Violência
na TV não provoca comportamento violento da criança
A
violência na mídia tem sido uma preocupação
para pais, educadores e pesquisadores. De um lado, alguns acreditam
que expor a criança à violência, como ocorre
nos desenhos animados, em filmes e video games pode influenciar
no comportamento da criança, fazendo com que seja mais agressiva
ou passe a encarar a violência como algo banal. Para outros
profissionais, a mídia não é a responsável
pelo aumento da violência entre crianças, mas sim pela
violência praticada contra a infância, contra seus direitos
como criança e ser humano. A relação entre
a televisão e a criança está sendo estudada,
mundialmente, desde 1950.
Em
seu trabalho de conclusão do Curso de Rádio e TV,
da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de
São Paulo (ECA/ USP), Andréa Carla Falchi Ferreira
Santos pesquisou a influência da TV sobre a criança,
a partir de uma análise dos canais abertos brasileiros. O
resumo do trabalho pode ser encontrado na página da TVer
(ONG que se propõe a avaliar a qualidade dos programas veiculados
na mídia).
Sua
pesquisa mostrou que, nos lares de hoje, a televisão é
a principal fonte de informação e o principal modelo
a ser seguido, papel que deveria ser cumprido pela família,
segundo a autora. As crianças ficam cada vez mais tempo em
frente à TV, até mesmo na companhia dos pais, que
na maioria das vezes apenas assistem aos programas sem preocupar-se
em avaliar o conteúdo.
Crianças
e adolescentes estariam, segundo Santos, mais vulneráveis
aos apelos televisivos do que os adultos, sendo também mais
facilmente impressionáveis. Sua personalidade ainda está
em formação e as informações que recebe
pela televisão são entendidas de acordo com o universo
psíquico da crianças, que inclui o ambiente em que
vive. Para Santos, essa influência pode estabelecer padrões
de comportamento.
A psicanalista
Angela Vorcaro, do Departamento de Distúrbios da Comunicação
da USP acredita que a mídia não pode ser responsabilizada
pelo comportamento violento da criança e pelo aumento da
violência na sociedade. Ela concorda que a criança
acolhe a violência dos desenhos animados e dos filmes que
assiste, mas diz que ela os liga à sua fantasia.
Vorcaro
usa o atentado ao World Trade Center para exemplificar sua afirmação.
"Um de meus pacientes, uma criança autista, brincava
com um aviãozinho amarrado em um barbante e fez com que o
mesmo se chocasse contra uma torre de blocos que havia construído.
Outra criança que atendo, que não é autista,
me perguntou se eu sabia que o avião errou o caminho e trombou
no prédio, mas que o piloto se salvou". Para a psicanalista,
isso mostra que o efeito da mídia é muito grande,
mas o modo de interpretar a cena é diferente para cada criança.
A mesma cena serviria para cada criança reinventá-la
no seu universo. "Isso é o mais importante em relação
à violência exposta na mídia", afirma.
Para
o educador inglês David Buckingham - em entrevista ao site
Ateliê da Aurora
- um dos pesquisadores mais respeitados no campo da relação
entre televisão e criança, não se pode atribuir
o comportamento violento da sociedade à mídia.
No
livro Moving Images, Buckingham demonstrou os resultados
de uma pesquisa que realizou, na qual procurou saber o que as crianças
tinham a dizer sobre os programas de TV que gostavam de assistir.
Depois, fez um projeto sobre as respostas emocionais das crianças
e percebeu os perigos de uma abordagem puramente racionalista, na
qual os adultos tendem a valorizar apenas as respostas racionais.
As crianças dizem saber que o que vêem não é
verdade, que é representação ou que é
apenas "efeito-especial". Para ele, em um certo nível,
as crianças são capazes de fazer julgamentos críticos
sofisticados sobre o que assistem. Isso significaria que elas sabem
uma quantidade enorme de coisas sobre televisão, porém
"tendemos a negligenciar tipos mais emocionais de resposta",
diz. "O que descobri na minha pesquisa é que você
pode, por um lado, ser bem racional a respeito do que assiste; mas
ainda assim você pode ser emocionalmente afetado por aquilo",
afirmou Buckingham.
