Reportagens






 
Em aulas de ciências, ensinam-se ciências?

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

Existem idéias que nos perseguem e que, embora fixas, vêm e voltam recorrentemente aos nossos pensamentos e formas de agir, na expectativa de se concretizarem, de ganharem vida e de se efetivarem, no desejo de deixarem de ser idéias. Muitas dessas idéias não têm sua localização na consciência ou inconsciência humana; fazem parte, compõem nossas culturas, movimentam um conjunto vasto de relações que estabelecemos e obtêm nas linguagens suas formas de captura e expressão das realidades ou, em outras palavras, suas representações.

Garantir que aspectos relevantes das ciências estejam presentes no currículo do ensino das ciências das escolas é uma das idéias fixas da comunidade de pesquisadores em educação em ciências, tanto brasileiros como estrangeiros. Perdurando há mais de 50 anos, existe um conjunto de movimentos, que podem ser tonalizados como reformas curriculares, formação de professores, produção de materiais didáticos e pesquisas acadêmicas; são múltiplas vozes imprimindo, fantasmaticamente, os encontros entre ciências e escolas (mais especificamente as práticas de ensino) com aspectos dissonantes, harmoniosos ou marcando diferenças.

Proponho inicialmente um breve passeio em nossas lembranças de estudantes para estabelecer linhas, portos de paragem e admirar as aulas de ciências. Para alguns de nós são muito expositivas, centradas nos conteúdos, tendo o livro didático como grande referência, ou seja, igual às escolas, quando são oficialmente apresentadas. Também é possível que lembremos dos laboratórios de ciências, mesmo que não fossem utilizados, de alguns experimentos, de trabalhos de campo, de modelos (átomo, célula, sistema solar), das feiras de ciências , de alguns equipamentos (o microscópio é um dos que teve o maior ibope, embora as células visualizadas nem tanto...). Para outros de nós, as lembranças recaem sobre as figuras dos livros didáticos, na apresentação os cientistas (em geral, homens, brancos, europeus ou o professor), as relações entre ciência e sociedade, a relevância das tecnologias, os órgãos dos corpos humanos - sempre aos pedaços- e as inusitadas figuras dos aparelhos reprodutores masculino e feminino, muitas vezes juntos em um mesmo corpo (uma criação didática que é instigante). Temáticas variadas como sexualidade, educação ambiental, ética, história da ciência, jogos/modelos/simulações, quando em nossas lembranças persistem, têm muitas chances de serem associadas às aulas de ciências.

Como dizem as más e as boas línguas o ensino de Ciências há de ser dinâmico, prático e atual! Em nossas rememorações, quem sabe ele já não está sendo?

A indústria cultural - incluindo cinema, televisão, produtoras de audiovisuais diversos, jornais, editoras de revistas e de materiais didáticos - age sobre o ensino de ciências expandindo-o em multiplicidades, mantendo as características apontadas acima, colocando- as em circulação para além das escolas, e compondo nosso repertório de possibilidades de entrar em contato com representações do ensino de Ciências e rememorá-lo. É possível, então, pensarmos que nos educamos sobre ciências em diferentes espaços e que muito do que aprendemos pretendem ter significações próximas.

Como nas escolas, professores usam vários recursos produzidos pela indústria cultural, uma série de identificações será provavelmente estabelecida, como em uma cópia, uma decalque. Esses pressupostos respaldados na reprodução, repetição e similaridade são uma das referências de trabalhos que se debruçam sobre análise de materiais didáticos que educam em ciências (livros, vídeos, jogos etc) tanto em investigações acadêmicas quanto em nível do Ministério da Educação. Constituem uma das tradições sobre a educação em ciências, juntamente com os estudos das concepções de alunos e professores sobre ciências e a análise de como tais concepções interferem nas situações práticas sociais, cotidianas e profissionais. Têm seu com valor, mérito e contribuições reconhecidamente relevantes.

