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Sivam: defeitos de origem

O projeto denominado Sistema de Vigilância da Amazônia, mais conhecido pela sigla Sivam, é uma das ferramentas tecnológicas mais modernas para estudo da região amazônica. No entanto, não representa um consenso entre pesquisadores. Apesar de muito elogiado pelos mecanismos que oferece para os mais variados tipos de pesquisa, as polêmicas ainda latentes envolvendo o projeto residem, em primeiro lugar, na suspeição de alguns dos atores envolvidos, como a empresa norte-americana Raytheon, com um histórico de atuação em projetos de espionagem militar. Em segundo lugar, critica-se os softwares utilizados, acusados de serem suscetíveis ao vazamento de informações. Independente de tais problemas, o fato é que, passados mais de sete anos de seu início, as ferramentas mais utilizadas para combater o desmatamento ainda são as informações obtidas via satélite, que estão pouco relacionadas ao Sivam.

O primeiro projeto idealizado pelo governo brasileiro, que guarda alguma semelhança com o Sivam, foi o Calha Norte, iniciado em 1986. Destinado especificamente a controlar as atividades existentes nos cerca de 6.000 Km de regiões fronteiriças do norte do Brasil, era baseado essencialmente na intensificação da presença das forças armadas e da Funai nas terras ao norte dos afluentes dos rios Amazonas e Solimões. Já o Sivam, idealizado em 1990 e efetivamente iniciado em 1997, guarda também interesses semelhantes, porém com diretrizes mais aperfeiçoadas. A extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos, responsável pela concepção inicial do projeto, constatou que, além da necessidade de um sistema continuado de vigilância e proteção do teritório amazônico em relação a práticas ilegais, era preciso superar a ineficácia generalizada na obtenção de dados confiáveis sobre a Amazônia, a fim de permitir um planejamento de médio e longo prazos. Daí que ele caracterizou-se não como um sistema militar, mas voltado para obtenção de dados que proporcionassem uma ação integrada dos ministérios da Justiça, Meio Ambiente, Saúde, Transporte e Ciência e Tecnologia, além dos comandos militares.

A controvérsia inicial foi marcada por dois pontos. Em primeiro lugar, o projeto seria instalado mediante a compra de um pacote fechado de tecnologia, incluindo, por exemplo, tecnologias de sensoriamento remoto e monitoramento ambiental já disponíveis e desenvolvidas no Brasil, conforme nota emitida pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em 1996.

Em segundo lugar, sua concepção não estaria em sintonia com as demandas e com a dinâmica de trabalho de todos os órgãos envolvidos. Sobre esta polêmica, no mesmo ano e no calor das discussões, o engenheiro Gilberto Câmara, pesquisador do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), apresentou a comunicação “O projeto Sivam e a biodiversidade amazônica: há espaço para a ciência nacional?” na 48a. Reunião Anual da entidade. Em linhas gerais, Câmara afirmou, na sua comunicação que, apesar de congregar engenheiros brasileiros e norte-americanos de larga experiência técnica, o projeto Sivam continha “erros sérios”. Um deles ia ao encontro do próprio parecer da SBPC: o Sivam adotava uma estratégia centralizadora e concentradora, desconsiderando que diversas instituições brasileiras responsáveis por prover informações ambientais (como a Embrapa, o IBGE, a Sudam e o Ibama) já permitiam o acesso a ferramentas computacionais para tratamento da informação geográfica, pressupondo assim que elas iriam abrir mão dos próprios laboratórios que estavam sendo instalados para processar e armazenar dados, que já estavam coletando, em nome do que o Sivam propunha. Além disso, o Sivam trabalhava com um conjunto fechado de requisitos a serem atendidos, tratando as instituições brasileiras genericamente como “orgãos usuários”. Deste modo, pressupunha que um grupo de engenheiros sem qualquer vivência na resolução de problemas ambientais, pudesse desenvolver, isolado nos EUA, soluções que atendessem aos problemas ambientais da Amazônia. Por fim, pressupunha também que a tecnologia de sensoriamento remoto (processamento de imagens de satélite e aeronave) seria possível, por si só, de responder questões relativas a, por exemplo, a biodiversidade e a Amazônia, e a poluição dos rios na região.

O equaciomento de questões como essas foi parcialmente respondido em 2002, quando foi criado o Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia) com o objetivo expresso de “integrar informações e gerar conhecimentos atualizados para articulação, planejamento e coordenação de ações globais na Amazônia Legal Brasileira, visando a proteção, a inclusão social e o desenvolvimento sustentável da região”.

