[an error occurred while processing the directive] Reportagens

Escola Caiçara da Juréia:
um experiência de encontro entre diferentes valores, práticas e conhecimentos

Alik Wunder

Aproximei-me do projeto da Escola Caiçara da Juréia no ano de 2002 e, durante dois anos, acompanhei o projeto como apoiadora, enquanto desenvolvia minha pesquisa de mestrado em educação em uma escola pública no entorno da Estação Ecológica Juréia-Itatins, Vale do Ribeira, SP. Neste artigo trago algumas contribuições dessa experiência para pensarmos possíveis caminhos para a conservação ambiental no sentido do respeito e da abertura a outros saberes além daqueles gerados no campo acadêmico.

Viajar ao Vale do Ribeira é entrar em contato direto com o dilema entre a conservação da natureza e a manutenção dos direitos e da qualidade de vida dos homens e mulheres, é vivenciar os conflitos gerados pelas rígidas restrições ao uso da terra e dos recursos naturais e pelos processos de implantação e gestão de áreas protegidas.

A criação da Estação Ecológica Juréia-Itatins foi resultado da mobilização de grupos ambientalistas, em contrapartida a projetos governamentais e do setor privado que desconsideravam a importância da conservação ambiental: a instalação de duas usinas nucleares e a construção de condomínios de luxo. Na época de sua criação viviam no local cerca de 320 famílias, que já habitavam a região há mais de três séculos, sobrevivendo da utilização dos recursos naturais como a pesca, a caça e o extrativismo vegetal.

Fotos: Alik Wunder
Encontro de gestão e avaliação da Escola Caiçara em 2002 na comunidade da Cachoeira do Guilherme

 

Dentre os tipos de Unidades de Conservação, as Estações Ecológicas são as mais restritivas. Além das severas leis referentes aos usos dos recursos naturais, a falta de serviços básicos como de saúde e educação dificultam a sobrevivência dos moradores e como conseqüência disso, muitas famílias deixaram suas casas e migraram para bairros vizinhos.

A partir da criação da Estação Ecológica algumas das comunidades da Juréia passaram a se organizar para lutar por seus direitos à terra e ao uso de recursos naturais e pela valorização de aspectos da cultura local como suas músicas, suas danças e as suas práticas de manejo na agricultura, extrativismo vegetal, pesca e caça.

O projeto da Escola Caiçara da Juréia nasceu dentro desse contexto de luta. Uma escola comunitária idealizada por moradores, principalmente por aqueles que hoje moram no seu entorno. Em princípio essa escola visa suprir a necessidade básica das crianças e jovens que moram na Juréia, no entanto a idéia que move a sua criação é o desejo das famílias verem esse local re-habitado com o retorno de seus filhos, e de os verem aprendendo não só os saberes escolares, mas também aqueles locais, relacionados à pesca, agricultura, extrativismo, arte, culinária, cura, dança, música, religião, enfim aqueles saberes que se construíram e se constroem na relação próxima com a natureza.

Os sentidos dessa escola passam pela resistência cultural e política, união e coesão da comunidade, pelo resgate do passado e das tradições, esperança de novos horizontes, bem como pela possibilidade de criar projetos de geração de renda e sustentabilidade ambiental.

A Escola Caiçara foi criada em 2002, a partir do trabalho cooperativo da comunidade, tendo várias instituições apoiadoras, entre universidades, ONGs, poder público local e estadual e associações locais. O trabalho foi articulado pela Associação dos Jovens da Juréia (AJJ), formada por famílias provindas da Juréia, que hoje vivem na Barra do Ribeira, bairro de Iguape, e lutam pelos direitos de retorno às suas terras e na busca de novas perspectivas de renda dentro desse contexto de conservação ambiental.

Participei desde os primeiros encontros de idealização da escola, auxiliando na sistematização escrita e fotográfica, na construção coletiva das primeiras idéias de um plano pedagógico, nas negociações com as instituições apoiadoras, principalmente com o poder público municipal e estadual.

Durante dois anos de trabalho definimos uma dinâmica na qual se realizaram encontros mensais na comunidade, com reuniões de avaliação e planejamento participativo da escola, bem como atividades coletivas relacionadas à cultura local tais como mutirões de plantio em horta e roça, oficina de cestaria, curso de folia de bandeira e festas animadas pelos tocadores de viola, rabeca, timba e pandeiro no ritmo do "passadinho", dança circular local.