Quero neste artigo produzir um diferir das escolas associado aos meios de produção e aos formatos de apresentação das ciências. É nessa esteira que buscarei as produções cotidianas em aulas de Ciências e as colocarei neste texto, fragmentadamente, na humilde esperança de expressar como as escolas, ao produzirem significações para as ciências, peculiarizam-nas.

Os entornos das relações entre ciências e escolas são constituídos, culturalmente, em tênues fronteiras: seria impossível, mesmo que insistíssemos muito, querer perceber em situações de ensino e aprendizagem tais relações pelos seus elementos identificadores, a partir de suas marcas peculiares, essenciais ou próprias. Convido o leitor a imaginar os transbordamentos, as dobras e aquilo que excede os lugares próprios, fixos escolas e ciências. Faremos isso, juntos, por minha escrita e pela leitura que a potencializa, caminhando, em busca dos modos de funcionamento da educação em ciências em episódios que aconteceram na 6ª série e na 8ª série, em duas distintas escolas públicas do estado de São Paulo.

A professora entra na sala da 6ªB. Cumprimenta a classe. Dois alunos vêm cumprimentá-la com um abraço.

- Eu queria organizar com vocês a aula de hoje. Nós vamos montar o que vamos chamar de borboletário. Vamos ver o desenvolvimento dos ovos em lagarta e em borboleta. O que a gente já tem são os ovos de borboleta que o Eduardo trouxe em uma folha, uma lagarta que estava no coquinho e outra maior. São todas borboletas diferentes. Nós vamos observar o ciclo delas.

Mostra um livro ilustrado com todas as fases doaa ciclo.

- Dependendo da borboleta ela coloca os ovos na folha que depois as lagartas vão se alimentar. As lagartas são diferentes em cada espécie. É a fase infantil da borboleta, nesta fase ela não se reproduz.

- Então como apareceu esta outra lagarta no vidro?

- Devia ter um outro ovo no vidro que você não viu. Ela não se reproduz nesta fase. É com a gente, bebê se reproduz?

- Não!

- Vocês estão começando a produzir óvulo, espermatozóides, outros ainda não entraram nesta fase. Eu e a Alice já somos borboletas. Mas mesmo que alguns de vocês já tenham entrado nesta fase é para esperar viu, não é hora de ter filho ainda!

Os conhecimentos sobre lagartas e borboletas são recontextualizados, com finalidades reguladoras morais, para falar sobre comportamentos humanos.

 

Continua mostrando as ilustrações do livro.

A respeito de que animais mesmo se está falando nesta aula?
Os conhecimentos científicos, as representações da natureza, a intermediação do mundo pelo observação tensionam-se no contexto escolar no qual é forte condição a relação com o cotidiano, com a realidade e o vínculo com a transformação dos alunos.

- Outro inseto que eu trouxe é o bicho-pau, que eu peguei lá no Taquaral. Eles estão lá no salão.

Um aluno vai buscá-los. A professora abre o aquário, os alunos se juntam no entorno dele. Edna deixa que eles peguem nos bichos-paus, pedindo cuidado.

- Olha só, o macho tem asa. Como ele é adolescente a asinha dele está crescendo. A fêmea é mais gordinha e não tem asa. Por que será, Alice?

- Talvez seja porque é ele que saia para procurar a fêmea.

- Olha só, é ele que sai para procurar namorada. A fêmea trocou de pele.

Mostra a casca de muda da fêmea. Depois explica:

- Olha só, os insetos tem o esqueleto endurecido por fora, enquanto que na gente o esqueleto é interno. A nossa pele estica, a barriga da mulher estica quando está grávida.
Algum aluno faz uma brincadeira.

- É, o pênis também fica duro, depois fica mole.

Alunos riem. Um menino brinca:

- Não pode falar de pênis, é palavrão!

Com essas e outras idéias, os alunos, separados em pequenos grupos, iniciaram a leitura do Tema 5 do livro didático da 8ª série do ensino fundamental. Numa nova organização para a aula, os alunos, em grupos de três, fizeram a leitura de determinadas páginas do livro para, em seguida, contarem a história para os colegas. O tema era Origem da Vida e a professora tinha a impressão de que poderia privilegiar a discussão sobre ciência e cientistas. Perguntou aos alunos, principalmente os que não foram seus alunos no ano passado, como descreveriam um cientista. Os alunos, surpreendentemente, não apresentaram uma visão estereotipada do cientista com relação à sua imagem física.

