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Ésper Cavalheiro

Vida saudável para portadores de epilepsia
Li Li Min

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Vida saudável para portadores de epilepsia


Aos 38 anos, o neurologista da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Li Li Min, está animado com a idéia de ser o coordenador do projeto demonstrativo em epilepsia no Brasil, participando oficialmente da campanha mundial Epilepsia Fora das Sombras, em fase de desenvolvimento desde 1997. Chinês nascido em Taiwan, veio para o Brasil aos sete anos, fixou residência no Paraná, estudou medicina em Curitiba (PR) e fez doutorado em Neurociências, no Canadá. Seu interesse pelo estudo da epilepsia reúne a preocupação de auxiliar os pacientes a ter uma vida saudável, e estudando a dinâmica do cérebro. O posto de saúde de Barão Geraldo, em Campinas, será o primeiro do País a oferecer atendimento dentro dos princípios da campanha (Leia mais sobre a campanha).

ComCiência - Como surgiu a idéia de se desenvolver, no Brasil, um projeto demonstrativo da campanha global Epilepsia Fora das Sombras?
Li - A idéia surgiu durante uma reunião, em setembro do ano passado, nos Estados Unidos. Eu fui convidado para falar sobre a relação entre estigma e epilepsia em países em desenvolvimento. Após a minha palestra, encontrei o representante da Organização Pan-americana da Saúde, Cláudio Miranda. Com ele estava a doutora Ana Pita, coordenadora da saúde mental no estado de São Paulo. Discutimos sobre a realidade brasileira e foi ventilada a possibilidade de desenvolver algum projeto, e o Cláudio Miranda sugeriu que fizéssemos algum projeto nas linhas da campanha global da qual ele era um dos assessores. Eu voltei e comecei a conversar com os colegas localmente e a idéia foi bem aceita por todos. Então, armou-se uma boa articulação local. Dessa maneira, elaboramos um projeto que foi encaminhado, no começo do ano, ao comitê internacional, que tem representantes da Organização Mundial de Saúde, da Liga Internacional Contra Epilepsia e da Associação Internacional dos Pacientes com Epilepsia. O comitê internacional julgou o mérito do projeto, considerou que estava de acordo com a campanha internacional e o aprovou no dia 31 de maio.

ComCiência - Há uma data definida para pôr em prática o projeto?
Li - O projeto, de certa maneira, já começou insidiosamente, independente da aprovação do comitê internacional. Por motivos de financiamento, ele não terá seu início com a força total. Nós estamos dando início em algumas áreas que não dependem do financiamento, que é a parte de capacitação dos profissionais, que está sendo administrada pelo pessoal da Unicamp. Porém, os estágios de levantamento epidemiológico vão aguardar um pouquinho, provavelmente dois, três meses até que se obtenha um financiamento, possivelmente da Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], da Unicamp, ou da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Eles (Opas, Claúdio Miranda e o Comitê Internacional) estão vendo a possibilidade de ter um seeding funding, um financiamento semente. O Comitê Internacional aprovou o projeto porque considerou que ele contemplava todos os aspectos e tinha peculiaridades muito interessantes. Dessa maneira, então, foi aprovado. Porém, com essa ressalva de não possuir financiamento no momento.

ComCiência - Qual o volume de recursos que este projeto exige?
Li - O projeto não requer grande monta de dinheiro, mas requer uma mobilização de um número significativo de pesquisadores. Muitas das pesquisas serão feitas por pós-graduandos. Isso exige pagamento de salário, bolsas e demora um certo tempo (a obtenção do dinheiro para pagamento de salário e bolsas). Mas, em termos de aquisição de material permanente ou de outro material de consumo, o dinheiro necessário é relativamente pouco. Nós estamos em conversação com o Ministério da Saúde, por meio do Conselho Nacional de Saúde, para tentar viabilizar um financiamento para aquisição desses equipamentos, bem como uma estratégia para extrapolar a experiência para o país todo.

ComCiência - É importante participar de um projeto dessa natureza?
Li - Do ponto de vista do paciente é muito importante, porque não temos dados sobre como estes pacientes são tratados no país. Temos umas cifras que são extrapoladas de outros países e que não são muito encorajadoras. O que nós estamos tentando é melhorar o serviço de atendimento a esses pacientes que poderão se beneficiar, se o atendimento for montado adequadamente. Em termos de pesquisa, há um interesse muito grande da comunidade científica, pois a epilepsia no nosso país tem muito poucos estudos sobre a própria incidência ou a prevalência dessa doença. Alguns estudos foram feitos no estado de São Paulo e em Porto Alegre, que não vão necessariamente refletir a situação em todo o Brasil. Também deve ser levado em conta que existem diferenças regionais, culturais, que são muito importantes. Existe outra contrapartida que também é de grande interesse, que é o aspecto do estigma que a própria condição traz. É sabido que o estigma é altamente ligado a tempo-espaço, relativo à cultura em si. Logo, o que se sabe sobre estigma no Reino Unido ou nos Estados Unidos, é muito diferente da nossa realidade, porque as culturas são bem diferentes. Desenvolvendo estudos aqui, conseguiremos montar um panorama mais fidedigno do estigma, do tratamento e dos pacientes com epilepsia. Essa é a intenção.

