Editorial:

O mistério da impiedade
Carlos Vogt

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Sociedade se mobiliza contra a violência
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Mídia dramatiza a violência
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Artigos:
O desafio da violência
Gilberto Velho

A Guarda Municipal e a Segurança Públical
Eliezer Rizzo

Guerra e Paz refletem a natureza dupla do homem
Ulisses Capozolli
Trabalho, pobreza e trabalho intelectual
Carlos Vogt
Bitita
Carolina Maria de Jesus
O Bolsão ou A Vida
Eni Orlandi
Poemas:
A Edificação do Ódio
Carlos Vogt
Parábola de Mulher
Carlos Vogt
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O Bolsão ou A Vida

Eni P. Orlandi

O fechamento de espaços recortando a cidade, retraçando seus percursos, redesenhando divisões, refazendo limites entre o público e o privado, separando de forma acintosa pobres e ricos, produzindo, de um lado, nichos, e, de outro, corredores, se faz de modo irrefletido oscilando entre modismo, paranóia e especulação imobiliária. Nada com que se espantar: o capitalismo só está aí se significando como "sabe" significar. Desde que se configure a menor possibilidade, as diferenças sociais e econômicas se manifestam violentamente e a divisão social se sobrepõe ostensivamente à materialidade da divisão do espaço urbano, espaço público.

Trabalho com linguagem e penso a cidade como um espaço em que os sujeitos e as práticas urbanas se significam. O que significa fazer um bolsão chamado de segurança? Significa uma violência simbólica: separa um conjunto de casas do resto da cidade simbolizando assim que quem está de um lado é "amigo", capaz de convívio, e todo resto é suspeito. O que, para mim, mostra nossa incapacidade de convivência social que saiba discernir o que é "socius" do que é "hostis". Em princípio, com este gesto, tudo o que está para lá do muro torna-se hostil. E nova violência se produz: exige-se do "outro" (o que está no lado de fora do muro) que ele se identifique. Ora, como um cidadão igual a mim se arvora no direito de pedir-me um documento de identidade? Só autoridades públicas e em situações precisas têm esse direito. Ou seja, essa forma de tratar o espaço público abusa de seu poder. Para dentro, cria-se também uma indistinção entre o que é público e privado. Por outro lado, se a razão desse gesto in-social é a segurança isso acrescenta outros incovenientes. Cria, no interior, uma incapacidade de conviver com a cidade como tal e produz em seus habitantes uma falsa sensação de segurança. Enganosa, pois nenhum muro é indevassável e as pessoas, como são seres históricos e sociais, não prescindem da vida social. Não se deixa o social para fora. Mas, como tenho afirmado, o deixamos a descoberto. A segurança para mim está justamente na prática inversa, a da produção de relações sociais mais fortes pois só o social bem estabelecido é capaz de nos defender, a longo, a médio e a curto prazo. Sabe-se que o fechamento em bolsões tem aumentado o potencial de violência e a própria natureza da agressão é mais cruel. Porque vem carregada desse sentido de reconhecimento (e reforço) da discriminação social.

Tenho dito que há três componentes que funcionam nessa relação com os espaços fechados e a sua relação com a violência: a constituição da violência, a manutenção da violência e o seu desencadeamento.

Sabemos que as causas - ao nível da constituição - da violência são de muitas naturezas e derivam da má gestão das relações sociais e econômicas. Isso desemboca na impossibilidade de grande parte da população ter acesso a bens sociais mínimos, econômicos, culturais e, entre eles, a bens simbólicos como os do saber, da moral, da ética que subjazem às práticas sociais. Por outro lado, esses bens têm estado ausentes generalizadamente das práticas de administração pública, o que autoriza ainda mais o seu desrespeito. Ainda em relação à constituição da violência quero chamar a atenção para o fato de que só se fala em um tipo de violência, preferencialmente, aquele ligado à agressão e morte quando se trata do marginal que mata para roubar o carro etc. Ora, a vida humana está desvalorizada não só nesse gesto. Isso está disperso pela ideologia capitalista. Um exemplo? A in-compreensão ecologista que protege as capivaras e expõe os cidadãos ao carrapato estrela (transmissor da febre maculosa) e que, cinicamente, guarda os bichos onde eles não deveriam estar - quem disse que parques urbanos são habitat de capivaras? - e mantém afastados da grama e dos lagos e riachos os "humanos", seres sociais, que além disso devem se examinar de duas em duas horas para ver se não há carrapatos em suas peles! Que "lógica" é essa em face da vida humana? Quanto vale um ser humano face a uma capivara? Para quem são os parques urbanos? Por que não manter animais silvestres nas matas onde eles encontrariam condições próprias para seu desenvolvimento? Que gesto foi este que trouxe para dentro da cidade um animal que expôs a população urbana a mais esse incoveniente? Quem está protegendo quem? Essa é uma forma de violência travestida em ecologismo. Se tomo este exemplo é porque ele é muito expressivo. Não somos animais em interação. Somos seres simbólicos, históricos e vivendo em sociedade. Isso tem um sentido que não está sendo respeitado pela sociedade que estamos praticando. Ao invés de ir na direção da sociabilidade fazemos justamente o contrário: investimos em práticas que vêem no social um mal e que se perdem em dogmatismos que se formam em torno de ideais mal digeridos, mal pensados, dogmáticos mesmo. O social não é um mal. Não. O que é perigoso é justamente não praticar o social como o devido. Políticas urbanas não são políticas de planejamento e ponto. São políticas sociais urbanas. Há um social aí a ser respeitado, refletido. Isso ajudaria a interferir na valorização geral da vida humana e a pensar a constituição social da violência.

