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Modelos
experimentais auxiliam entendimento da epilepsia
Ésper Cavalheiro
Vida
saudável para portadores de epilepsia
Li Li Min
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Modelos
experimentais auxiliam entendimento da epilepsia
Grande parte
do entendimento dos mecanismos que levam ao desenvolvimento das epilepsias
tem sido obtida graças aos modelos experimentais realizados com animais,
principalmente ratos e camundongos. O modelo experimental se faz valer pela
capacidade deste em representar com fidelidade o fenômeno natural.
Diversos
modelos experimentais vêm sendo desenvolvidos ao longo da história
com o objetivo de determinar quais eventos podem induzir o aparecimento
das crises epilépticas, as estruturas envolvidas e o melhor tratamento.
Um desses
modelos experimentais foi desenvolvido por Ésper Abrão Cavalheiro,
coordenador do Laboratório de Neurologia Experimental da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) e atual presidente do Conselho Nacional
de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq), juntamente com o polonês Lechoslaw
Turski e outros pesquisadores. Trata-se de um método de indução
de convulsões a partir da aplicação da pilocarpina,
um alcalóide extraído das folhas da planta Jaborandi (P.
mycrophyllus).
ComCiência
- Como o senhor e sua equipe chegaram à pilocarpina?
Ésper Abrão Cavalheiro - Há mais de um século,
já se sabia da existência, no sistema nervoso, de uma substância
transmissora chamada de acetilcolina. O fato de que a aplicação
de altas quantidades dessa substância (ou de seus análogos)
ser capaz de produzir convulsões também já era conhecido.
O que não se sabia era que, em determinadas circunstâncias,
em animais de laboratório, a ativação excessiva desse
sistema pudesse levar a um quadro de convulsões duradouras (chamado
de estado de mal epiléptico) cujas conseqüências, a
longo prazo, poderiam gerar um quadro de epilepsia semelhante àquele
observado em seres humanos. Aqui, vale a pena ressaltar que convulsão
não é sinônimo de epilepsia. A convulsão é
uma manifestação de várias condições
que afligem o sistema nervoso, entre elas o uso de drogas estimulantes,
choques elétricos, infecções neurológicas,
etc. Para se caracterizar a epilepsia é necessário que as
crises epilépticas sejam repetidas ao longo da vida do indivíduo
e que tenham características próprias. Mas voltando ao trabalho
que levou ao desenvolvimento do nosso modelo experimental, em posse dessas
informações, eu e meu grupo, estávamos interessados
em encontrar uma substância capaz de ativar o sistema colinérgico
gerando um estado de mal epiléptico. Para isso, utilizamos a pilocarpina
que tem o "mérito" de ser obtida a partir de uma planta
do Nordeste do país, o Jaborandi.
ComCiência
- Como funciona a pilocarpina?
Cavalheiro - Logo após a aplicação da pilocarpina
em animais observa-se a ocorrência de crises convulsivas de longa
duração (várias horas) o que acaba, por mecanismos
hoje já bem conhecidos, a produzir lesões em determinadas
regiões do cérebro. Como em outras situações
semelhantes, a existência de lesões em determinadas regiões
do sistema nervoso lê a reorganização do sistema.
Isto é, a perda de um certo número de células nervosas
faz com que as sobreviventes se re-arranjem na tentativa de superar o
dano sofrido. Nós acreditamos que essa reorganização,
quando não ocorre de forma adequada, acaba levando o cérebro
a se comportar como um "cérebro com epilepsia". Isto
é, ele é capaz de, repetidamente, induzir um quadro convulsivo
que pode, inclusive, levar à perda de consciência. O modelo
da pilocarpina foi o primeiro no mundo a produzir esse quadro de epilepsia
em animais de laboratório. E o interessante foi verificar que o
modelo em animais reproduz aquilo que acontece num tipo bastante freqüente
de epilepsia que ocorre em seres humanos. Através desse modelo
foi possível estabelecer os passos que levam uma criança
que sofreu um traumatismo craniano importante, ou que teve uma infecção
também grave do sistema nervoso, a desenvolver, anos mais tarde,
um quadro de epilepsia.
ComCiência-
Quando foi desenvolvido o modelo experimental?