ComCiência - A condição econômica é um fator determinante no surgimento da epilepsia?
Li - Sim e também é um fator que estaremos analisando porque, de certa maneira, todo resultado vai ajudar a montar uma política de saúde que seja adequada para uma determinada situação. Por exemplo, a China é um país comunista, eles têm um sistema de política própria deles. Na África, há uma situação econômica um pouquinho menos favorecida e, no Brasil, aqui no estado de São Paulo, talvez uma coisa intermediária do capitalismo. Então nós poderemos comparar os resultados para ver qual seria a melhor estratégia, a melhor política de saúde para pacientes com epilepsia. Essa campanha, na realidade, vem desde 1997. Vários países já estão, de certa forma, montando essas campanhas locais, regionais. Porém, o projeto demonstrativo mesmo existe somente em quatro países - China, Zimbabwe, Senegal e agora no Brasil. Os resultados vindos desses projetos regionais vão nos ajudar a fazer a análise entre as culturas, entre as nações, para saber se a epilepsia tem uma forma de manifestação universal em termos de etiologia, crenças e o tratamento em si.

ComCiência - Que país está mais avançado na campanha?
Li - O país mais avançado é a China. O Senegal parece que começou algum projeto, e o Zimbabwe começou e parou. E nós agora estamos caminhando.

ComCiência - Vocês estão motivados a fazer parte da campanha?
Li - Acho que a motivação é universal. Acredito que toda a área médica encara que a epilepsia é um problema de saúde pública. É a condição neurológica grave mais comum no mundo. O que motiva muito a comunidade médica é o fato de que 80% dos pacientes, uma vez diagnosticados, podem ser tratados só com uma medicação. Eles podem ficar totalmente livres de crises. Existe um tratamento muito eficaz em cima de uma condição supostamente tão grave.

ComCiência - É difícil diagnosticar corretamente a epilepsia? É alto o custo desse diagnóstico?
Li - O diagnóstico da epilepsia é essencialmente clínico. Através da entrevista médica e do exame físico é possível chegar ao diagnóstico e formular uma hipótese de qual é a causa. Os exames complementares, sim, são caros. Atualmente, usa-se o exame de neuroimagem, que é a ressonância magnética. O exame serve para verificar se tem alguma lesão estrutural que possa ser a causa das crises do paciente. Porém, se o país tiver uma política de saúde bem aplicada, pode regionalizar o uso desse equipamento de alto custo em pólos. No Brasil isso poderia ser feito e a economia seria grande. A definição diagnóstica precisa faz com que se dê ao paciente o tratamento mais adequado. Muitas vezes os pacientes têm uma lesão cerebral que é passível de um tratamento cirúrgico, porém, se o diagnóstico não é feito a tempo, não se consegue fazer o tratamento.

ComCiência - É difícil o acesso à medicação para o tratamento da epilepsia?
Li - As quatro medicações de primeira linha são medicações padronizadas pelo Ministério da Saúde, que são carbamazepina, ácido valpróico, fenobarbital e fenitoína. As quatro têm a mesma eficácia, bem dizendo, em termos de tratamento. Porém o tipo de efeito colateral - mais ou menos acentuado - é diferente. O preço delas também não é alto e não difere muito entre um e outro. Tomando como exemplo o fenobarbital, trata-se de uma medicação que as indústrias farmacêuticas nem têm muito interesse em produzir de tão barato (Veja matéria sobre medicamentos para o tratamento da epilepsia). No mercado, existem genéricos dessas quatro medicações.