Uma das mais belas discussões que ocorreram nessa aula foi realizada a partir da dúvida de uma aluna se o cientista era ou não um sábio. Esta dúvida, também compartilhada em alguns momentos da fala pela própria professora, derivou da relação da aluna com uma das frases escritas no livro didático.

Nas interlocuções, fios se emaranham...

_ Professora, qual é a diferença do sábio com o cientista?
_ Alguém pode explicar para a L.?
_ Eu acho que ele sabe bastante, mas cientista não, cientista fica se matando, para aprender, para o que ele sabe, não é, dona?
_ A gente estava conversando aqui, o sábio sabe quanto vai dar o cálculo. Agora o cientista não, ele fica calculando, usando fórmula até dar o cálculo! Não sabe antes.
_ A senhora é sábia, então, professora?

E explodem multiplicidades...

_ E você acha assim, que essa pessoa é muito sábia? Tem muito conhecimento, daria para você conversar com ela?
_ Não.
_ Não, você acha que não daria para conversar?
_ Eu não. Só se fosse sobre televisão. Agora planta, igual a isso aí, a vida, não!
_ Aí não!
_ Não.
_ Você acha que se você conversasse com o cientista, ele ia te colocar algumas perguntas meio cabeludas que você não saberia, você não teria parado para pensar ainda?
_ É!
_ E essa é a mesma visão que você tem, L.? Do cientista? Já viu alguma foto em livro, sobre cientista? E aí, te representou uma pessoa normal?
_ É, normal. Com mais estudo, com estudos específicos
_ E é uma pessoa que está sempre em busca de conhecimentos, de descobertas.

Na opinião da professora de ciências, os alunos vivenciaram, em aulas anteriores, experiências similares à produção do conhecimento científico pelos cientistas. Este foi ponto explorado por ela para mostrar dificuldades e diferenças no trabalho dos cientistas.

(Os métodos da ciência)
_ Você acha que tudo por que você passou, um cientista passa também?
_ Passa
_ Passa, não passa, J., só que ele tem que fazer o quê? Ele tem que explicar, de alguma maneira, ele tem que o quê? passar a informação para aquelas pessoas que estão lendo, ou se depois ele escreve, ele vai demonstrar. Ele tem que mostrar a verdade daquilo que ele está tentando fazer. A M. não veio aqui mostrar, ela veio mostrar como funcionava. Você não tem aqui uma pessoa com o abdômen aberto, o tórax para você olhar como funciona o pulmão. Então, ela fez de uma maneira que você consiga ver, você vai o quê? Imaginar. Então tem experimento que você vai fazer e a pessoa vai imaginar e tem coisa que você vai fazer de concreto, ali, que você vai realizar, como é o caso da J. que fez acender a lâmpada, colocando-a na água com sal e na água com açúcar, demonstrando. Ela provou a experiência dela. Ela fez o papel de um cientista, também. Então, eu estou falando tudo isso para quê? Para ver se você consegue chegar na origem da vida. A origem da vida, todos os livros que a gente vê, experimentos que você vê, são cientistas que estão tentando, ou tentaram mostrar para nós por que eles chegaram até aquele ponto. Porque ninguém estava lá, gente, há bilhões de anos atrás. Só que a gente tem que saber uma história nossa.

A Origem da Vida é nossa história, de homens e mulheres, é história da ciência, é diversidade dos métodos científicos, é papel social dos cientistas, é relação entre cidadão comum e conhecimento científico, é a circunscrição de quem tem o poder de saber coisas do mundo antes das demais pessoas, é religião...

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim é professor assistente doutor da Faculdade de Educação da Unicamp, pesquisador no Grupo Formar Ciências e vice-presidente da Diretoria Executiva Nacional da
Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia - acamorim@unicamp.br

 
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Atualizado em 10/07/2003
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