Reportagens






 

A Espiral da cultura científica

Carlos Vogt


I

Fernando de Azevedo, no clássico A cultura brasileira, de 1943, seguindo a distinção de Humboldt entre cultura e civilização vê na primeira uma espécie de vontade schopenhauriana da sociedade em preservar a sua existência e assegurar o seu progresso, atendendo não apenas à satisfação das exigências de sua vida material, mas sobretudo e principalmente de suas necessidades espirituais.

Como escreve o autor, "cultura, [...], nesse sentido restrito, e em todas as suas manifestações, filosóficas e científicas, artísticas e literárias, sendo um esforço de criação, de crítica e de aperfeiçoamento, como de difusão e de realização de ideais e de valores espirituais, constitui a função mais nobre e mais fecunda da sociedade, como a expressão mais alta e mais pura da civilização".

Em 1959, C. P. Snow, proferiu em Cambridge, Inglaterra, a famosa conferência "As duas culturas" que, publicada, tornar-se-ia também um clássico da reflexão sobre as diferenças que separariam a cultura voltada para a ciência e a cultura, humanística, voltada para as artes.

Entretanto, como bem aponta o professor Leopoldo de Meis em seu instrutivo e oportuno Ciência e Educação - O conflito humano-tecnológico, de 1998, várias são, ao longo da história, as discordâncias em relação à dicotomia traçada por Snow, entre elas a do escritor americano John Burroughs, para quem "o verdadeiro poeta e o verdadeiro cientista não se estranham", a de Max Planck, que considera que "o cientistas tem de ter uma imaginação vívida e intuitiva, porque as novas idéias não são geradas por dedução, mas por uma imaginação artística e criativa", e mesmo a de Einstein, quando escreve:

"Onde o mundo cessa de ser a cena de nossas esperanças e desejos pessoais, onde podemos encará-lo como seres livres, admirando, perguntando, observando, aí entramos nos domínios da arte e da ciência. Se o que é visto e experimentado é mostrado com a linguagem da lógica, estamos engajados em ciência. Se é comunicado através de formas cujas conexões não são acessíveis à mente consciente, mas são reconhecidas intuitivamente como importantes, então estamos engajados na arte. Comum a ambas e a devoção amorosa àquilo que transcende as preocupações pessoais..."

II

De nosso ponto de vista, embora haja distinções teóricas e metodológicas fundamentais entre arte e ciência, há entre elas algo poderosamente comum. Trata-se da finalidade compartilhada por ambas, que é a da criação e a da geração de conhecimento, através da formulação de conceitos abstratos e ao mesmo tempo, por paradoxal que pareça, tangíveis e concretos. No caso da ciência essa tangibilidade e concretude se dá pela demonstração lógica e pela experiência; no caso da arte, pela sensibilização do conceito em metáfora e pela vivência.

Por isso a expressão cultura científica nos soa mais adequada do que as várias outras tentativas de designação do amplo e cada vez mais difundido fenômeno da divulgação científica e da inserção no dia-a-dia de nossa sociedade dos temas da ciência e da tecnologia.

Melhor do que alfabetização científica (tradução para scientific literacy), popularização/vulgarização da ciência (tradução para popularisation/vulgarisation de la science), percepção/compreensão pública da ciência (tradução para public understanding/awarness of science) a expressão cultura científica tem a vantagem de englobar tudo isso e conter ainda, em seu campo de significações, a idéia de que o processo que envolve o desenvolvimento científico é um processo cultural, quer seja ele considerado do ponto de vista de sua produção, de sua difusão entre pares ou na dinâmica social do ensino e da educação, ou ainda do ponto de vista de sua divulgação na sociedade, como um todo, para o estabelecimento das relações críticas necessárias entre o cidadão e os valores culturais, de seu tempo e de sua história.

Louis Berlinguet, no Prefácio ao livro When science becomes culture, que contém os trabalhos apresentados no simpósio internacional sobre o tema, realizado em Montreal, Canadá, em abril de 1994, escreve:
"No passado, o pequeno grupo de cientistas, que, com grande dificuldade, examinaram as primeiras leis de nosso universo, estava circundado pela sociedade. Com a expansão do conhecimento, nas palavras de Pierre Fayard, houve 'uma revolução coperniciana que tende a fazer com que a ciência gire em torno do público, e não o contrário'. Hoje, quer queiramos ou não, estamos envolvidos em nosso cotidiano pela ciência e pela tecnologia. Desse modo, é melhor tentar conquistá-las do que permanecer passivo em face de seus desenvolvimentos"

Como é possível realizar essa conquista sem estar envolvido diretamente no processo de produção, de difusão ou de ensino e aprendizagem da ciência?