Cavalheiro - A série de estudos que culminou com o modelo
em questão foi longa. Os primeiros estudos foram realizados no
início dos anos 80, mas a caracterização final só
ocorreu nos anos 90. Dessa forma, o desenvolvimento do modelo da pilocarpina
teve a participação de vários alunos de pós-graduação
e colegas de laboratório que estiveram trabalhando comigo durante
esse tempo. Muitos deles, hoje, são professores renomados no Brasil
e no Exterior. No início, nós queríamos observar
o que acontecia logo após a administração da pilocarpina
em ratos. Nossa intenção era caracterizar o quadro de colvulsões
duradouras induzido pela pilocarpina, o assim chamado estado de mal epiléptico.
Nessa fase, descobrimos o tipo de lesão que o estado de mal deixava
no cérebro, qual a sua localização precisa, como
poderíamos bloquear as convulsões agudas e minimizar as
lesões cerebrais, etc. Na tentativa de saber o que acontecia a
longo prazo, isto é, semanas após a administração
da pilocarpina, foi que começamos a notar que os animais sobreviventes
começaram a apresentar crises espontâneas (isto é,
a pilocarpina administrada semanas antes já havia sido eliminada).
Essas crises eram de curta duração (um minuto no máximo),
apareciam aproximadamente uma vez por dia, eram acompanhadas de alterações
comportamentais e eletrencefalográficas típicas e se repetiam
ao longo de toda a vida do animal. Isto é, um verdadeiro quadro
de epilepsia.
ComCiência - Esse modelo ajudou a desenvolver novas medicações
para o tratamento da epilepsia?
Cavalheiro - Como tentei explicar, esse modelo apresenta três
fases distintas: a primeira é aquela que ocorre como conseqüência
direta da administração da pilocarpina, quando o animal
apresenta colvulsões de longa duração cuja conseqüência
é a ocorrência de lesões cerebrais específicas.
A segunda fase é aquela em que o animal se recupera dos efeitos
da pilocarpina e no qual, supomos, ocorre o máximo de reorganização
do sistema, isto é, o re-arranjo pós-lesional. A terceira
é aquela em que aparecem as convulsões espontâneas
que perduram por toda a vida do animal. Nosso laboratório, e vários
outros ao redor do mundo que estão utilizando o nosso modelo, em
uma primeira etapa, tentou comprender as chaves do processo. Por que ocorre
a lesão em conseqüência do estado de mal epiléptico?
Por que ela só ocorre em certas regiões cerebrais? Por que
as lesões observadas nos animais como conseqüência do
estado de mal induzido pela pilocarpina é semelhante àquelas
observadas nos quadros de epilepsia do lobo temporal humano? O que o re-arranjo
cerebral tem realmente a ver com a epilepsia? Como poderíamos bloquear
o processo? Qual o melhor momento de intervir? Quais os melhores medicamentos
existentes hoje capazes de impedir a progressão do quadro? Que
novas drogas podem ser utilizadas?, etc. Como se pode observar, as perguntas
são muitas e várias destas respostas já foram obtidas
ComCiência - Que países estão utilizando ou estão
interessados em usar o modelo?
Cavalheiro - Vários grupos importantes estão utilizando
o nosso modelo. Existem laboratórios nos Estados Unidos, Inglaterra,
França, Alemanha, Itália, Japão, Austrália,
etc.
ComCiência
- Em que exatamente ele difere de modelos anteriores?
Cavalheiro - Como mencionei, antes do modelo da pilocarpina, os
pesquisadores não tinham à disposição um modelo
que reproduzisse, em animais, a sequência de eventos que caracteriza
a epilepsia do lobo temporal que representa, aproximadamente, 70% da epilepsia
observada em seres humanos. Dessa forma, pode-se estudar em animais aquilo
que, por razões éticas, não podemos realizar em seres
humanos. Por isso um modelo experimental é tão interessante.
No caso do modelo da pilocarpina, nós podemos interromper o processo,
retirar a parte do cérebro que nos interessa conhecer, administrar
drogas cujos efeitos em humanos ainda não são conhecidos,
etc.
ComCiência
- Qual o impacto da sua descoberta no meio acadêmico?
Cavalheiro - Acredito que o impacto em nossa área específica
de atuação, a neurociência, foi colocar trabalhando
juntos cientistas oriundos de diferentes áreas, isto é,
médicos neurologistas, biólogos, bioquímicos, farmacólogos,
patologistas, etc. Esta associação entre cientistas básicos
e clínicos não é trivial no país. Muitos ganharam
com isso. Nossa produção científica é hoje
reconhecida mundialmente e, pessoalmente, tem sido muito recompensador,
pois meu grupo ganhou os mais importantes prêmios nacionais e internacionais
na área. Como exemplo, no último Congresso Latino-americano
de Epilepsia, dos três prêmios distribuídos, nosso
grupo levou dois.
