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Cientista: entre deus e louco?

Um cientista louco, obcecado pelo poder, realizando experimentos condenáveis pela sociedade, ou obtendo aplicações tecnológicas que saem de controle. O cientista como uma figura estranha, com hábitos e comportamento muito diferenciados. Caos, holocausto, um mundo excessivamente controlado. Esses são elementos comuns na ficção científica, seja na literatura ou no cinema. Mas até que ponto influenciam ou refletem a opinião da sociedade em geral?

Para o sociólogo e jornalista, Jesus Paula Assis, essa visão negativa não influencia o leigo a ter medo da ciência, pois há um distanciamento entre ficção e realidade. “A ficção é só uma maneira, um personagem a mais. Acho que não reflete, nem influencia a opinião nesse sentido. Reflete, na verdade, um outro aspecto: ciência e cientistas são vistos sempre como muito importantes, como forças muito grandes”, diz ele.

Nesse aspecto, Assis identifica uma visão semelhante à do jornalismo científico. “A postura de reverência é a mesma. Em ambos os casos, o cientista é o sujeito, quando se trata de futuro. Mas sabemos que isso é falso, pois o que acontecerá no futuro é decidido por muita gente que não é cientista. Basta olharmos atentamente para os departamentos de pesquisa das universidades ou das empresas, os cientistas não são especialmente importantes nesse negócio. Mas no imaginário, o cientista é alguém poderoso, e é atribuído à ciência um poder muito grande, que no fundo ela não tem”, argumenta Assis.

Essa falta de exploração da natureza do trabalho do cientista e a atitude reverente distanciam, segundo Assis, ciência e cientista da sociedade. Ainda sobre a imagem da ciência e do cientista no jornalismo científico, ele afirma que esse distanciamento é reforçado em geral pela tentativa de melhorar o grau de educação científica das pessoas, valorizando mais conteúdo e não forma. “Fala-se e explica-se muito, por exemplo, o que são elétrons, - diz Assis - mas pouco se explora como cientistas trabalham em laboratório, sobre as quantidades de acidentes, de erros, idas e voltas, más idéias. Tudo isso que tornaria a atividade científica mais humana e mais próxima de outras atividades humanas não é tratado, nem pelo pessoal que faz entretenimento, nem pelos próprios jornalistas. Então, o que se tem é uma atividade que, quer você aprove ou não, é reverenciada”.

Questionado sobre se a ficção científica traria essa dimensão humana da ciência ao tratar de possíveis resultados ou aplicações indesejáveis da ciência, Assis afirma que os desastres na ficção científica concentram-se em algum personagem como causador, “alguém que usou mal o conhecimento científico poderosíssimo, que deveria ser bem guardado e usado apenas por bons cientistas. Esse poder de causar desastres não está de fato concentrado na ciência. A ciência continua sendo isenta de erros, mas que eventualmente é distorcida por alguém. O cinema não toca nesse ponto central da imagem da ciência”.

Luciano Guimarães, designer, jornalista e professor da Unesp (campus de Bauru), também destacou o distanciamento entre cientista e sociedade ao analisar imagens divulgadas pela mídia. Em sua pesquisa de doutorado, Guimarães estudou as cores na mídia e, como um dos tópicos do estudo, abordou os estereótipos do cientista e da ciência na mídia. Segundo ele, muitas imagens utilizadas nas matérias jornalísticas, impressas ou televisivas, são utilizadas como ilustração apenas, sem o objetivo de informar e desconsiderando as informações sutis que as imagens contêm. “O jornalista ou designer transforma, por meio da imagem, a ciência, os cientistas e seus resultados de pesquisa em seres fantásticos e isso acaba afastando a possibilidade de mostrar que a ciência é cotidiana, que faz parte do nosso cotidiano”, afirma Guimarães.

De acordo com Guimarães, por um lado existem imagens de ciência na mídia, usadas de forma ilustrativa na matéria jornalística, que têm uma codificação própria, a qual o leigo não tem acesso ao significado. Os códigos das imagens lidos pelo cientista não são lidos pelo leigo. “O que se vê é uma imagem fantástica, colorida, bonita e incompreensível”, diz ele.