Porém, para constatar a complexidade do problema e que ele ainda não foi resolvido, basta visitar o site do Sivam. Um dos links se dispõe a responder as perguntas mais freqüentes sobre o projeto, onde aparece a questão se ele foi iniciado antes da estruturação do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam). A resposta é que “o Sistema de Proteção da Amazônia tem sido objeto de estudos de detalhamento (...)” cujo objetivo seria “moldar o Sipam às particularidades funcionais e operacionais de cada órgão, mantidas suas respectivas autonomias”. No entanto, afirma-se que “esses trabalhos encontram-se em andamento e visam estabelecer um modelo organizacional do Sipam, a participação de cada órgão no Sistema e, ainda, estruturar a operação e a manutenção do Sivam”. Ou seja, o problema ainda carece de resolução.

Sendo assim, o fato é que o combate ao desmatamento ainda é feito por informações obtidas por órgãos de pesquisa do Brasil, que já atuam com informações obtidas via satélite há um bom tempo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Segundo Carlos Nobre, pesquisador do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTec) do Instituto, “a principal ferramenta de combate ao desmatamento são as informações obtidas via satélite, através de um sistema de monitoramento implementado pelo Inpe, que são enviadas a órgãos estaduais de controle ambiental, ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis(Ibama) e ao Ministério Público”. No entanto, o pesquisador afirma que as ferramentas do Sivam têm condições de propiciar um salto qualitativo no combate ao desmatamento: “Eles dispõe de aeronaves que podem gerar dados sobre desmatamentos e queimadas com grau de detalhes muito maior que os satélites”, afirma. Porém, ele lamenta que essas informações ainda não estejam sendo usadas. O caminho para reverter tal situação seria de responsabilidade do governo, que deveria capacitar os funcionários dos órgãos de controle ambiental para usá-las: “São dados de uma natureza de alto conteúdo tecnológico, que demandam treinamento específico”, afirma.

Porém, o pesquisador também identifica problemas que estão ligados à concepção do Sivam: “Algumas ferramentas que o Sipam/Sivam pretende usar, a partir de informações via satélite, o Inpe já desenvolveu e implantou há muito tempo. É uma tecnologia que já conhecemos e responsável pelo fornecimento de informações a centenas de órgãos de pesquisa e controle ambiental”, diz. Nesse sentido, Nobre critica uma tendência do Sipam/Sivam de tentar coibir o Inpe de fazer determinados levantamentos. “Eles possuem tecnologias que não possuímos e deveriam desenvolvê-las; já a parte relacionada às informações via satélite o Inpe faz muito bem e vai continuar fazendo”, diz ele.

Questionado sobre um eventual risco de restrição ao uso ou manipulação de informações, já que o projeto tem como parceiros empresas e órgãos ligados ao governo norte-americano, Nobre não constata nenhum problema: “o risco de haver restrição à determinadas informações pode ocorrer apenas quando o governo brasileiro estiver organizando, por exemplo, alguma operação sigilosa de combate a atividades criminosas, usando dados que não poderiam ser divulgados”.

Álvaro Crósta, diretor do Instituto de Geociências da Unicamp, partilha da mesma opinião: “Até o momento, esse risco não foi aventado. Ao contrário, a Casa Civil do Governo, ao qual o Sivam é vinculado, tem cedido os dados para as universidades de maneira simples e rápida.”, afirma. Crósta explica que as pesquisas relacionadas às geociências na Unicamp têm usado os dados do Sivam com freqüência, sem nenhum problema. “Talvez em casos hipotéticos de conflitos futuros, principalmente nas áreas de fronteiras com países vizinhos, possa haver alguma restrição na cessão e usos desses dados do Sivam”, conclui.

