A
internacionalização imaginada da Amazônia
Os temores
diante da
possibilidade do domínio da Amazônia por estrangeiros
já fazem parte da história brasileira. Embora esses
temores nem sempre sejam verdadeiros – às vezes são
–,
certamente revelam muito sobre quem os sente. Nos últimos quinze
anos, os discursos sobre a existência de uma cobiça
externa por esse território têm ganhado força e a
internacionalização da Amazônia é um tema
constantemente revisitado. Atualmente, entre os diversos segmentos da
sociedade preocupados com essa questão – cientistas,
políticos, militares, ambientalistas, representantes de ONGs e
movimentos sociais – encontram-se análises que assumem
visões distintas sobre a internacionalização: uma
funciona pela noção de território, ligando-se
à idéia de Estado-Nação; outra opera pela
noção de capital, e é crítica à
transnacionalização da economia.
Para aqueles que
imaginam
a internacionalização a partir da perspectiva do
território, a invasão e a tomada da Amazônia por
outras nações, com a criação de um governo
específico para sua gerência, são factíveis
e, embora ainda não tenham acontecido, se constituem em perigos
iminentes com os quais o Estado brasileiro deve se preocupar. Os
defensores dessa hipótese, principalmente os militares
brasileiros, argumentam que as reservas de energia e água do
planeta estão próximas do esgotamento e que o potencial
da floresta amazônica resultará, inevitavelmente, em
futuras investidas das grandes potências mundiais sobre o
território brasileiro. Os discursos proferidos por autoridades
estrangeiras com freqüência alimentam tais
desconfianças, como a fala de Pascoal Lamy, na época
comissário de Comércio da União Européia, e
atual diretor-geral da Organização Mundial do
Comércio (OMC) que, ainda este ano, se referiu às
florestas tropicais mundiais como “bens públicos
mundiais” que
deveriam ser submetidas a uma “gestão compartilhada
internacional”.
Já os que
analisam
sob o ponto de vista do capital, denunciam que a
internacionalização da Amazônia já
está acontecendo, não pela tomada de território
físico, que é considerada hipótese remota, mas por
mecanismos mais atuais e refinados ligados à
exploração econômica: a aposta cada vez mais forte
na mercantilização da natureza; a abertura ao mercado
externo; o estímulo à participação do
capital estrangeiro no país; e a flexibilização
das políticas de exploração das florestas. Nessa
perspectiva, os inimigos – os interesses transnacionais –
já
estariam em território amazônico representados pelas
indústrias madeireiras, mineradoras, farmacêuticas e de
sementes.
Essas
noções de internacionalização têm
sido mobilizadas em diferentes situações e, muitas vezes,
em nome da defesa dos interesses nacionais e da soberania do
país, resultam em generalizações e reducionismos
perigosos, alerta Andréa Luisa Moukhaiber Zhouri, do
Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de
Minas Gerais. Para a pesquisadora, a polarização
nós-eles, brasileiros-estrangeiros, tem transformado sociedades
multiétnicas e multiculturais em massas sem especificidades e
diferenças.
Nessa
lógica,
ambientalistas são tomados por capitalistas, todas as ONGs
são tratadas como invasoras e qualquer uso de recursos
estrangeiros é classificado como prática de incentivo
à internacionalização. Como resultado, movimentos
sociais, ONGs, entidades estrangeiras, comunidades indígenas e
tradicionais, que lutam pela garantia de direitos humanos e ambientais,
têm suas reivindicações desautorizadas e temas
complexos como a sustentabilidade na Amazônia são
reduzidos a problemas de conspiração internacional e
segurança nacional.
Forças
armadas trabalham com possível invasão da Amazônia
Se, para muitos,
a
internacionalização da Amazônia, como
apropriação e ocupação de
território, é apenas uma lenda, um mito, um fantasma,
para as Forças Armadas brasileiras ela é uma
possibilidade. O cientista político Paulo Ribeiro Rodrigues da
Cunha, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(Unesp), conta que “os militares brasileiros hoje analisam que a
situação não é propriamente de perigo, mas
que remete, projeta, um conflito futuro para daqui a 30 ou 40 anos com
o inimigo mais provável: os EUA”. Por isso, os militares
tornaram a Amazônia uma prioridade nacional quando o assunto
é a defesa da soberania do país e têm,
sistematicamente, transferido tropas do sul para a região Norte.