ComCiência
- Que outras descobertas recentes existem para o estudo da epilepsia?
Cavalheiro - Existem várias coisas interessantes acontecendo.
A possibilidade de acompanhar a reorganização cerebral,
seus mecanismos, e possível forma de interferir no processo é
algo novo para todos nós. O surgimento de novos neurônios,
a partir de células-tronco, como conseqüência das lesões
cerebrais (coisa que não se acreditava que pudesse acontecer no
cérebro até alguns anos atrás) é fato muito
recente e que necessita ser visto, no futuro, como possibilidade terapêutica
para os portadores de epilepsia.
ComCiência -É possível que essa reorganização
provoque doenças diferentes em decorrência do mesmo tipo
de lesão?
Cavalheiro - Essa não é uma pergunta fácil.
Nós sabemos que as lesões observadas após a administração
de pilocarpina ocorrem, nos animais de laboratório, nas mesmas
regiões cerebrais em que ocorrem lesões decorrentes de um
modelo experimental de derrame cerebral, também desenvolvido pelo
nosso grupo. A pergunta que se faz é simples: se as lesões
são semelhantes, ocorrem nos mesmos locais, por que a reorganização
que ocorre em cada caso é diferente. Seria correto imaginar que
o mecanismo produtor da lesão (no caso da epilepsia, por excesso
de estimulação, e no caso do derrame cerebral, por falta
de oxigênio) seria o responsável pelas etapas sucessivas
do re-arranjo cerebral? Como isto se dá? A compreensão desses
fenômenos pode levar a alternativas terapêuticas interessantes.
ComCiência
- Qual é a situação da pesquisa básica brasileira
em relação à epilepsia?
Cavalheiro - Vários grupos no Brasil, hoje, estão
interessados na investigação dos mecanismos básicos
ligados ao fenômeno epiléptico. Além do nosso grupo,
na Escola Paulista de Medicina, temos pesquisadores em Ribeirão
Preto (SP), Rio Grande do Sul, Pernambuco, Ceará, etc. Este crescimento
se deu nos últimos 10 anos.
ComCiência
- Em relação ao mundo como se situa a nossa pesquisa nessa
área?
Cavalheiro - Posso dizer com tranqüilidade que a pesquisa
que realizamos em nosso laboratório é tão boa quanto
qualquer outra feita no mundo Nós não devemos nada a ninguém.
Muitos pesquisadores do exterior vêm até nós para
realizarem estágios de pós-doutorado ou mesmo doutorado.
Vários grupos internacionais têm interesse em estabelecer
cooperação com nosso grupo.
ComCiência
- Dada a antigüidade da epilepsia, a situação dos pacientes,
da pesquisa, do tratamento não deveria ser diferente?
Cavalheiro - A solução de problemas humanos não
está relacionada diretamente com a ocorrência do mesmo por
mais ou menos tempo. Nosso conhecimento sobre a epilepsia humana passou
por momentos históricos complicados. O fato de ser um distúrbio
da função cerebral que pode levar a perda ou alteração
da consciência fez com que o quadro fosse associado a problemas
mentais, espirituais, etc. Essa visão distorcida do problema traz,
até hoje, graves conseqüências para os portadores de
epilepsia. O preconceito e a discriminação, familiar e social,
são parte dessa situação. Do ponto de vista neurológico,
o tratamento médico disponível atualmente permite a cura
de quase 90% dos pacientes, quer através de medicamentos ou da
cirurgia. Entretanto, nos países menos desenvolvidos economicamente,
como o nosso, as condições não são tão
favoráveis por razões específicas. Para mencionar
alguma dessas condições, vale lembrar que a distribuição
da medicação para a camada mais pobre da população
e que não pode pagar pela mesma não tem ocorrido de forma
homogênea pelo país. Isso é muito grave, pois sabemos
que o tratamento correto efetuado nos estadios iniciais aumenta consideravelmente
a taxa de cura. Além disso, também sabemos que a maioria
dos quadros de epilepsia se inicia na infância e é muito
triste saber que, por falta de tratamento e acompanhamento adequados,
estas crianças terão dificuldades em realizar todo o seu
potencial como seres humanos. Outros aspectos incluem a necessidade de
exame pré-natal adequado, a atenção cuidadosa das
infecções e parasitoses do sistema nervoso, tais como a
meningite e a neurocisticercose (ovo da solitária no cérebro).