Mas alguns críticos do Sivam focam suas divergências em aspectos ligados aos atores sociais envolvidos, como empresas e órgãos de pesquisa estrangeiros. No caso do Sivam, as críticas são focadas na empresa Raytheon, sem qualquer experiência anterior na área de controle ambiental e acusada de praticar uma série de irregularidades desde a sua contratação como fornecedora de tecnologia para o projeto Sivam (veja o BOX). Mas também apontam para a necessidade de medidas preventivas em relação a todos os projetos de pesquisa que têm órgãos estrangeiros como parceiros. É o caso do professor do Instituto de Química da Unicamp, Wilson de Figueiredo Jardim, que estuda o ciclo do mercúrio na região amazônica desde 1994. Embora não tenha se manifestado diretamente sobre o Sivam e reconheça que existam vários projetos de cooperação internacional de interesse para o país, o pesquisador faz críticas a projetos como o Experimento de Grande Escala da Biosfera – Atmosfera na Amazônia, mais conhecido pela sigla em inglês, LBA, do qual Carlos Nobre é um dos líderes e iniciadores. Orçado em cerca de US$ 100 milhões, o projeto visa utilizar torres com sensores, aviões e satélites de última geração para avaliar, entre outros aspectos, ventos, nuvens e gases sobre a floresta amazônica, analisando como se dá a interação entre floresta e atmosfera. Alguns dos satélites e aviões utilizados são de órgãos norte-americanos, como a Nasa, onde reside a polêmica. “Eu me pergunto se seria possível conceber algo similar ao LBA tendo, porém, como objeto de estudo os everglades (região de pântanos) da Flórida, colocando em campo algo como 50 cientistas brasileiros coletando milhares de dados a cada semana”, questiona Wilson Jardim.

Um segundo ponto polêmico neste processo de obtenção e processamento de informações estratégicas, principalmente no caso do Sivam, é o tipo de softwares utilizados. Para Sérgio Amadeu, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), o uso de softwares proprietários (com código fonte fechado) no projeto Sivam já representa um risco elevado. Em entrevista publicada no site NoMínimo, o pesquisador afirma que só com programas com código fonte aberto é possível saber que não estão sendo realizadas operações que o usuário desconhece. Ele critica diretamente o Sivam: “Não há nenhuma garantia de que uma cópia do que está sendo vigiado na Amazônia não seja mandada para autoridades dos Estados Unidos ao mesmo tempo em que as informações são enviadas para o nosso governo”, afirma. Ele não acusa o governo americano de fazer isso, mas afirma categoricamente: “não há nenhuma garantia institucional para o Brasil de que isso não esteja sendo feito”.

Sobre o uso de softwares com código fonte fechado, as forças armadas negam o risco de uma possível prática de espionagem. A justificativa é que o software responsável pelo gerenciamento das informações do Sivam, comprado da empresa de defesa alemã Röde-Schawartz, possui o código fonte aberto e teve seu algorítmo (modelo matemático que está na base de um sistema de comunicação) decifrado por técnicos do Centro Técnico Aeroespacial (CTA-ITA), do Centro de Estudos em Telecomunicações (Cetuc-Puc/Rio) e da Comissão para Coordenação do Sistema de Vigilância da Amazônia (CCSivam), em 2004. Na ocasião, o Coronel Paulo Esteves, integrante da CCSivam, afirmou: “Compramos um sistema de Comunicações Militares com o compromisso de garantir o sigilo das comunicações. O sistema é criptografado com saltos de freqüência, isto é, inviolável”, explicou (veja notícia completa na ComCiência).

O caso Raytheon
Especializada nos chamados “sistemas eletrônicos de defesa”, foi a primeira empresa a desenvolver sistema de mísseis teleguiados para atingir alvos em movimento. (veja reportagem completa na ComCiência). Em 1995, segundo informações divulgadas pela Comisão do Parlamento Europeu de Estrasburgo, um conjunto de empresas norte-americanas teriam se valido de recursos de espionagem industrial para vencer uma série de concorrências com grupos europeus, entre as quais estaria a disputa da Raytheon com a empresa francesa Thomson, pelo contrato do Sivam. O recurso para tal fraude seria o Echelon, um poderoso sistema de espionagem norte-americano que utiliza cerca de 120 satélites militares e estações de escuta, capazes de captar e analisar dados de comunicações eletrônicas que cruzam o mundo, como sinais de rádio, correio eletrônico, telex, fax e telefonemas. A denúncia foi reforçada pela revista Istoé, que divulgou gravações de conversas, feitas pela polícia federal, entre o representante da Raytheon no Brasil, José Afonso Assumpção, e o embaixador Júlio César Gomes dos Santos, suposto encarregado de realizar tráfico de influência a favor da empresa americana. O episódio gerou a instalação de uma CPI, que acabou arquivada em junho de 2002 por falta de provas, com voto em separado do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), que declarou , na ocasião: “Há questões que a CPI deixou de analisar, como os indícios de que o projeto não leva em conta os interesses nacionais”.

(DC)

 

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Atualizado em 10/08/2005

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