Agora passemos ao segundo componente dessa trilogia: a manutenção da violência. São repetidos os gestos cotidianos da manutenção da violência. Para dar um exemplo rápido podemos mencionar o fato de que nossa concepção de polícia se esgota na repressão. São políticas de repressão que são praticadas quando pensamos o aparato policial. Ora, esse aparato pode ter um papel formador de consciência civil importante. Ele não serve apenas para reprimir mas para assegurar direitos, e direitos para qualquer cidadão. Seria a base para desenvolver políticas públicas não só repressivas e de reforço da exclusão, da discriminação mas também da formação, da garantia de direitos na prática de deveres que estão na base da significação do nosso sujeito social como cidadão de um Estado constituído. Na ausência dessa prática formadora desse sentimento, para não dizer consciência, a ausência de direitos expulsa consigo a noção de deveres. Ninguém tem a ver com ninguém. É cada um por si e a sociedade e o Estado contra todos...Sentidos não caem do céu: se formam em relações que são relações entre sujeitos vivendo na sociedade e na história.

O terceiro componente é o desencadeamento da violência. São muito variados e situacionais. Eu considero que a construção de muros, de fechamentos é elemento desencadeador de violência porque suprime o social, restringe o espaço público e desrespeita liberdades fundamentais dos sujeitos que vivem em sociedade. Causam uma profunda desorganização no espaço urbano, do ponto de vista da sua memória. Ativa-se um aparato policial repressivo, só se fala em aumentar o número de prisões, fecha-se o marginal atrás de grades (devassáveis por celulares...), isola-se a população da população com grades e muros (também devassáveis: sabe-se que diminui o número de roubos em residências e aumenta o de assassinatos na rua), e deixa-se o social no abandono. Rarefeito. Asfixia da população na supressão do espaço público.

Os bolsões chamados de segurança são só mais uma maneira do capitalismo significar a exclusão e reafirmar o poder econômico. Há, na prática de fazerem-se muros e guaritas, uma exibição mal disfarçada de poder econômico e social.

Podemos então pensar que uma questão como esta tem suas diversas dimensões: histórica, social e política. Todas igualmente importantes. Do ponto de vista da história, fazer muros dividindo fisicamente a população é praticar uma ruptura na memória social, uma memória que não funciona de modo muito consciente mas que está aí fazendo sentido. Desfaz-se um "saber" social que funciona ligando sujeitos no "mesmo" espaço público. O muro é uma maneira de se fazer se sobreporem as distinções que chamo de verticalizadas (hierarquizadas) sobre as relações de contiguidade (convivência no espaço público urbano). É em si uma forma de violência simbólica.

Do ponto de vista social podemos lembrar aqui que o espaço público, que a cidade, é um espaço social com seus conflitos necessários e que está em constante movimento devendo ser observado em suas necessidades ao invés de, ao reprimir seu movimento, criar condições para rupturas violentas. Resta ainda acentuar o que já dissemos anteriormente: que o acesso a bens no espaço público não se dá de forma "natural" pois esses bens são de natureza histórico-social. É preciso pois criar condições que favoreçam esse acesso socialmente significado. O ser social é um ser/sujeito que se significa nessas relações. Se elas forem de violência e de exclusão há grandes chances que elas se signifiquem na violência e na exclusão...

Do ponto de vista da política, é preciso pensar que o poder político, que é um poder de decisão, se apresenta sob sua forma jurídica e administrativa, não em si, mas em função da sociabilidade. Isto significa que este poder é que vai regular os processos de socialização do espaço urbano (público em sua relação com o que é significado como privado). Como isto tem sido feito? Como um exemplo apenas, lendo decretos, regimentos produzidos por planejamentos urbanos, não aparece sequer uma vez a figura do "morador" como figura jurídica. Quem decide sobre o fechamento de um espaço é o proprietário e não o morador. Ora, numa sociedade como a nossa, temos sempre a probabilidade de termos poucos proprietários para muitos moradores. Como fica a manifestação do morador se ela não tem expressão jurídica? Isso não favorece a manipulação imobiliária? É posssível o poder público reger isso?

