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Ciência e histórias em quadrinhos: uma relação sem limites

Waldomiro Vergueiro

Costuma-se relacionar o aparecimento de narrativas com fundamentação científica nas histórias em quadrinhos à emergência das histórias de ficção científica, que ocorreu ao final da década de 1920, normalmente lembrando-se das aventuras de personagens clássicos dos jornais, como Flash Gordon e Brick Bradford; além delas, costuma-se também mencionar as peripécias de uma longa, quase incontável linhagem de super-heróis surgidos no âmbito da indústria norte-americana de comic books, para a maioria dos quais a posse de poderes extraordinários é cientificamente justificada. No entanto, ainda que se possa afirmar que os gêneros da ficção científica e o de super-heróis, por suas próprias características, constituem aqueles em que a ciência se mostra em toda sua magnitude nos quadrinhos, seria talvez exagerado restringir apenas a eles a presença de questões de fundo científico nos produtos da linguagem gráfica seqüencial. Na realidade, extrapolando esse raciocínio, pode-se dizer que a ligação ciência/quadrinhos está presente na própria concepção dessa linguagem híbrida, na medida em que a junção do código verbal ao pictórico, ali presentes, apresenta como resultado um código muito mais possante àquele que a simples soma dos dois códigos normalmente levaria. Nesse sentido, a linguagem dos quadrinhos coloca em funcionamento os quadrantes do cérebro, fazendo atuar, paralelamente e em perfeita sintonia, tanto o esquerdo, responsável pela racionalidade e espaço por excelência do domínio científico, como o da imaginação criativa, âmbito privilegiado da produção poética e ficcional, o direito.

Nas histórias em quadrinhos, a ciência vai constantemente aparecer como elemento motivador da leitura e atrativo para os leitores, muitas vezes até mesmo passando informações não muito sólidas em termos de conhecimento científico. No entanto, ainda assim, a maior parte das histórias, ao utilizar temáticas científicas, buscou basear-se em fatos cientificamente comprovados ou de possível comprovação segundo o conhecimento então disponível. Nesse sentido, a ciência desempenhou nos quadrinhos um papel semelhante ao de publicações de períodos anteriores, surgindo como o elemento aglutinador de uma civilização ocidental e constituindo o predomínio da racionalidade sobre o emocional. Sob esse ponto de vista, a centralização das tramas das narrativas quadrinizadas em elementos ligados a ambientes científicos tem seu apogeu nos quadrinhos norte-americanos do período que se inicia ao final da década de 1920 e perpassa toda a década de 30, com o aparecimento de diversos personagens pertencentes ao âmbito da ficção científica. Essa produção nasce intimamente ligada à produção das chamadas publicações pulp, gênero popular de intensa penetração no inconsciente coletivo dos leitores do início do século 20.

Com o aparecimento do personagem Buck Rogers, em 1929, pode-se dizer que as histórias em quadrinhos entram em uma nova fase, abandonando o visual caricaturesco e as temáticas humorísticas que as caracterizavam até então – e que foi responsável pela genérica denominação de comics, pela qual são até hoje referidas em língua inglesa –, entrando de chofre no campo da representação realista do mundo. A partir daí, as histórias em quadrinhos rapidamente se transformaram no repositório de todos os elementos da moderna cultura pop, com filmes, séries de rádio, programas de televisão e novelas populares se originando de histórias em quadrinhos de sucesso (ou, então, fazendo o caminho oposto, vindo de outras mídias diretamente para as histórias em quadrinhos...).

Nos quadrinhos, a ciência surge sob sua forma mais elementar, com os personagens em geral sendo construídos como pastiches ou com base em visões preconcebidas do homem dedicado à ciência, com argumentos e enredos originando histórias de ritmo frenético, que deixam pouco tempo para reflexão ou observação. Está aí, por outro lado, o grande fascínio desse tipo de quadrinhos, pois ele trabalha o sonho primitivo da exploração de novos mundos, de adivinhação do futuro e da preparação da sociedade para as mudanças tecnológicas que de fato viriam a ocorrer durante o século 20.Por outro lado, em sua relação com a ciência, as histórias em quadrinhos a retrataram, por um lado, como um ideal de perfeição a ser atingido, e, por outro, como uma ameaça sempre presente, da qual não se pode fugir, com ambas as visões refletindo um tipo de popularização do processo científico que visava torná-lo compreendido pelos leitores de um veículo de comunicação de massa de dimensões globais.

Ao atuarem na popularização de um complexo processo de produção de conhecimento, como é a construção do saber científico, as histórias em quadrinhos também colaboraram para que se atingisse uma conscientização coletiva sobre a importância de uma abordagem sistemática à solução dos problemas mais marcantes da sociedade, abordagem essa proporcionada pelo desenvolvimento científico. Dessa forma, a exploração de temas científicos nas histórias em quadrinhos facilitou – ou até mesmo antecipou –, a introdução de muitas inovações tecnológicas, preparando o terreno para sua aceitação e disseminação na sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, num processo de retroalimentação, pode-se também afirmar que a própria produção científica buscou – e, em muitos casos, encontrou –, no senso comum proporcionado pelas histórias em quadrinhos aqueles elementos que possibilitaram melhor direcionar o avanço de áreas específicas do conhecimento cientificamente aplicado. É o que parece ter acontecido, por exemplo, com o aproveitamento, no design dos foguetes desenvolvidos pela NASA, da aerodinâmica das naves interplanetárias das histórias de Flash Gordon, com os artefatos de comunicação pessoal das histórias de Dick Tracy (posteriormente transformados nos minúsculos telefones celulares hoje facilmente disponíveis em praticamente todas as camadas sociais), ou mesmo com o desenvolvimento da energia atômica, tragicamente consubstanciada nos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki com bombas semelhantes às que haviam explodido em 1939 nas páginas de Buck Rogers, quando inimigos marcianos bombardearam várias cidades da Terra.

Mas se à ciência e aos cientistas não se pode indiscriminadamente reputar a culpa pelo mau uso que se fez de suas descobertas, também as histórias em quadrinhos não merecem culpabilidade quando, por meio de suas fantasias, prenunciam (ou talvez inspiram) eventos de conseqüências negativas. No entanto, se é verdade que o saber científico como uma ameaça invisível representa uma presença constante nas páginas dos quadrinhos, também não é menos verdadeiro que a contribuição da linguagem gráfica seqüencial para disseminar o avanço da ciência e construção de uma cultura permeável ao saber científico representou uma das características mais marcantes da produção quadrinhística a partir da década de 1930. Além disso, ademais de disseminar o avanço da ciência por meios lúdicos, muitas vezes em produções tematicamente complexas como ocorre em Watchmen, os quadrinhos também foram utilizados como veículo privilegiado para o ensino de ciências, em produções elaboradas com fins eminentemente didáticos e pedagógicos, como as séries Ciência em Quadrinhos e Enciclopédia em Quadrinhos, para apenas mencionar duas das mais conhecidas. Este movimento pendular do lúdico para o didático e vice-versa representa um dos grandes fascínios dos produtos quadrinhísticos, numa relação que ainda parece longe de esgotar todas as suas possibilidades.

Waldomiro Vergueiro é coordenador do Núcleo de Pesquisas em História em Quadrinhos da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

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Atualizado em 10/10/2004

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