O pesquisador
acredita que, nos Estados Unidos, tende a haver um consenso de que
a violência na televisão contribui significativamente
para a violência. Segundo ele, na Inglaterra, alguns também
têm essa visão, assim como existe no Brasil. Mas para
Buckingham, a questão da violência é basicamente
política. "Nos EUA, as pessoas culpam a TV pela violência,
porque não conseguem encarar as causas da violência,
que são questões mais complicadas, como a desigualdade
social e o racismo. A outra questão que os governantes e
os planejadores políticos não conseguem encarar é
a das armas. Acho que, se quisermos apontar uma causa única
para a violência ser muito maior nos Estados Unidos do que
na Inglaterra, é o fato de na Inglaterra não termos
armas, enquanto no país norte-americano há quase mais
revólveres do que gente".
A idéia
de Angela Vorcaro se aproxima da do educador inglês. Para
ela, a violência que assusta à sociedade hoje não
pode ser atribuída à mídia, mas refere-se a
problemas sociais muito sérios. "A criança que
tem acesso à televisão, seja ao canal aberto ou à
TV a cabo. Assiste aos Pokémons, Digimons e Power Rangers,
imita suas lutas, reproduz o seu discurso da mesma forma que pode
fazer isso com um comercial de creme dental", diz. Mas a criança
brincaria com isso. Segundo Vorcaro, ela sabe que não é
nenhum daqueles personagens, a não ser que tenha alguma disfunção
psíquica.
Já
para criança de rua, que tem pouco acesso à televisão,
não seria a mídia que iria influenciar o seu comportamento
e sim as condições de vida. Angela afirma que essa
criança tem a sua infância violentada em vários
momentos. "Quando, por exemplo, ela vai assaltar e diz: 'Ô
tia, isto é um assalto!', ela não tem noção
se este ato é violento ou não. O 'tia' já impõe
a condição dela. Se eu, ao invés de bradar
'Que é isso menino? Você não pode me assaltar,
você é uma só uma criança!', levanto
o vidro do carro, saio correndo ou dou o dinheiro, estou violentando
a infância dela, ao invés de dar proteção,
na medida que dou uma função à fala dela, como
se ela tivesse responsabilidade pelo que está dizendo. A
palavra dela não é posta na brincadeira e passa a
ser realidade", exemplifica Vorcaro.
Este
tipo de ação faria a criança achar que a violência
é banal. Essa criança teria, dos quatro aos 13 anos,
o tempo para assimilar as experiências familiares, as relações
sociais. No entanto, elas passariam para a adolescência já
aos 5 anos, porque a palavra dela passaria a valer como uma palavra
violenta. Isso daria a ilusão de poder porque ela é
capaz de amedrontar alguém.
Vorcaro
continua explicando que "é nesse confronto da agressividade
que elas vivem. Não é uma vida coletiva, social, partilhada.
O outro age agressivamente com ela e ela responde da mesma forma.
E essa passa a ser a sua condição de existir, e de
sobreviver. Essa criança não tem parâmetros
para avaliar se isso é bom ou ruim. E ela não tem
escolha".
Uma
mudança no sistema educacional poderia amenizar essa situação.
"A escola deve ser a formadora de cidadãos junto com
a família ou caso a família não tenha condições
de fazê-lo", garante Vorcaro.
Escolas
são porta de entrada para a violência
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As
escolas deixaram de ser referência segura para a comunidade.
A conclusão é do Sindicato de Especialistas
de Educação do Magistério Oficial do
Estado de São Paulo (UDEMO), que desde 1995 faz um
levantamento sobre a violência nas escolas. A última
pesquisa, realizada no final do ano passado, observou 496
estabelecimentos da rede pública estadual de ensino
na capital, região do ABCD paulista, interior e litoral.
Para
os educadores, a violência é uma das principais
inimigas do projeto pedagógico das escolas porque impede
ou dificulta a sua execução. "Muitas vezes,
os problemas sócioeducacionais se apresentam como insolúveis,
como obstáculos intransponíveis para a realização
da tarefa educacional", afirma Roberto Augusto Torres
Leme, presidente da UDEMO. Leme explica que os professores
ficam desestimulados e impotentes para resolver a questão
educacional, uma vez que os problemas são de ordem
familiar, política, estrutural, social e econômica.
"Além disso, o professor fica muito pouco tempo
com o aluno; a escola parece não ter mais utilidade
para os alunos, que a encaram mais como local de 'lazer' do
que como ambiente sociocultural e de trabalho", conclui.
Indisciplina
gera violência
Os
organizadores da pesquisa acreditam que a violência
surge dentro da escola como conseqüência da indisciplina
- agravada por outros dois fatores: a intolerância e
a falta de solidariedade. Isso explicaria o comportamento
agressivo de crianças e adolescentes que se armam para
resolver conflitos de pequenas proporções, como
a disputa por uma caneta ou um lápis. Em outras palavras,
quando o diálogo falha a violência banalizada
explode.
