perspectiva mais restrita, devido a sua própria natureza: "Não entendo que uma preocupação educacional mais ampla seja uma responsabilidade de instituições como o Senai, por exemplo. Elas trabalham a partir de objetivos claramente identificados com as demandas operacionais dos setores produtivos; isso faz parte de sua natureza institucional", diz.

A pesquisadora também conclui que o Sistema S foi uma experiência bastante exitosa, dos anos 1940 aos 1970, quando se preparava para trabalhar em uma indústria com pouca inovação tecnológica. "Tratava-se naquela época, de uma formação inerente ao paradigma fordista-taylorista, no qual o conceito de qualificação compreendia o domínio das atividades operacionais próprias de uma ocupação que, na maioria dos casos, não dependia de maior escolaridade". A pesquisadora também lembra que o modelo foi reconhecido internacionalmente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). No entanto, precisa adequar-se às novas condições econômicas e sociais, que exigem uma atualização constante.

Fogaça manifesta alguma preocupação com parcerias com o setor privado como um todo, tendo em vista a mais nova proposta do governo. O Ministério da Educação anunciou, recentemente, o início de estudos para a fixação de uma nova parceria público-privada, para expandir o ensino profissional no país. Isso seria viabilizado por meio de contratos com empresas e indústrias, que se encarregam da qualificação dos trabalhadores, enquanto o governo ofereceria material e planejamento pedagógico. Para Azuete Fogaça, "há que se lembrar que o sistema S já é financiado por recursos que podem ser considerados como públicos - os valores que as empresas destinam a ele estão embutidos nos preços dos produtos que fabricam ou vendem. A pesquisadora também apresenta outras estimativas: "Na última década, o Sistema S tem movimentado algo em torno de oito bilhões de dólares/ano. É um valor maior do que dispõe, por exemplo, o sistema federal de ensino técnico".

Já com relação às empresas privadas, a professora é taxativa. Esse financiamento não se justifica, pois elas devem arcar com os custos dos treinamentos de seus funcionários, sejam eles operacionais, sejam para a elevação da escolaridade, já que são atividades que contribuem para o aumento da produtividade e, logicamente, dos lucros das empresas.

Para Ruy Quadros, do Instituto de Geociências da Unicamp, a questão educacional também envolve uma estratégia de desenvolvimento econômico do país: "Muito do sucesso do modelo industrial de países mais agressivos como os 'tigre asiáticos', advêm de uma base educacional". Ele afirma que, nesses países, só foi possível uma industrialização acelerada devido a uma reflexão sobre o trabalho nas áreas de administração e reengenharia, que também advêm do campo da educação em geral. Quadros chama a atenção para algo presente no sistema educacional desses países: "A escola e o 'mundo do trabalho' se aproximaram mais a partir do momento que passaram a ser exigidas habilidades mais gerais, associadas à leitura, expressão verbal ou estatística, que são pré-requisitos para o aprendizado de qualquer profissão e qualificação mais aplicada."

Já Remi Castioni cita como referência o sistema educacional alemão. Partindo de um percurso formativo, com a educação básica como seu pilar, ele culmina com uma etapa final onde parte da formação se faz na escola e parte nas empresas, conhecido como Sistema Dual. "Por ser tão bom, custa caro, e há uma pressão para desmontar o sistema como parte de redução do Welfare State", afirma. Outro ponto forte é que as decisões sobre a educação partem de um acordo entre a sociedade e o Estado.

Ele menciona que os modelos educacionais francês e espanhol têm como característica os chamados "itinerários formativos". Um eletricista pode ingressar em um curso de 40 horas, querer aprofundar os estudos e tornar-se engenheiro. Ou seja, existe um percurso que sinaliza uma formação que vai sendo perseguida passo a passo, de acordo com as possibilidades do aluno.

(DC)

 
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Atualizado em 10/05/2004
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