A resposta é "Pela divulgação científica", isto é, pela participação ativa do cidadão nesse amplo e dinâmico processo cultural em que a ciência e a tecnologia entram cada vez mais em nosso cotidiano, da mesma forma que a ficção, a poesia e arte fazem parte do imaginário social e simbólico de nossa realidade e de nossos sonhos, multiplicando em nossa existência única, e provisória, a infinitude de vidas e vivências que vivemos sem jamais tê-las vivido.


III

Quando se fala em cultura científica é preciso entender pelo menos três possibilidades de sentido que se oferecem pela própria estrutura lingüística da expressão:

1.Cultura da ciência
Aqui é possível vislumbrar ainda duas alternativas semânticas:
a)cultura gerada pela ciência
b)cultura própria da ciência

2.Cultura pela ciência
Duas alternativas também são possíveis:
a)cultura por meio da ciência
b)cultura a favor da ciência

3.Cultura para a ciência
Cabem, da mesma forma, duas possibilidades:
a)cultura voltada para a produção da ciência
b)cultura voltada para a socialização da ciência.

Nesse último caso, teríamos em a) a difusão científica e a formação de pesquisadores e de novos cientistas e em b) parte do processo de educação não contido em a), como o que se dá, por exemplo, no ensino médio ou nos cursos de graduação e também nos museus (educação para a ciência), além da divulgação, responsável, mais amplamente, pela dinâmica cultural de apropriação da ciência e da tecnologia pela sociedade.

Essas distinções aqui esquematizadas certamente não esgotam a variedade e a multiplicidade de formas da interação do indivíduo com os temas da ciência e da tecnologia nas sociedades contemporâneas, mas podem contribuir para um entendimento mais claro da complexidade semântica que envolve a expressão cultura científica e o fenômeno que ela designa em nossa época também caracterizada por outras denominações correntes em geral forjadas sobre o papel fundamental do conhecimento para a vida política, econômica e cultural dessas sociedades: sociedade do conhecimento.


IV

Na apresentação que escrevi para o livro Divulgação científica - 96 verbetes, de Isaac Epstein, chamo a atenção para o uso adequado que faz o autor da famosa tirada, cheia de espírito e fina ironia com que Bernard Shaw brinda a distinção entre especialistas e generalistas e a sua relação com o conhecimento nos tempos modernos: os especialistas, sabem cada vez mais sobre menos, até saberem tudo sobre nada, enquanto os generalistas sabem cada vez menos sobre mais, até não saberem nada sobre tudo.

Será essa a vertigem do conhecimento? Estará a sociedade fadada a viver na exterioridade completa da compreensão e do entendimento daquilo que hoje, mais do que nunca, por ser também riqueza, estrutura e determina o conjunto de nossas relações de trabalho, de nossos valores culturais e éticos, e mesmo cotidiano de nossas esperanças?

A distinção cara à tradição do positivismo lógico que opõe o contexto de justificação ao contexto de descoberta da ciência, estabelecendo diferenças epistemológicas cortantes entre o que é intrinsecamente próprio do fazer científico e aquilo que o cerca como eventualidade histórica e externa às suas normas, regras e leis constitutivas, essa distinção, dentro do que aqui vai sendo chamado de cultura científica, vai também perdendo sua força, não fosse, entre outras coisas, o fato de que a ciência, por suas transformações, foi incorporando, como campo de sua pesquisa, a própria relação entre o fenômeno observado e o observador.

Mudanças importantes nos paradigmas científicos, como aquelas analisadas por Popper e por Khun, trouxeram também conseqüências importantes para as culturas dos que fazem ciência, dos que ensinam a fazer ciência e dos que buscam fazer saber como e para quê se faz ciência. Essas mudanças marcam também, no plano geral dos valores que caracterizam a maior parte das sociedades contemporâneas, a dinâmica do processo cultural da ciência e da tecnologia conhecido como cultura científica e tecnológica.

