Escolas não dão destaque à evolução biológica
O Ministério da Educação brasileiro, por meio das diretrizes curriculares nacionais, sugere que a teoria da evolução biológica seja um eixo integrador que envolva todas as áreas da biologia - zoologia, botânica, ecologia, genética, entre outras. Esta proposta persiste desde a década de 50 e teve influência dos projetos curriculares e das coleções didáticas norte-americanas. No entanto, na grande maioria das escolas brasileiras, a evolução não tem sido adotada como eixo integrador, seja nas aulas de ciências e biologia, seja nos materiais didáticos, vestibulares e nos processos de reformulação dos currículos universitários. Pesquisadores apontam que, geralmente, a teoria evolutiva é trabalhada nas escolas como mais um tópico no rol dos conteúdos da biologia. Para alguns especialistas, essa é uma situação preocupante, em especial porque pesquisas recentes apontam que a teoria evolutiva tem baixos índices de compreensão e pouca credibilidade fora do meio acadêmico.
Por que a evolução não é adotada como eixo integrador?
A teoria da evolução biológica, por tratar do processo que originou todas as espécies, permitiu que diversas áreas - como a botânica, a zoologia, a embriologia e a fisiologia - se unificassem compondo o que hoje conhecemos como biologia. Este fato já constitui, na opinião de alguns pesquisadores, a justificativa suficiente para que o ensino de biologia tenha como princípio organizador a evolução biológica. Porém, não há consenso nesta questão entre os próprios pesquisadores e entre professores e autores de materiais didáticos.
Nas escolas, o que se percebe é que os professores seguem orientações diversas. Alguns optam pela evolução, outros pela ecologia, pela biomedicina, biologia celular e outros ainda não parecem estabelecer nenhum tipo de eixo para organização do ensino. Por que a evolução biológica não é assumida como eixo integrador e unificador do ensino pela maioria dos professores de biologia? Essa é uma questão que inquieta os pesquisadores, especialmente os que defendem essa idéia.
Falhas na formação dos professores, más condições de trabalho, defasagens nos materiais didáticos, ausência de materiais de divulgação científica, distorções nas informações veiculadas pela mídia. É nestes problemas que alguns pesquisadores encontram respostas para o fato de determinados conhecimentos científicos não se apresentarem nas escolas como esperado. No caso da teoria evolutiva, além dessas respostas outras explicações também são apresentadas.
A complexidade dos conhecimentos relacionados à evolução biológica é, na opinião de alguns cientistas, um problema para a abordagem do tema pelos professores. Esta é uma das conclusões da pesquisa (leia mais no artigo "Teaching evolutionary biology") de Rosana Tidon, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília. O levantamento feito por Tidon em várias escolas demonstrou que os professores, embora considerem fáceis os conhecimentos básicos da teoria evolutiva, têm dificuldade em responder questões relacionadas a esses conhecimentos, confundindo, por exemplo, lamarckismo com darwinismo. Diante da complexidade do tema, a pesquisadora também aponta as "confusões vocabulares" como obstáculos ao aprendizado da teoria por professores e alunos. Palavras como evolução (ligada à idéia de progresso) e adaptação (ligada à idéia de melhoria) já fazem parte do universo dos alunos e professores com outros sentidos.
As chamadas "confusões conceituais" não param por aí. A associação entre darwinismo e darwinismo social é, para o pesquisador Edson Pereira da Silva do Departamento de Biologia Marinha da Universidade Federal Fluminense, um equívoco que também pode gerar reações negativas à teoria da evolução. Certa vez, quando ia ministrar uma palestra sobre darwinismo, Silva foi recebido com desconfiança por alunos de ciências sociais. "Muitas vezes ouço alguém repetindo postulados do darwinismo social como se falasse de darwinismo", reforça.
Os especialistas também indicam a ausência nas escolas de conhecimentos desenvolvidos após a apresentação da teoria de Darwin, já consolidados na década de 30, como o neodarwinismo. "A visão de evolução que predomina nas escolas é a de um processo lento, resultado do acúmulo progressivo de mudanças aleatórias vantajosas em seu material genético, que são selecionadas pelo processo da seleção natural. Outras visões, como a Teoria do Equilíbrio Pontuado, de Stephen Jay Gould, e as evidências do Neutralismo, praticamente não aparecem na escola", comenta Luís Fernando Marques Dorvillé, pesquisador de história, filosofia da ciência e sua relação com o ensino de biologia da Faculdade de Formação de Professores na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Também nas universidades, o ensino da evolução biológica omite muitas informações. "A evolução, na melhor das hipóteses, é ensinada como um conceito funcional que 'explica' processos biológicos, mas é impotente para auxiliar o aluno e o futuro professor a ampliar sua visão de mundo", analisa Sandra Selles, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense e membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio). A pesquisadora destaca, entre outras lacunas, a freqüente omissão da co-autoria de Alfred Russel Wallace na formulação da teoria da evolução e o fato de, comumente, se discutir a evolução como um conhecimento biológico construído independentemente do ambiente intelectual do século XIX, no qual o debate sobre as diversidades humanas está em efervescência.