Em suma, o que tenho observado é que nos fechamos seguindo a lógica do medo, da repressão, da anulação do espaço público e negação da sociabilidade. Penso que temos que, ainda que pessoalmente possamos estar submetidos a esses sentimentos, reagirmos de forma social e significativa em termos da nossa história, saindo dessa lógica da violência que, apesar de nos dar uma ilusão de onipotência, nos deixa na realidade em uma posição grave de impotência social e pessoal. Claro que quando falo em nós estou pensando a população, as entidades, associações, e o poder público em seu conjunto e não isoladamente.

O que proponho pois é não cair na armadilha do discurso da violência - o bolsão ou a vida! - e mudar o rumo da reflexão: ao invés de propor os bolsões de segurança, pensar em interferir na constituição dos bolsões de violência. Ou seja, quando se observa que há segmentos da população que estão se isolando (sendo isolados) em bolsões de violência encontrar meios de interferir com equipamentos públicos, transporte freqüente, iluminação, escola, projetos culturais e de lazer, enfim, manifestações da vida social e convivência historicamente significada de sujeitos que somos enquanto sujeitos que significamos em e pela nossa forma de vida na prática da sociabilidade que é a vida da cidade (droit de cité). Ou seja, ao invés de deixar funcionar a inércia da violência, que vai por si, uma vez que as condições já estão criadas, desfazer-se dessa lógica pela contraposição de uma lógica da sociabilidade, universalmente significada, ou seja, para fora dos muros e das grades.

E aí faz sentido uma outra observação. Em países como a França, por exemplo, a vigilância se faz. Discuti isso com uma colega francesa que manifestou seu espanto com a quantidade de seguranças, policiais etc que encontrava nas guaritas na universidade, nos bancos, nas residências de certos bairros, etc. Aí observei-lhe: quando estou em Paris também não tenho acesso a qualquer espaço sem que, de alguma maneira, se exerça uma vigilância. A diferença é que esta, nesses outros países, é menos visível. Para entrar em um prédio, tenho de ter o código da porta de entrada e este é, em geral, fornecido apenas pelo morador. Não passo assim por um policial ou um segurança, nem tenho de apresentar a carteira de identidade a alguém. Cria-se um pacto de familiaridade e não a exibição de um gesto de hostilidade. Eis a diferença. Penso pois que a visibilidade desses processos é que acrescenta hostilidade e contribui para significarmos nossas tensões sociais e aprofundarmos o abismo que nos separa em nossas histórias sociais, postos, no entanto, no mesmo espaço, que é a concentração em quantidade que constitui toda cidade. Comprimidos em um mesmo espaço e exibindo nossas diferenças e nossas hostilidades. Nossas relações são assim significadas por essa visibilidade dada a processos de repressão e de hostilização que impedem que se expanda o espaço cívico, público, que favoreça nossos laços de sociabilidade.

Para terminar eu diria que não estou tentando convencer pessoas ou salvar a sociedade. Gostaria que minha fala tivesse o sentido de levar a uma reflexão. Por que? Porque se pensamos em perspectiva, podemos nos perguntar que cidade é que nós estamos construindo? Ou, em outras palavras: qual é a forma de cidade que corresponderia melhor à nossa formação social? E é aí que devemos investir com nossas reflexões e propostas. Os gestos que foram feitos no passado levaram-nos aos problemas que enfrentamos hoje. E o que estamos praticando no espaço particular de significação social e politicamente determinado que é a cidade vai nos levar a um futuro com sua configuração. Seria interessante pois se pudéssemos responder minimamente a esta questão: que cidade estamos construindo com nossos muros? Quando os muros separavam uma casa de outra, o tipo de relações sociais, com os nossos "outros" era um. Com muros separando bolsões estamos estabelecendo outras formas de relações. Estamos assim significando nossa condição de vida e estamos ao mesmo tempo investindo em certas formas de relações sociais. Que formas são essas que estamos praticando de organização das diferenças sociais? É preciso termos democraticamente informações adequadas, criar condições para elaborar os conhecimentos necessários e produzir políticas sociais públicas compatíveis que levem a sociedade a praticar seus direitos e a cidade a ter a forma que acolha os sujeitos que nela vivem em quantidade e concentradamente. Aprender novas formas de convivência social. Mobilizar instituições, pensar coletivamente fazendo reunirem-se iniciativas da Justiça, do poder legislativo, executivo, da mídia, da população, configurar programas que atendam essas necessidades, reivindicar condições de sociabilidade praticável. Não deixar pois o social a descoberto mas sustentar o movimento do social como parte de nossa história, no caso, urbana. Deixamos assim de praticar a apropriação, a disputa de um território para podermos conviver na conquista de um espaço realmente, socialmente, habitado. Temos pois de re-significar as relações sociais, dando sentido real à convivência social, ampliando-a e não, como tem sido a prática, restringindo-a. O espaço público é o espaço de convivência social politicamente significada dos sujeitos na cidade. Depende do que aí estiver posto.

Atualizado em 10/11/2001

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