Essas situações, quando bem acompanhadas, diminuem consideravelmente
o surgimento de novos casos de epilepsia
ComCiência
- Como o senhor vê a campanha mundial Epilepsia Fora das Sombras,
da qual o Brasil está participando? Ela contribui para uma maior
conscientização em relação à doença?
Cavalheiro - Todos nós que trabalhamos com os portadores
de epilepsia estamos envolvidos ativamente com essa campanha. Temos participado
de congressos, eventos e inúmeras campanhas públicas. A
Associação Brasileira de Epilepsia (ABE) é peça
fundamental nessa campanha. Seu trabalho, iniciado há mais de 15
anos, envolve a conscientização dos portadores de epilepsia,
seus familiares, amigos e da população em geral do papel
importante que cada um tem na diminuição do preconceito
e da discriminação social que tanto interfere com a vida
dessas pessoas. O trabalho da ABE que já se espalhou por várias
regiões do Brasil tem, também, atuado junto aos órgãos
de saúde alertando sobre a necessidade de uma ação
eficaz quanto à distribuição dos medicamentos. O
maior problema enfrentado no Brasil é o baixo envolvimento das
Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, bem como do próprio
Ministério da Saúde, nessa campanha. Parece-me inconcebível
imaginar que, ainda hoje, a epilepsia, que atinge 1,5% da nossa população,
principalmente a mais jovem e, portanto com mais futuro, com alta chance
de cura, não seja encarada como um problema prioritário
de saúde. É triste ver pessoas, mesmo nos centros mais desenvolvidos,
terem dificuldades em obter um diagnóstico preciso em curto espaço
de tempo. Muitos dos médicos generalistas ainda têm dificuldade
em lidar com o problema, desde o ponto de vista de seu diagnóstico
e tratamento mais adequado até em lidar com o próprio preconceito.
ComCiência
- A campanha inclui esse treinamento, não?
Cavalheiro - Inclui sim. Há um estudo recente e interessante,
feito com estudantes de medicina, mostrando que muitos deles não
sabem coisas muito básicas sobre a epilepsia. Como é possível
imaginar que dentro de uma escola médica existam falhas como esta?
ComCiência
- Sobre os modelos experimentais animais, eles ainda são o principal
meio de investigação dos mecanismos da doença?
Cavalheiro - Atualmente, nós podemos estudar os mecanismos
básicos ligados à epilepsia quer através de modelos
experimentais em animais ou através da obtenção de
tecido cerebral obtido em cirurgias para o tratamento de pessoas portadoras
de epilepsia. Os estudos são complementares, pois se no primeiro
caso trabalhamos com animal e não com ser humano, temos a vantagem
de poder utilizar métodos muitas vezes impossíveis de serem
utilizadas nos estudos humanos. Ao se utilizar tecido obtido de portadores
de epilepsia temos a vantagem de poder "olhar" o fenômeno
tal como ele realmente é, em nossa própria espécie,
mas não podemos entender as relações desse "pedaço"
de cérebro isolado com as demais regiões cerebrais. Acredito
que as duas técnicas de estudo são fundamentais para trazer
novos conhecimentos e propor novas abordagens terapêuticas no futuro.
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ComCiência
- Qual é a aplicabilidade dos resultados obtidos nos experimentos
com animais na transposição para os humanos?
Cavalheiro - Como comentado anteriormente, os modelos experimentais
trazem a vantagem de permitir um estudo mais aprofundado, com métodos
e técnicas nem sempre possíveis, do ponto de vista ético,
de serem utilizadas em seres humanos. Em modelos animais podemos deixar
que a epilepsia siga seu curso natural, sem nenhum tratamento, na tentativa
de entender o que acontece a longo prazo, e assim podemos obter pistas
sobre novas alternativas de tratamento. Isso é impensável
quando estamos diante de seres humanos. Por outro lado, um modelo é
um modelo, não é o fenômeno natural. Portanto, a transposição
das informações do animal para o homem devem ser feitas
de forma cuidadosa, depois de muito estudo e comparação.
Muitas das informações que temos hoje sobre a epilepsia
foram obtidas através do estudo em animais, muitas das novas drogas
hoje usadas em seu tratamento foram inicialmente testadas em modelos experimentais.
Muitas outras perguntas permanecem sem respostas e necessitam, sem dúvida,
da utilização de modelos animais cada vez mais próximos
daquilo que ocorre na espécie humana. Sem esse instrumento teremos
dificuldade em compreender a intimidade dos processos patológicos
e, conseqüentemente, encontrar a sua cura definitiva.
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