A influência das resistências de cunho religioso na prática pedagógica têm sido estudadas pelos pesquisadores Charbel Niño El-Hani, do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia, e Cláudia Sepúlveda, do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana. Focalizando a relação entre a educação religiosa e científica ao longo da trajetória de formação profissional de alunos protestantes dos cursos de licenciatura em ciências biológicas têm demonstrado a existência de dois grupos distintos: um que recusa totalmente o conhecimento científico relativo à evolução e outro que produz uma síntese entre o conhecimento científico e a visão de mundo religiosa. (leia o artigo dos pesquisadores "Analisando as relações entre educação científica e educação religiosa: II. O uso de casos históricos de cientistas com crenças religiosas como ferramentas na formação de professores"). Essa síntese, desde que não explicitada para os alunos, é vista pelos pesquisadores como uma estratégia interessante para que os futuros professores conciliem a opção religiosa e a prática pedagógica.
Focalizando menos a escola e mais a ciência biológica em sua argumentação, o professor Antonio Carlos Rodrigues de Amorim, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e membro da SBEnBio, comenta que há problemáticas de organização dos currículos escolares que estão muito atreladas à própria biologia. A botânica, a zoologia e a taxonomia têm existência independente da teoria evolutiva, o que torna possível saber sobre animais e plantas sem conhecer a história evolutiva destes seres, exemplifica o pesquisador. Existiriam, ainda, impossibilidades no diálogo entre a evolução biológica e as teorias moleculares da vida, bem como entre a evolução e as discussões sobre nossa história e identidades de humanos.
Para Amorim, o caminho que pode garantir a manutenção da evolução biológica nos currículos escolares não é o da insistência nas peculiaridades dos conhecimentos científicos, mas o do "diálogo entre suas significações mais díspares, plurais e desconstrutoras". Essa análise do pesquisador parte do pressuposto de que a evolução trabalhada na escola participa de processos de produção dos conhecimentos escolares, que deslocam e transformam várias significações da evolução biológica que são colocadas em circulação em nossas culturas pelas ciências (naturais e sociais), pela mídia, pelos materiais didáticos, pelas tradições religiosas, pelo senso comum etc. link para (leia mais sobre estas idéias nos artigos: "O que foge do olhar das reformas curriculares: nas aulas de biologia, o professor como escritor das relações entre ciência, tecnologia e sociedade" e "Platôs, multiplicidade e criatividade na estética da produção do conhecimento escolar" e "Em aulas de ciências, ensinam-se ciências?")
Filmes e reportagens movimentam as aulas de evolução
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Pintura do Escher "Plane Filling II" de 1957
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Pintura do Escher "Reptiles" de 1943
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Os professores de ciências e biologia costumam movimentar suas aulas de evolução com a exposição de filmes. Parque dos Dinossauros, 2001 - Uma odisséia no espaço, A era do gelo, O vento será tua herança, Gattaca e Blade Runer, são alguns dos mais utilizados. Para Marise Basso Amaral, pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, "qualquer filme que mexa com idéias científicas, viagem no tempo, volta ao passado, o futuro da sociedade, inovações genéticas, independente da legitimidade de seu embasamento científico, ou da acuidade de suas informações, está ensinando sobre as nossas raízes, sobre a história do planeta, sobre a relação da sociedade com a ciência". Neste sentido, seu uso cria excelentes oportunidades para inserção dessas discussões em aulas.
Letícia Tonelli Teixeira Leite, professora do ensino médio de uma Unidade de Ensino Descentralizada (UNED) que pertence a um Centro Federal de Ensino Tecnológico em Macaé, Rio de Janeiro, conta que até hoje gosta de usar com seus alunos a cena inicial de 2001 - Uma Odisséia no Espaço, produzido em 1968. Em sua opinião trata-se de uma cena "densa de significados". Com ela a professora trabalha "desde a seleção realizada pelo monolito, criando alternativas à seleção natural como mecanismo evolutivo (ressaltando a percepção de que a seleção natural pode não se constituir no único mecanismo evolutivo atuante, embora o monolito não seja essa alternativa), passando pela utilização de um tacape de osso como analogia tecnológica, até a crítica de uma análise sociobiológica para a fixação dos 'genes para agressividade', o que permite abordar comportamentos complexos humanos numa perspectiva diferente do reducionismo biológico".