Guimarães explica que, por outro lado, existem imagens que criam um ambiente ficcional do cientista em seu laboratório. Em muitas das imagens analisadas ele notou a existência de um trabalho de saturação das cores e contraposição de luzes de cores opostas. Essa iluminação colorida acaba aproximando o ambiente mais daqueles vistos em filmes de ficção do que do aspecto concreto do laboratório. “Normalmente, diz Guimarães, são imagens que mostram apenas o cientista e parte do laboratório. Independente do tipo de laboratório, sempre há duas cores contrastando, vermelho e azul, vermelho e verde, amarelo e roxo, e em algumas ocasiões são utilizados ângulos do cientista de baixo para cima. As imagens de laboratório são construídas de forma a obter um ambiente ficcional. Isso nada mais do que colabora para a idéia de que o cientista é alguém distante da realidade, que vive num mundo fantástico e não trabalha com coisas do cotidiano”.

 A questão central para Guimarães é que esse tipo de imagem da ciência e do cientista modifica a idéia de acessibilidade à ciência: “Isso mostra ao público leitor que ciência é algo inacessível, vai contra inclusive um processo educativo. E essas imagens, quando demonstram essa falta de acesso à ciência, essa distância do público, demonstram de certa forma que a legitimidade para decidir sobre ciência é apenas daquele que tem acesso. Essa informação da imagem ainda associa-se a outros artifícios da linguagem e do discurso escrito, diminuindo o acesso e a participação”.

O imaginário das crianças

O pesquisador Yurij Castelfranchi, do Labjor/Unicamp e da Sissa, de Trieste, Itália, realizou uma pesquisa em 2002, na Itália, para compreender o imaginário de crianças de oito anos acerca da ciência e do cientista. Ele explica que a faixa etária escolhida se deu em função da idéia de que crianças pequenas, ainda não completamente alfabetizadas e que ainda não estudam ciências, podem refletir melhor o que se absorve da mídia, da ficção, das histórias em quadrinhos e desenhos animados, e que a sociedade em geral transmite inconscientemente.

Segundo Castelfranchi, o resultado de sua pesquisa vai um pouco contra o que é a convicção comum entre os pesquisadores, que acreditam que o imaginário público representado na ficção reflete o medo e a falta de conhecimento da ciência. “Na ficção, o cientista pode ser um herói ou um maluco criminoso, pode ser um desinteressado ator do progresso do mundo, mas muitas vezes ele também é um instrumento do mal, um bruxo, um alquimista maluco. Essa bipolaridade sempre foi interpretada de forma negativa e a conclusão de quase todas as pesquisas do mundo é de que na ficção se representa esse imaginário maluco/esquizofrênico por ignorância ou medo”, diz o pesquisador.

Apesar de muitas pesquisas afirmarem que o medo leva a essa representação bipolar, a pesquisa de Castelfranchi afirma que essa bipolaridade não tem uma conotação negativa, pois na verdade é sintoma de que a ciência entrou tão profundamente na sociedade e na cultura como um todo, que possui conotações míticas. “Qualquer elemento profundo da sociedade é sempre bipolar, argumenta Castelfranchi, qualquer mito é construído com uma bipolaridade, herói/anti-herói, positivo/negativo. O fato de que há essa representação e esse imaginário acerca da ciência não significa que as pessoas não são alfabetizadas cientificamente o bastante para entender que a ciência é uma só, mas que a ciência é tão importante e profunda na nossa sociedade que não pode deixar de ter a dupla conotação, que o conhecimento sempre teve”.

Enquanto outras pesquisas afirmam que as crianças são muito influenciadas pela mídia, pelas histórias em quadrinhos, pelos desenhos animados, pelos contos e, então, tendem a ver o cientista como maluco, Castelfranchi prefere destacar que essa representação que as crianças fazem do cientista e da ciência é uma estratégia para que as imagens sejam compreendidas. “Eles sabem que desenhar o cientista como estereótipo é um jeito de ter certeza que os outros irão reconhecer seu desenho, sua representação”, diz ele. Nesse sentido, a representação da criança não demonstra o medo da ciência, mas aponta o diálogo entre sua representação e as representações e símbolos presentes na sociedade em que vive.

Castelfranchi afirma que as avaliações sobre a percepção pública - que consideram que o público não compreende a ciência - servem para tirar a legitimidade das pessoas na hora das tomadas de decisões. “A maioria dos políticos e cientistas utiliza essa argumentação de que as pessoas são ignorantes, não conhecem a ciência e por isso têm medo. Isso leva à idéia de que as pessoas não podem decidir racionalmente sobre biotecnologia, por exemplo, e que essa é uma decisão reservada aos expertos”, conclui o pesquisador.

(MK)

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Atualizado em 10/10/2004

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