ComCiência - Como estão os contatos com o Ministério da Saúde, o Governo de São Paulo, a Prefeitura de Campinas e a iniciativa privada, para a implantação do projeto?
Li - Em relação ao Ministério da Saúde, houve uma reunião no Conselho Nacional de Saúde no dia 12 de junho, com Nelson Rodrigues dos Santos, junto com o coordenador de saúde mental, Pedro Gabriel Delgado, pelo Ministério da Saúde, e alguns outros assessores. Eu apresentei o projeto, nós discutimos a viabilidade e eles acharam o projeto muito interessante em vários aspectos. Ficou marcada uma segunda reunião para discutirmos o encaminhamento do projeto. Mas ficou, de antemão, o seguinte compromisso: que nós elaboraríamos um projeto pensando na expansão em nível internacional, que seria montar um programa de capacitação para profissionais da saúde. Seria uma capacitação de capacitadores, para formar os novos professores para ministrar esses módulos de treinamento em epilepsia. O módulo de treinamento em epilepsia que temos hoje é um módulo com quatro horas teóricas e quatro práticas, para médicos e enfermeiros. O que gostaríamos é que cada região, cada pólo do Brasil, tivesse os seus capacitadores, que pudessem replicar esse treinamento. A campanha será colocada em prática aqui no posto de Barão Geraldo e no posto de saúde do Jardim Santa Lúcia, onde estará começando a residência médica de família. Será muito interessante do ponto de vista de pesquisa saber também se a inserção do médico de família vai apresentar uma maior eficácia no tratamento dos pacientes com epilepsia, comparado com o posto de saúde convencional.

ComCiência - Quando o senhor fala em enfermeiros, isso inclui enfermeiros com formação superior, técnicos e auxiliares da enfermagem?
Li - Sim, profissionais de enfermagem. A experiência da campanha internacional é que nem sempre os médicos são os melhores no manejo de pacientes com epilepsia. Acho que foi com a experiência nos países da África que perceberam que os agentes de saúde, uma vez treinados, desempenham muito bem essa tarefa do manejo de pacientes com epilepsia, bem como provendo informações gerais, que muitas vezes constituem um problema. A capacitação não se resume a médicos, mas sim a todos os agentes de saúde, incluindo médico, enfermeiro, assistente social, psicólogo.

ComCiência - Está tudo certo com a Prefeitura de Campinas para o desenrolar da campanha?
Li - Tanto aqui em Campinas como em São José do Rio Preto, que é outro município que está participando desse projeto, os secretários municipais de saúde estão de acordo com a iniciativa e deram todo suporte possível. Inclusive, o secretário da saúde de Campinas, falou da possibilidade de conseguir algum financiamento para capacitação dos profissionais. O mais importante é que existe o compromisso da secretaria de saúde em manter o programa, fornecer a medicação continuamente e deixar abertos os postos de saúde para que se possa implantar o projeto.

ComCiência - Num país rico, como os Estados Unidos, a epilepsia não preocupa?
Li - Preocupa. Existem campanhas. Estudos de prevalência feitos num país em desenvolvimento e em países desenvolvidos mostram uma cifra muito similar que realmente vai contra o que nós, pesquisadores, presumiríamos. A idéia era a de que países em desenvolvimento, por motivo de saneamento precário, falta de legislação mais rigorosa de tráfego - o que aumentaria o número de acidentes -, precária assistência de saúde, principalmente pré-natal, pudesse aumentar os casos de epilepsia secundária a traumatismo crânio-encefálico, a neuroinfecção e a problemas obstétricos. O que acontece é que não parece ser o caso. Porém, não temos nenhum dado mais completo, em países em desenvolvimento, sobre a etiologia mais precisa dessa condição. Em contrapartida, em países desenvolvidos, levando-se em consideração toda a infra-estrutura existente, pela natureza de ser um país rico, mesmo assim não existem estudos mais atuais abordando a etiologia. Talvez exista um agora, feito no Reino Unido, e que os resultados não podem ser comparados porque é o único no momento.

ComCiência - A neurocisticercose é um fator de risco para o desenvolvimento da epilepsia?
Li - A neurocisticercose é endêmica, freqüente em regiões no estado de São Paulo, na região Sudeste como um todo, e em algumas outras regiões, em países em desenvolvimento. Na América Latina ela é endêmica. Existe uma associação, um aumento de risco em pacientes com neurocisticercose no desenvolvimento de epilepsia. Porém, ainda existem certas dúvidas se ela é realmente a mais freqüente causa de epilepsia. Ela é, certamente, causa de epilepsia. Porém, não sabemos a freqüência. E como se trata de uma infecção parasitária, ela está, inerentemente, ligada à falta de saneamento básico. Isso está claro: medidas de saneamento básico realmente previniriam essa infecção parasitária e certamente diminuiriam a incidência de epilepsia em países como o nosso.