Cunha avalia
como
“extremamente positiva” essa movimentação das
Forças Armadas. Em sua opinião, “não devemos
ser
paranóicos, mas muito menos ingênuos. Objetivamente temos
que pensar que a internacionalização é algo que
pode de fato acontecer. Embora estejamos em um mundo
‘civilizado’,
estamos muito próximos da barbárie, cujos valores
são construídos e facilmente subjugados aos interesses
econômicos, como vimos no Iraque”.
A ameaça
de
ocupação internacional da floresta já alimenta os
projetos das forças armadas a muitos anos. Entre os argumentos
apresentados pela Secretaria Geral do Conselho de Segurança
Nacional para a criação do Projeto Calha Norte, em 1985,
por exemplo, estavam: a cobiça internacional dos recursos
minerais existentes na região; o crescente trânsito ilegal
de estrangeiros; a instabilidade interna nos países vizinhos; a
intensificação dos conflitos de terras; e pressões
(internas e, sobretudo, externas) para criação de
reservas indígenas em áreas ricas de minérios e na
faixa de fronteira. Essa argumentação se repetiu na
época da implementação do Sistema de
Vigilância da Amazônia (Sivam). É o que explica
Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, fundador e pesquisador do Núcleo
de Estudos Estratégicos da Unicamp, em seu artigo “Defesa
com democracia e desenvolvimento”.
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Fonte:
http://www.fpa.org.br/td/td24/td24_debate01.htm |
Cavagnari, que
não
acredita numa possibilidade de invasão do território
nacional por forças estrangeiras, teme que “a
paranóia da
internacionalização esteja reduzindo equivocadamente a
defesa nacional à defesa da Amazônia”. Para ele
“não se deve pensar a Amazônia sob critérios
de
defesa militar, sem nenhum compromisso com a preservação
do meio ambiente e sobrevivência das comunidades
indígenas, na perspectiva de solucionar um problema militar que
é inexistente”.
Mecanismos
atuais
de internacionalização operam pelo capital
Para o
ex-governador do
Amapá e atual senador João Alberto Capiberibe “a
idéia de internacionalização como invasão e
tomada do espaço físico é um pouco remota”.
Em sua
opinião, a internacionalização do Brasil já
se deu com a entrada de capital financeiro estrangeiro. “Os
mecanismos
atuais de dominação não passam necessariamente
pela presença física de uma ou outra potência. Eles
mudaram, e são tão danosos ou piores. Quando temos a
presença física do inimigo sabemos como nos defender, mas
quando temos a presença do capital financeiro que, do dia para
noite, muda de um lugar para o outro e deixa a população
na mais completa miséria, aí é complicado de
combater”, analisa.
Para o
economista
Aluízio Lins Leal, da Universidade Federal do Pará
(UFPA), a Amazônia também já está
internacionalizada pelo capital. “Hoje não se
internacionaliza
como antes, com guerras. Hoje o capital tem uma plasticidade tamanha
que uma guerra é internacionalizada por meio do controle das
economias dos países em desenvolvimento. E aqui na
Amazônia o núcleo estratégico da economia regional
está todo nas mãos do capital multinacional”, disse
em entrevista recente ao Boletim da
Associação dos Docentes da Universidade de
Brasília (ADUnB).
Segundo o
economista, os
grandes projetos minerais da Amazônia estão atualmente sob
controle da empresas estrangeiras – a canadense Alcan
Alumínio
do Brasil, a multinacional brasileira Vale do Rio Doce e a Albras, da
Alunorte, controlada pela Nikon Amazon Aluminum Corporation – que
juntas abastecem o mercado mundial com bauxita metalúrgica e
alumínio primário. Carajás também é
controlada por capital japonês e exporta aproximadamente 90
milhões de toneladas de minério de ferro por ano. As
mineradoras Pará Pigmentos e a Rio Capim Caulim são duas
associações de empresas brasileiras com capital
estrangeiro que, segundo Leal, daqui a três anos vão
transformar o Pará em um exportador de caulim maior do que os
Estados Unidos.
