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Utopias e ficções

Carlos Vogt

Ao sair de casa, naquela manhã, deste ano distante do senhor, 2050, não me dei conta de imediato, de que estava numa terra estranha. Mais estranha ainda porque parecia familiar. A mistura de estranheza e familiaridade, depois, ou melhor dizendo, antes, me dei conta, dava-se particularmente pelo fato de estar na minha cidade, na minha terra, no meu país e, ao mesmo tempo, não me ver reconhecido nos cumprimentos que trocava, automaticamente, com os transeuntes daquela manhã de esperança e desespero.

Ao sair de casa, naquela manhã, daquele ano distante do senhor, 2050, não se deu conta, de imediato, de que estava numa terra estranha, num futuro próximo, num espaço hostil para onde havia sido teletransportado na noite anterior. Por sua vontade e contra ela. Por sua vontade, porque, na curiosa sofreguidão de seus 20 anos, não via a hora de conhecer o que era proibido para os que, como ele, não portavam desde o nascimento o gene da distinção.

Contra a sua vontade, porque, ao ser descoberto em seus anseios, pela leitura digital cotidiana de sua transpiração, como era rotina no alojamento dos assim chamados “despossuídos genéticos”, o guarda de zelosos programou-lhe, como castigo e susto preventivo, a teletransportação ora em curso, para expô-lo aos riscos do inusitado e, desse modo, aplacar-lhe o desejo do inominável.

Frederico Otávio Ribeiro jamais seria o mesmo, nem antes, nem durante, nem depois da viagem de seu alheamento.

Ao sair de casa, na manhã cinzenta deste dia, comum como outros dias, do calendário em curso – ano do senhor, 2050 – ele não podia deixar de pensar na aventura de ter podido escapar ao controle dos zelosos e ter ido visitar na noite anterior uma colônia de excluídos nas franjas da Colina dos Remitentes.

Passara a noite com eles e embebedara-se com seus rituais e práticas de que só tivera conhecimento pela leitura clandestina dos diários de seu avô, descobertos enterrados no jardim virtual do sítio de preservação ambiental, no clube freqüentado por sua família.

Caminhava com a sensação de algo travado nas suas relações com os planos de futuro que lhe eram ensinados a cada dia na escola vocacional de líderes, que todos, como ele, distinguidos pela seleção genética dos diretores da vida, freqüentavam na idade da consolidação de suas virtudes sociais.

Alguma coisa como que se rompera.

Um frasco de vinagre, um vinho envelhecido pela coroa de borra branca, um amargo no fundo da língua, perto da garganta, um travo de sensação – sentimento era a palavra nos escritos do avô – de que já não seria possível levar-se no presente com a mesma tranqüilidade aplastada pela certeza confiante de futuros tranqüilizadores.

Era o passado que nesse momento o diferenciava, tornando-o igual, em detalhes e em conceitos, a si mesmo, visto de fora e de dentro, em situações que, não tendo vivido de fato, no entanto, as reconhecia e nelas se reconhecia pela vivência narradora do avô no estilo despretensioso do simples registro da vida.

Essas três breves aberturas de narrativas com foco no futuro, inventadas ao acaso e como exercício para o tema de ciência e ficção, ou seja ficção científica, ou ainda ciência fictícia, têm em comum um traço que considero constitutivo do gênero: a tristeza inerente ao impossível.

São tristes os heróis das utopias por duas razões fundamentais. A primeira é a de que vivem, no futuro narrado, a transgressão sem conseqüências (a não ser para confirmar a sua própria impossibilidade) de um presente ameaçador das histórias do passado. A segunda razão é que, sendo único, mesmo que numa alegoria, o herói vive no limite de querer realizar o que sua consciência cidadã, seu alter-ego, se se quiser, diz-lhe para não ousar fazer mesmo que tenha poderes para tanto: mudar o passado, alterando o rumo da história, interferindo na série dos acontecimentos, reordenando-lhes o sentido e mesmo usurpando-os da morte.

