Olho-Leviatã
Luiz Felipe Soares
A preposição do título, Um homem com uma câmera, mantida em várias línguas, ligando uma idéia de um organismo biológico (homem) com a de um mecanismo (câmera), é o principal elemento organizador do filme de Vertov (de 1929). O que conduz o filme é uma complexa rede metonímica a entrelaçar as duas séries, a biológica e a mecânica. Em outras palavras, a relação homem-máquina é sua principal idéia organizadora: a possibilidade mesma da mescla entre homem e máquina motiva de um esfuziante otimismo, que diz respeito, talvez, a uma nova idéia de corpo, carregada de sentido político. Quase tudo o que acontece com um lado, o biológico, acontece com o outro, o mecânico, muitas vezes sendo impossível localizar a fronteira entre eles.
Na primeira seção do filme, a idéia do amanhecer inunda as imagens de ambas as séries. Aos planos da trabalhadora dormindo, com tudo o que trazem de intimidade, calor e aconchego, associam-se imagens de mecanismos parados, porém prestes a começar a funcionar – máquinas nas fábricas, bicicletas nas vitrines, máquinas de costura. Tanto quanto o corpo aquecido sob a coberta, o metal frio parece também, metonimicamente, dada a montagem esperta, respirar potência: dali sairão trabalho, energia, transformação, ato.
Os detalhes do vestir-se, ao acordar, destacam a integração do corpo da moça ao mundo industrial: a fricção da meia, com sua elasticidade, na pele das pernas, as ligaduras, o fecho do soutien em close, tudo funcionando como esperado. Ainda na mesma seção (a do amanhecer), os bonecos sublinham a metonímia que coordena a montagem. Aqueles corpos plásticos participam de ambas as séries – o que ficará mais evidente pouco depois, quando eles começam a pedalar ou a costurar. Outro realce fundamental à mesma metonímia está, evidentemente, na referência ao cinema em geral, e à produção do próprio filme em particular (aspecto deste filme já muito comentado). Particularmente importante nesse sentido é a idéia de casamento humano dissolúvel que aparece no esquematismo das seqüências no cartório: o casamento seguido de divórcio entre humanos antecipa, por oposição, um casamento mais duradouro entre pessoas e máquinas.
Fundamentando ainda mais esse casamento homem-máquina, surge uma série particular de metonímias, desta vez centrada na figura do olho: os olhos da moça, ainda ao amanhecer, abrem e fecham paralelamente (em planos alternados) ao abrir e fechar da persiana de sua janela. Além disso, o filme é recheado de planos com óbvias superposições entre olho e câmera, retomando a idéia central do Kinoglaz, que Vertov dirigiu cinco anos antes. A transparência de vidros (de portas e janelas) e instrumentos óticos em geral soma-se à do cristalino humano na busca de uma verdade documental, límpida e ágil, saudável – aquela de outro filme anterior de Vertov, Kinopravda, de 1925. Na base epistemológica dessa verdade transparente está não só a identificação hegeliana (passando por Marx) entre a razão histórica e o real, mas também, de modo mais geral, diria Agamben, a prevalência da ontologia do ato sobre a da potência.
Enquanto o sol se eleva, as justaposições de planos de máquinas e de homens vão sendo reiteradas pela montagem sofisticada (também eisensteiniana) que realça a idéia de progressão: é o ritmo agora que se faz metonímia para as imagens de máquinas que, casadas com pessoas, se (e as) locomovem, progredindo de um lugar a outro. Os trilhos velocíssimos, filmados de dentro do trem, são metáfora do movimento igualmente linear e rápido do filme na câmera e no projetor. Ao mesmo tempo, o próprio filme reitera imagens de progresso ligadas ao corte (facas, tesouras, machados) e à costura – atividades pelas quais o homem, com seus gadgets, fabrica (não só) meias, soutiens, vestidos, calças, chapéus etc e se civiliza, torna-se “absolutamente moderno”. Assim como acontece com a locomotiva, o corte e a costura tornam-se metáforas, também, da produção do filme, aqui explicitamente cortado e montado para existir.
Essa metaforização da costura em Vertov nem sempre é comentada. Acontece que o princípio mecânico que move a locomotiva, a máquina de costura, a câmera e o projetor é o mesmo: a equivalência entre o movimento circular e o oscilatório. Uma das pontas de uma haste é ligada a um ponto excêntrico de uma roda; a outra ponta, ao elemento que trabalha em vai-e-vem. Na locomotiva (assim como no pistão do carro em relação ao virabrequim), é assim que a energia produzida na caldeira se transmite à roda; na máquina de costura, liga-se assim o giro dos pedais (ou do motor, posteriormente) à agulha; na câmera, é assim que o giro da manivela (ou do motor, posteriormente) promove o abre-fecha do obturador.
O tal progresso social e político, então, é movido, possibilitado mesmo, por esse casamento homem-máquina em que a energia de um se transmite ao outro, entre rotação e fricção. No caso particular do suposto protagonista (o homem que está com a câmera no plano diegético), a manivela torna-se fundamental: é ela, movida pela mão dele, que promove não só o funcionamento da câmera como também seus movimentos direcionais sobre o tripé. Num determinado momento, bem próximo à metade do filme, quando a progressão do ritmo dá à montagem um caráter frenético, torna-se especialmente convidativa a associação da rapidez e da maestria com que ele manipula as manivelas com uma bolinação eficiente: mais do que operar, o operador, excitado, excita a câmera com as mãos. Há uma fusão entre organismo e mecanismo: tripé, pernas, mãos, manivelas, potência, fricção, geração.
A longa seção que se segue, a dos esportes e do prazer corporal (que dura até a seqüência em que a câmera se torna autônoma, montando-se sozinha no tripé) é a única de ritmo ameno, é a única em que as máquinas não interferem, é a única em que pessoas trocam carinhos. Enfim, essa seção, a única que privilegia corpos humanos sobre máquinas, é calma e relaxada, suspensa, como no momento posterior ao orgasmo.
A máquina que traz de volta, porém, a progressão rítmica anterior é justamente a câmera autônoma em seu tripé, cuja auto-montagem mágica se dá diante de olhos humanos incrédulos. É possível associá-la metaforicamente ao curto plano do parto humano: nasce ali, no reino pós-orgásmico da câmera-olho, um mecanismo que se basta. Não é (nunca teria sido) máquina pura, nunca existiria sem contato humano: é clone, cria que dispensa o pai e se estabelece em sua ausência. É a câmera sobre o tripé, já sem o homem, que triunfa gigantesca sobre toda uma população, uma coletividade monstruosa e sem rosto a seus pés. Não há como não lembrar, em Benjamin, a imagem das massas que se vêem no cinema, porém através de um olho que não é exatamente o olho de cada um, nem, talvez, um olho das massas: trata-se na verdade de um olho-câmera. Aquele conjunto câmera-tripé que nasce autônomo é um novo leviatã, o corpo mesmo do estado tecnológico totalitário que se seguiu ao otimismo leninista – e não só, diria Agamben, na terra de Vertov.
Luiz Felipe Soares é professor de cinema da Unisul
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