Desde 2004 a escola está temporariamente fechada devido à pequena quantidade de alunos. O maior desafio do projeto tem sido a dispersão espacial das comunidades e o êxodo das famílias para os centros urbanos por falta de sustentabilidade financeira. Desta forma, o projeto da "Escola Caiçara da Juréia" também visa criar possibilidades de subsistência aos moradores que ainda estão na Juréia ou para aqueles que se localizam nas cidades vizinhas e queiram retornar com seus filhos.

Em algumas das narrativas dos moradores da Juréia e idealizadores da escola percebemos uma dicotomização entre a conservação ambiental, nos moldes que regem a Estação Ecológica, e a possibilidade de continuidade da tradição local. O que se compreende pelo histórico dessas famílias que tiveram suas práticas cotidianas como roçado, pesca e caça, criminalizadas e viram-se muitas vezes obrigadas a deixarem suas casas. Conjuntamente a essa polarização entre conservação e cultura local, nas narrativas daqueles que deixaram a Juréia e se relacionam continuamente com grupos organizados como comunidade quilombola, associações de monitores ambientais, sindicatos rurais, ONGs e acadêmicos sócio-ambientalistas e pessoas ligadas ao mercado do turismo ecológico e cultural, percebemos pontos de encontro com outras formas de pensamentos ambientalistas que esboçam possibilidades de saídas à situação de crescente abandono da Juréia.

O projeto da escola alavanca também outros projetos ligados à geração de renda a partir de processos considerados ambientalmente sustentáveis como manejo de palmito e de bromélias que já ocorrem em outras localidades do Vale do Ribeira. A escola seria assim um espaço de experimentação para uma proposta maior de criação de áreas de desenvolvimento sustentável no interior da Estação. Proposta essa que tem sido discutida e planejada em conjunto com pesquisadores da área ambiental e lideranças políticas de região.

A Escola Caiçara traz explicitamente a intenção de reformulação de práticas locais "ao mesmo tempo em que reforçaria o vínculo da nova geração ao território e ao modo de vida caiçara" (Monteiro: 221). Nas discussões que participei parece tranqüila essa assimilação de práticas e discursos de outros universos culturais. Para Monteiro "o discurso que de início representou a 'desgraça' de muitos moradores, tornou-se responsável por oferecer aos mesmos uma possibilidade de diálogo nessa arena de discussões." (Monteiro:234).


Oficina de cestaria com pais e alunos na "Escola Caiçara"

Chama a atenção também a aposta desse grupo na instituição escolar como um importante espaço de valorização da cultura local e de fortalecimento político desse movimento de transformação e resistência. A escola, um espaço recorrentemente colocado como reprodução de valores e conhecimentos alheios à cultura dos alunos, neste contexto é trazida como espaço de outras possibilidades.

O projeto da Escola Caiçara tem possibilitado o encontro entre diferentes valores, lógicas, práticas e conhecimentos das culturas escolares, acadêmicas, dos movimentos ambientalistas, e da cultura local. O movimento dos moradores da Juréia deixou de lutar contra a Estação, como nos primeiros anos de resistência, e agora buscam na própria lógica do ambientalismo dar legitimidade aos seus discursos e modos de vida. O ambientalismo, a escola e a ciência, assim como a cultura local, abrem-se a uma compreensão plural - ambientalismos, escolas e ciências - e, assim, parecem possibilitar novos caminhos para pensarmos a conservação ambiental.


Alik Wunder é bióloga e doutoranda pela Faculdade de Educação da Unicamp.


Referências bibliográficas

Monteiro, A. A. "Depois do Meio Ambiente: mudança social em uma unidade de conservação ambiental". Campinas, SP: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 2002. (Dissertação de Mestrado em Antropologia).

Wunder, A. "Encontro de Águas" na Barra do Ribeira: imagens entre experiências e identidades na escola". Campinas, SP: Faculdade de Educação, Unicamp, 2002. (Dissertação de Mestrado em Educação).


 

Versão para impressão

Anterior Proxima

Atualizado em 10/08/2005

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

Licença Creative Commons
SBPC/Labjor
Brasil