A retomada de
grandes
projetos de infra-estrutura para a região amazônica, que
foram abortados na década de 1970 e 1980 por conta da
crítica ambientalista, também é, na opinião
de Andréa Zhouri, um plano de abertura da floresta para o
mercado externo operando, nesse sentido, a
internacionalização econômica da Amazônia.
Destacam-se a Iniciativa de Integração da Infra-estrutura
Regional Sul-americana (IIRSA) <Leia mais na entrevista com
Elisangela Paim “Projeto milionário pode trazer graves
prejuízos ambientais” >, um ambicioso projeto para
o
setor de transportes, avaliado em mais de US$ 20 milhões, que
visa a retomada da estratégia dos eixos de abertura para
integração econômica dos países
sul-americanos; e a construção da usina
hidrelétrica de Belo Monte no alto do Xingu que foi aprovada
recentemente < leia mais no dossiê
organizado pelo Instituto Socioambiental “A
polêmica da Usina de Belo Monte” >. “O retorno
desses
empreendimentos denota a existência de um plano de
desenvolvimento para a Amazônia voltado para
exportação de mercadorias, com fins de
acumulação de riqueza abstrata, e não com fins de
um desenvolvimento local, alternativo, que incorpore as culturas, as
diversidades locais e as condições ecológicas das
localidades”, analisa Zhouri.
Internacionalização
alimenta “nacionalismo seletivo”
Quando se fala
em
internacionalização, hoje, as dúvidas e
acusações recaem, na maioria das vezes, sobre as
organizações não-governamentais de forma
generalizada. “A maioria das ONGs trabalha com interesses
ambientais e
das comunidades locais, mas é claro que existem algumas que
representam interesses do grande capital e que estão lá
para fazer biopirataria”, comenta Capiberibe. Para o senador
“é
preciso modificar o discurso, principalmente no parlamento, em que
há uma tendência de classificar todas as ONGs na vala
comum: da infiltração, da tentativa de internacionalizar
e dividir o país. Isso não é verdade, tanto que
existe um conflito com as oligarquias locais que querem a floresta para
exploração dos recursos madeireiros na Amazônia sem
nenhuma preocupação com limites legais ou
éticos”.
Para
Andréa
Zhouri, o discurso da internacionalização da
Amazônia tem sido usado em diferentes momentos da história
brasileira, principalmente por políticos e militares, quando o
assunto é demarcação de terra indígena ou
preservação das florestas, caracterizando uma
espécie de “nacionalismo seletivo, que é permissivo
quando se tratam dos atores do capital, mas que é desconfiado
quando se trata da sociedade civil ou entidades que representam a
defesa dos direitos das comunidades ou os direitos ambientais”.
Em seu artigo
“O fantasma da
internacionalização da Amazônia revisitado”
a cientista social mostra que os temores de uma possível
internacionalização da Amazônia deram legitimidade
ao exército para, em 2001, investigar movimentos sociais,
organizações sindicais, partidos políticos e ONGs,
em especial, MST, a CUT, o PT e ONGs ambientalistas que “eram
consideradas como 'forças adversas', admitindo-se 'arranhar
direitos' em seu combate”. Em sua opinião, “ao
deslocarem a atenção para ONGs e movimentos sociais, os
militares deixam escapar da crítica os interesses transnacionais
realmente atuantes na Amazônia: as indústrias madeireiras,
mineradoras, farmacêuticas e o agronegócio”.
Além disso, contribuem para deslegitimar as demandas dos povos
indígenas, ambientalistas e defensores dos direitos humanos na
sociedade, como se viu no caso do massacre dos Yanomami e, mais
recentemente, na demarcação da terra indígena
Raposa Serra do Sol.
(SD)