As
diretorias e conselhos de escolas mencionadas na pesquisa
apresentam várias causas que levam os alunos à
indisciplina: a desagregação familiar, separações
dos pais, mortes, consumo de drogas, falta ou inversão
de valores morais e éticos, desprestígio da
educação, carência afetiva dos filhos
e a omissão dos pais, que não participam dos
problemas escolares e são coniventes com os erros dos
filhos, não incentivam os estudos e não impõem
limites aos filhos, transferindo para as escolas a parte da
educação que cabe à família. Carências
múltiplas, como desemprego, miséria, exclusão
social e falta de tempo para os filhos também são
citados na pesquisa como fatores determinantes.
Há
um outro ponto relevante. A pesquisa indica que os alunos
estão desorientados quanto à postura na escola,
no grupo de amigos e na própria família devido
a uma visão equivocada dos seus direitos e deveres.
"Acreditam nos seus direitos, mesmo quando em detrimento
da vida coletiva. Crêem que são impunes frente
ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Falta orientação
sobre sexo, drogas e vida em grupo. Os conflitos de gangues
tornam-se cada vez mais freqüentes. Como estímulos
negativos (e fatores desmotivadores) têm muito peso
a violência, as notícias sobre corrupção
no país e o desemprego", explica o texto da UDEMO
sobre os resultados da pesquisa. (M.A.)
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A escola
também pode ser a instituição que ajuda na
avaliação do conteúdo da TV, auxiliando a criança
a fazer escolhas melhores dentro da programação, bem
como capacitá-la a ter uma visão crítica daquilo
que assiste. Para Buckingham, é cada vez mais difícil
censurar ou controlar a violência nos meios de comunicação.
"O que precisamos fazer é encontrar um jeito de capacitar
os espectadores a fazerem suas próprias escolhas, escolhas
bem-informadas". Ele lembra que o sistema de classificação
dos programas nem sempre utiliza os mesmos critérios que
a família usaria.
Os
altos índices de audiência de programas que têm
a violência e a agressividade como temas principais fazem
com que as emissoras utilizem este artifício para atrair
os anunciantes. Isso ocorre porque, segundo a psicanalista Maria
Rita Kehl, em afirmação publicada no trabalho de Santos,
"tudo que produz horror, numa característica do inconsciente
humano, produz prazer".
O livro
O grande massacre de gatos, e outros episódios da história
cultural francesa, de Robert Darnton, mostra como as histórias
que os camponeses dos séculos XVII e XVIII contavam nas rodas
de conversas se transformaram nos contos franceses, alemães
e de outros países para crianças. Essas histórias
falavam de monstros, fantasmas e continham cenas extremamente violentas
de lobos que devoravam avós e crianças - que tranformou-se
na história de Chapeuzinho Vermelho-, de maridos que matavam
suas suas esposas jogando-as em caldeirões ou fogueiras e
que se transformou na história do Barba Azul, de pais que
abandonavam os filhos para morrerem na floresta, como na que virou
o Pequeno Polegar ou de bruxas que engordavam crianças para
comê-las depois, como em João e Maria.
Mesmo
que não seja a responsável pela violência na
sociedade, a TV pode e deve melhorar a qualidade de sua programação,
até mesmo no sentido de evitar a exposição
de crianças a cenas chocantes gratuitamente. Essas cenas
podem não causar comportamento violento na criança,
mas podem assustá-las dependendo da idade que tenham e de
seu universo psíquico.
A
legislação, a sociedade e o governo
Segundo
Andréa F. Santos, a constituição possui dois
artigos referentes ao conteúdo das programações
de rádio e televisão e à garantia da boa qualidade
dessas programações aos telespectadores e ouvintes.
Nesses dois artigos, além de estabelecer o papel social da
televisão - educação, entretenimento, informação
e prestação de serviços - e de assegurar que
a programação televisiva deve respeitar valores éticos
e morais da pessoa e da família, também garantem aos
telespectadores os meios legais de defesa contra qualquer programa
que contrarie o estabelecido.
"Apesar
de não desejar a volta da censura a sociedade vem se movimentando
para que os direitos dos espectadores sejam respeitados. Ela quer
um maior controle sobre o que é exibido, o que converge para
uma das soluções propostas pela ONG TVer: a criação
de mecanismos democráticos de controle público da
televisão", completa Santos.
(SP)
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