As idéias veiculadas em TVs, jornais e revistas também costumam invadir as aulas de evolução, muitas vezes levadas pelos próprios alunos. Certas vezes, os professores aproveitam esses momentos para debater com os alunos o modo como a mídia tem se apropriado e difundido os conhecimentos científicos.
Ensino de evolução: porta aberta para a polêmica com o criacionismo
O ensino de evolução nas escolas, em geral, é considerado como um momento tenso para os professores de ciências e biologia, por ser uma porta aberta para a polêmica entre criacionismo e evolucionismo. Alguns professores optam por não abordar a polêmica e tratam a teoria da evolução como a única teoria explicativa da origem das espécies. Outros apresentam o criacionismo como uma visão que nunca esteve presente na comunidade científica, e que difere do evolucionismo por prever que as espécies foram criadas com as mesmas características dos seres atuais.
Existem também, aqueles que situam o criacionismo na história da ciência lembrando que esta era a única forma de pensar a origem das espécies entre os cientistas - Lineu, por exemplo, o criador do atual sistema de classificação dos seres vivos, era defensor do criacionismo - até a apresentação da teoria de Lamarck em 1801. Outros apresentam as diversas perspectivas que os diferentes povos têm sobre a origem e evolução das espécies, abrangendo desde as explicações religiosas, das lendas indígenas diversas, das
mitologias greco-romanas e dos cientistas antigos e modernos. Há ainda os que promovem uma fusão entre as visões científicas e religiosas preenchendo o que chamam de "lacunas" do conhecimento biológico com as explicações religiosas, ou ainda, concebendo as explicações religiosas como metáforas do conhecimento científico.
Alguns pesquisadores acreditam que seria melhor não abordar o criacionismo nas aulas de evolução. Já os que defendem uma ampla discussão sobre criacionismo e evolucionismo pensam ser importante a compreensão de que ciência e fé pertencem a paradigmas diferentes. Apesar de partirem de pressupostos distintos, o criacionismo e o evolucionismo não são necessariamente opostos e irreconciliáveis.
Para Dalton de Souza Amorim, pesquisador da área de evolução e sistemática da Universidade de São Paulo, a visão dualista que é característica de várias tradições religiosas normalmente não considera que há vários tipos de criacionismo - o próprio Gênesis apresenta duas versões -, nem também que há várias abordagens - como as de Teillhard de Chardin, no início do século XX - que permitem a conciliação entre evolução e a visão judaico-cristã da Criação. Ressalta ainda que o choque entre posições extremas interessa tanto aos dogmáticos religiosos como aos agnósticos dogmáticos, de forma que "aceitar uma religião significaria negar a evolução e aceitar a evolução significaria negar qualquer tipo de fé".
O dogmatismo também é, para Dorvillé, o maior obstáculo à possibilidade de se apresentarem no ensino de ciências e biologia os diferentes pontos de vista, e de se estabelecer diálogos. "Durante a Idade Média o avanço a diferentes visões de mundo foi muitas vezes detido em função do dogmatismo religioso, tanto quanto muitos momentos dos séculos XIX-XX presenciaram a visão única do triunfalismo da tecnologia e da visão de mundo do universo mecanicista", lembra o pesquisador, e desabafa "Não saberia dizer com clareza qual das duas foi mais nefasta".
Jean-Baptiste Lamarck publicou em 1809 o livro Fhilosophie Zoologique (1809) apresentando duas leis que ele imaginava que governavam a evolução dos animais. A primeira era que os órgãos se aperfeiçoavam com o uso repetido, e enfraqueciam com o não uso, e a segunda, que o aperfeiçoamento adquirido deste modo era preservado pela reprodução para os indivíduos descendentes. Tornou-se célebre seu exemplo de que o pescoço das girafas se alongou devido a buscarem os ramos tenros no alto das árvores para alimento.
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Leia mais:
A Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia, uma sociedade que congrega professores e alunos de biologia desde 1997, vem discutindo algumas dessas questões. No último boletim da sociedade há um artigo de Cláudia Sepúlveda sobre a introdução do ensino religioso e do criacionismo em escolas estaduais do ensino fundamental no Rio de Janeiro.
(AP e SD)
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