Como medi-lo? Como avaliá-lo? Como interpretá-lo?

Há, desde que foi constatado e nomeado, uma grande quantidade de estudos produzidos, uma literatura sociológica e economicista em franco desenvolvimento e constituição, um volume significativo de indicadores que se apresentam, questionários sobre percepção pública da ciência que se aplicam, estatísticas sobre o número de visitantes de museus dedicados ao tema, estudos sobre sua ocorrência na mídia e a sua frequentação pelo leitor, e, sobretudo, uma enorme vontade epistemológica de definição, própria das grandes novidades e dos novos campos de conhecimento, em geral multidisciplinares, como é o caso desse que a expressão cultura científica procura recortar.


V

A dinâmica da chamada cultura científica poderia ser melhor compreendida se a visualizássemos na forma de uma espiral, a espiral da cultura científica, como proponho chamá-la.

A idéia é que a representássemos em duas dimensões evoluindo sobre dois eixos, um horizontal, o do tempo, e um vertical, o do espaço, e que pudéssemos, estabelecer não apenas as categorias constitutivas, mas também os atores principais de cada um dos quadrantes que seu movimento vai, graficamente, desenhando e, conceitualmente, definindo.

Espiral da Cultura Científica


Tomando-se como ponto de partida a dinâmica da produção e da circulação do conhecimento científico entre pares, isto é, da difusão científica, a espiral desenha, em sua evolução, um segundo quadrante, o do ensino da ciência e da formação de cientistas; caminha, então, para o terceiro quadrante e configura o conjunto de ações e predicados do ensino para a ciência e volta, no quarto quadrante, completando o ciclo, ao eixo de partida, para identificar aí as atividades próprias da divulgação científica.

Cada um desses quadrantes pode, além disso, caracterizar-se por um conjunto de elementos que, neles distribuídos, pela evolução da espiral, contribuem também para melhor entender a dinâmica do processo da cultura científica.

Assim no primeiro quadrante, teríamos como destinadores e destinatários da ciência os próprios cientistas; no segundo, como destinadores, cientistas e professores, e como destinatários, os estudantes; no terceiro, cientistas, professores, diretores de museus, animadores culturais da ciência seriam os destinadores, sendo destinatários, os estudantes e, mais amplamente, o público jovem; no quarto quadrante, jornalistas e cientistas seriam os destinadores e os destinatários seriam constituídos pela sociedade em geral e, de modo mais específico, pela sociedade organizada em suas diferentes instituições, inclusive, e principalmente, as da sociedade civil, o que tornaria o cidadão o destinatário principal dessa interlocução da cultura científica.

Ao mesmo tempo, teríamos outros atores distribuídos pelos quadrantes.

Assim, a título de ilustração, teríamos no primeiro quadrante, com seus respectivos papéis, as universidades, os centros de pesquisa, os órgãos governamentais, as agências de fomento, os congressos, as revistas científicas; no segundo, acumulando funções, outra vez as universidades, o sistema de ensino fundamental e médio, o sistema de pós-graduação; no terceiro, os museus e as feiras de ciência; no quarto, as revistas de divulgação científica, as páginas e editorias dos jornais voltadas para o tema, os programas de televisão, etc.

Importa observar que nessa forma de representação, a espiral da cultura científica, ao cumprir o ciclo de sua evolução, retornando ao eixo de partida, não regressa, contudo, ao mesmo ponto de início, mas a um ponto alargado de conhecimento e de participação da cidadania no processo dinâmico da ciência e de suas relações com a sociedade, abrindo-se com a sua chegada ao ponto de partida, em não havendo descontinuidade no processo, um novo ciclo de enriquecimento e de participação ativa dos atores em cada um dos momentos de sua evolução.

Como resultado desse movimento que a espiral da cultura representa vale a pena registrar o nascimento de instituições voltadas para as questões de ciência e tecnologia e que têm fortes componentes de participação da cidadania, como é o caso, no Brasil por exemplo, da CTNBio e de suas atribuições regulativas no que diz respeito à nossa biodiversidade.
O que, enfim, a espiral da cultura científica pretende representar, na forma que lhe é própria, é, em termos gerais, a dinâmica constitutiva das relações inerentes e necessárias entre ciência e cultura.

 
Proxima
Atualizado em 10/07/2003
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