Há coisa mais triste do que a cena em que, num dos filmes do Super-Homem, inconformado com a morte da namorada, o homem de aço, torturado pelas suas responsabilidades éticas e civis, não consegue deixar de levar-se pelo amor e, fazendo a Terra girar em rotação contrária, transgride a razão por causa da mulher. E a música de Gilberto Gil que também se chama Super-Homem poderia ser mais bonita e mais triste?

Tristes são os heróis das duas mais famosas utopias escritas no século XX: Admirável mundo novo, de Aldous Huxley e 1984, de George Orwell, a primeira publicada em 1932 e a segunda, em 1949. Num caso e noutro, quer pelo controle genético, quer pelo controle político, as sociedades que nos livros se desenham são altamente controladas e artificialmente felizes. Os heróis, o selvagem, no primeiro caso e Winston Smith, um programador da história no Ministério da Verdade, vivem, a seu modo, os contrapontos da ruptura subjetiva que a ordem estabelecida provoca em cada um deles pela exposição de suas vidas e experiências ao antigo e ao novo, alternativamente, ao passado e ao presente, à memória e ao sem-memória, ao amor e ao total esquecimento.

A mais famosa utopia de que se tem notícia é a que está contida na obra de Thomas More (1478-1535) que imortalizou a palavra no próprio ato de sua criação. No livro Utopia, publicado pela primeira vez em 1516, a ilha do lugar nenhum, num tempo sem coordenadas é, ao mesmo tempo, uma crítica à situação econômica da Inglaterra de seu tempo e a idealização de um Estado político que poderia ser alinhado como matriz de idéias que muito tempo depois seriam criticadas por Marx como próprias do socialismo utópico em oposição ao seu, assim chamado, socialismo científico.

Sir Thomas More, como se sabe, depois de grande sucesso como intelectual humanista e como político, caiu em desgraça por recusar-se a aceitar o divórcio do rei Henrique VIII da rainha Catarina de Aragão para permitir o seu casamento com Ana Bolena. Acusado de alta traição, confinado na Torre de Londres, veio a ser executado em 1535, sendo posteriormente, mais de 3 séculos depois, em 1886, beatificado e, em seguida, já no século XX, em 1935, sob o papado de Pio XI, a 4 séculos de distância de sua morte, tornado santo pela Igreja Católica Apostólica Romana.

Pode haver trajetória de maior reconhecimento e sucesso e a um só tempo de tão reconhecida tristeza e melancolia do que esta?

De um modo geral, as utopias da ficção, científica ou não, têm em comum a idealização de um sistema social sem propriedade ou, ao menos, sem a sua perpetuidade, de modo que o estado de feliz beatitude dos “utopianos”, através dos tempos, venha, desde a A república, de Platão, anunciado sobre a suposição de igualdade entre todos, a menos dos escravos, é claro, e sem os móveis materiais da ganância e das desvirtudes suas aparentadas. Basta lembrar que na ilha de Thomas More, o ouro e a prata não têm utilidade na sociedade dos felizes, a não ser como material para confeccionar grilhões para os escravos, situação a que, como punição e castigo, são levados os prisioneiros de guerra, os adúlteros e os criminosos em geral.

Nessa linha de desprendimento material de que faz apanágio o desapego da propriedade, a obra de Morelly, Brasilíada, de 1753, influenciada pelo trabalho de Thomas More, não só aponta a propriedade privada como o mal maior da humanidade como considera que os meios de produção, no caso agrícola, devem estar sob total controle do Estado, apenas tolerando-se a religião e preservando o papel fundamental da família na estrutura do tecido social.

Nessas e em outras utopias o controle da sociedade é, como dissemos, ou político ou científico, quando não os dois a um só tempo e muito mais raramente e mesmo nunca de política científica ou de ciência política, que são, na verdade, invenções mais recentes, uma para tentar dizer socialmente o que deve ser a ciência e outra para tentar explicar como é a política. São, de qualquer modo, menos utópicas do que os estados que projetam ou do que aqueles cujos mecanismos de funcionamento tentam expor à compreensão pública dos cidadãos que neles vivem. Utopia?