ComCiência - Demorou-se muito para se dar atenção ao problema no Brasil?
Li - Acho que o momento foi propício para podermos tentar alguma coisa, um esforço coletivo e realmente fazer uma diferença para os pacientes com epilepsia. Não é uma campanha tão fácil de ser realizada e requer, realmente, a colaboração de várias entidades, de várias frentes. Precisa haver um interesse político, um interesse também do ambiente acadêmico e dos próprios pacientes. Precisamos realmente conscientizar primeiro os pacientes de que a epilepsia tem tratamento. Não se discute muito, não se fala do estigma em si, prevenindo muitos dos pacientes em procurar auxílio médico. A campanha global existe desde 1997 porém, desde a antiguidade, já existia a discriminação. A estigmatização é a regra, independente do lugar. Em relação às campanhas, talvez tenha sido tentado, de uma ou outra maneira, para melhorar o atendimento ao paciente com epilepsia e diminuir a estigmatização por praticamente todas as entidades, mas sem muito sucesso.

ComCiência - Os pacientes, com tratamento adequado, podem ter uma vida normal?
Li - Sim, com certeza. Acho que o tratamento em si traz uma normalidade à vida dos pacientes em 80% dos casos. Devemos lembrá-los também que a dificuldade na vida existe para todo mundo e, a epilepsia, é mais uma das dificuldades. Acho que com o tratamento médico é possível minimizar essas dificuldades e o paciente pode levar sua vida normal. Eu estudo a epilepsia há quase uma década. Ela em si é um problema de saúde pública. O médico deve desempenhar o papel de auxiliar os pacientes ao máximo. É uma condição tratável, diferente de algumas outras condições neurológicas, em que o tratamento não é tão eficaz. Além disso, para o pesquisador, condição de epilepsia permite que se estude muitos aspectos também da dinâmica cerebral. Isso é uma situação ímpar que não se tem em outras doenças.

ComCiência - É possível saber quantas pessoas estão sendo tratadas no Brasil hoje?
Li - Nós temos uma estimativa. Para chegar a essa estimativa nós usamos dados epidemiológicos e calculamos qual é o número de pacientes com epilepsia na região. Nós buscamos na indústria farmacêutica ou, no caso do posto de saúde, a informacão da medicação consumida em determinado período de tempo. Dessa maneira, podemos calcular qual foi a cobertura, ou seja, o número de pacientes que teoricamente tomaram a medicação. Fizemos esses cálculos e essa estimativa tanto para a região de Campinas como para a região de São José do Rio Preto. O cálculo mostrou que a lacuna de tratamento chega, mais ou menos, a 50% em ambas as regiões. Se nós utilizássemos a taxa de lacuna de tratamento da Organização Mundial da Saúde para países em desenvolvimento, obtida por um cálculos similares, o que teríamos seria que 90% dos pacientes não estariam sendo tratados com a medicação anticonvulsivante. O dado real só poderemos ter quando fizermos estudo de campo, que é um dos aspectos a serem abordados nesse projeto.

ComCiência - Há a dificuldade, no Brasil, por parte de portadores de doenças crônicas, em dar seqüência aos tratamentos. No caso da tuberculose, por exemplo, esse foi um dos fatores que fizeram com que a doença voltasse. Existe mesmo uma resistência do brasileiro a tomar remédio?
Li - É exatamente isso. No caso da epilepsia, essa é uma das principais causas que interferem no tratamento, que é parar a medicação abruptamente e voltarem as crises. Às vezes elas pioram. Então, dentro dessa campanha, é enfatizado quase constantemente a necessidade de tomar medicação adequadamente de uma forma contínua. Outro aspecto em que nós estamos insistindo muito, tanto com o Ministério da Saúde quanto nas secretarias municipais, é que o fornecimento da medicação seja ininterrupto. A falha no fornecimento realmente existe e isso deixa muito desacreditado o sistema de tratamento. Nós estamos batendo na tecla de que temos que fazer com que os pacientes tomem a medicação e tenham confiança no sistema.

ComCiência - A intenção é levar a campanha para o país todo?
Li - O plano é que dentro desse período de quatro anos nós consigamos demonstrar que o projeto funciona. Nós vamos demonstrar que o programa é eficaz e poderemos avaliar a efetividade das intervenções. Espera-se que nesses quatro anos o projeto possa caminhar por si, independente dos pesquisadores e que esteja inserido naturalmente no sistema, na rede de saúde. Uma vez concluída essa parte, nós poderemos extrapolar isso para outras regiões em que haja, primeiro, a vontade dos municípios, uma vez que o Sistema Único de Saúde (SUS) é descentralizado e é muito dependente da política de saúde de cada município. Isso tem que ser considerado quando se pretende exportar a campanha para municípios vizinhos e outros lugares, levando-se também em consideração as peculiaridades, as características locais e regionais. O plano é nos primeiros dois anos efetivar localmente a campanha com plano de expansão. Já existe um certo interesse de alguns colegas, como um de Brasília, em implantar o projeto lá. Acho que todos estão de olho para ver os resultados que virão dessa campanha.

 



Atualizado em 10/07/02

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