Voltando às nossas ficções, o traço de tristeza que lhes é constitutivo tem a ver com a utopia do igualitarismo social que ou apregoam, no caso das utopias clássicas e das que delas derivam, ou que desenham, com feio horror, em tons cinzentosde monótona mesmice, como é o caso de Admirável mundo novo e 1984. Num caso, pinta-se o paraíso perdido a que se quer voltar; no outro projeta-se, em negativo, o paraíso que já se perdeu sem, contudo, a consciência da perda e da própria impossibilidade de sua recuperação.

Desse modo, a impossibilidade de sucesso da aventura traz a tristeza do esforço desgastado da humanidade. E os heróis são tristes, as sagas são tristes, as situações de convivência são tristes porque triste é o peso incomensurável da queda e da perda mítica e definitiva do estado de graça original em que Deus, no Gênesis, pôs a mulher e o homem no Éden, deixando-os, contudo à sorte de sua curiosa fascinação e horror pela árvore da vida e pela árvore do conhecimento.

Os paraísos assim idealizados, qualquer que seja o sinal, positivo ou negativo, são, na verdade, infernais, ou porque se está neles ou porque se quer sair deles, ou ambas as coisas, sendo que o movimento para o futuro é quase sempre a afirmação metafórica da idealização do passado e do esforço vão de fazê-lo acontecer novamente, inutilmente. Mesmo que pela escritura poética de grandes autores como Asimov, Arthur Clarke, Ray Bradbury, só como exemplo, nós nos convençamos e sejamos até mesmo persuadidos de que em algum ponto de cruzamento de nossos passados, individuais e coletivos, alternativas de rotas se apresentaram para outros futuros que não esses que conhecemos na realidade do presente em que vivemos. Mas essas rotas não foram seguidas, e a escolha feita, por determinação de leis ou pelo acaso de circunstâncias, foi única, na singularidade positiva de sua afirmação e múltipla na afirmativa da negação da escolha, feita também da ausência paradigmática de todas as alternativas negadas.

No fecho do livro As cidades invisíveis, Italo Calvino enumera, no atlas do Grande Khan, “mapas de terras prometidas visitadas na imaginação mas ainda não descobertas ou fundadas”, e que são, na verdade, utopias desenhadas por diferentes autores, como é o caso de Thomas More, de Tommaso Campanella (1568-1635) com sua Cidade do sol, do Marquês de Sade (1740-1814) com a sua Tamoé no livro Aline e Valcourt, e de outros mais.

O Grande Khan folheia seu atlas e percorre os mapas de cidades ameaçadoras, aquelas que “surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Admirável mundo novo.

No diálogo final, diz o Grande Khan:

- É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.

E Polo:

- O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”

Para onde aponta no atlas o diálogo de Marco Polo e o Grande Khan? E no mapa apontado, para que ilha, continente, cidade, abrigo volta-se a flecha indicativa do caminho a seguir por cada um de nós, pela sociedade, pela humanidade em trânsito?

No livro de Italo Calvino, pode-se dizer que contar, narrar o invisível é mostrar, revelar o aparente, de modo que ao falar do que não existe como geografia real, o autor nos leva a descobrir a realidade geográfica do mapeamento de nossa inserção no mundo como acidente permanente, pelo acontecimento, e como permanência incidental, pelo transcurso do acontecido.

Os futuros por que a literatura nos leva a viajar, nos vôos da ciência e da imaginação, são, no caso das boas obras de ficção científica, muito menos peças enfadonhas de futurologia e mais pousos assentados de reflexão, humor e poesia sobre a saga incontinente do homem em torno do fato, em torno do mundo, em torno do homem, em torno de si mesmo.

A obra de ficção científica, ao projetar futuros, fala do presente para entender passados e, assim, apontar alternativas para futuros já irrealizáveis. Por isso, a impossível tristeza desses futuros, como a da cena final antológica da fuga do par amoroso em Blade Runner no sobrevôo dos campos verdes e fecundos de estéril solidão.

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Atualizado em 10/10/2004

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