Trabalho,
pobreza e trabalho intelectual[1]
Carlos
Vogt
I
"Morreu
como sempre viveu: pobre."
Termina
assim, conforme noticiaram os jornais da época, o pequeno
discurso de improviso feito por um orador anônimo aos pés
do leito derradeiro de Carolina Maria de Jesus.
Apesar
da frase de efeito do simpatizante de Carolina, ela nem sempre viveu
na pobreza. Ao menos, não viveu sempre na mesma pobreza que
o seu livro Quarto de Despejo[2]
retrata.
O
fato de ter transformado sua experiência de favelada num diário-reportagem
tirou-a da favela do Canindé, onde viveu mais de nove anos,
e a fez conhecer, ainda que por brevíssímo tempo,
a glória, a fama, "o mundo e os fúteis ouropéis
mais belos". Mas, ao contrário do ser místico
que no soneto de Cruz e Souza triunfa supremamente sobre os vícios,
as lutas, e as ilusões terrenas, Carolina jamais conviveu
tranqüilamente com as lembranças do sucesso efêmero.
A
se dar crédito aos jornais e às poucas entrevistas
que se fizeram com ela no retiro do pequeno sítio de Parelheiros,
morreu triste, abandonada e incompreendida. Ao que parece, sem compreender
que os mecanismos sociais que promoveram o seu destaque laboraram
também o seu esquecimento.
II
Carolina
Maria de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais, no ano de 1914,
provavelmente. Mudou-se com a mãe viúva e os irmãos
para uma fazenda, quando cursava o segundo ano primário.
Estes dois anos mal cumpridos constituirão toda a sua escolaridade.
De volta a Sacramento, e com a morte da mãe, vem para São
Paulo em 1937.
Trabalha
como empregada doméstica em diversas casas até que,
grávida de seu primeiro filho, já não a aceitam
para esse tipo de serviço. Muda-se para a favela e tem mais
dois filhos. Três ao todo, dois meninos e uma menina, cada
um de um pai diferente.
Carolina
não se casou. Tampouco teve um companheiro fixo. Não
por falta de propostas. Muito menos de amores.
Em
1958 aparece a primeira reportagem sobre seu diário no jornal
Folha da Noite. No ano seguinte, é a vez da revista
O Cruzeiro de divulgar o retrato da favela feito por Carolina.
Era o aceno do sucesso e da popularidade. O abraço viria
em seguida, a partir de 1960.
Publicado
pela Livraria Francisco Alves, Quarto de Despejo teve a sua
primeira edição de dez mil exemplares esgotada na
primeira semana do lançamento. Nove edições
foram feitas no Brasil, sem contar a edição de bolso
de 1976, um ano antes da morte da autora. O livro foi traduzido
para treze línguas e circulou em quarenta países.
Carolina Maria de Jesus, a favelada-escritora, passou a ser assunto
constante de jornais e revistas nacionais e internacionais, com
amplas reportagens em Life, Paris Match, Epoca, Réalité
e Time. Esta última compara os oitenta mil exemplares
vendidos do livro ao sucesso comercial de Lolita, de Nobokov.
No
lançamento de Quarto de Despejo, presente uma multidão,
além de artistas e autoridades. Entre estas, o ministro do
Trabalho de Jucelino Kubitscheck - João Batista Ramos - que
promete uma casa para a autora. Não deu.
Contudo,
o êxito comercial do livro permite-lhe comprar uma, de alvenaria,
no bairro de Santana, onde passa a morar com os filhos até
1964.
São
os anos dourados da transformação que atravessa sua
vida: viagens, jantares, contactos com presidentes, entrevistas,
participação em congressos, vida de artista. Em 1961,
por exemplo, participa do II Festival de Escritores, realizado no
Rio de Janeiro. Volta desiludida e revoltada com o encontro e em
particular com Jorge Amado, organizador do Festival, que segundo
ela teria boicotado a venda de Quarto de Despejo para favorecer
a de Gabriela, Cravo e Canela.
O
descenso do prestígio de Carolina coincide com o fim do populismo
oficial no país e com a virada política do golpe militar.
Deixa
a casa de Santana para viver nos oito mil metros quadrados de terra
que compra em Parelheiros, a quarenta quilômetros mais ou
menos de São Paulo.
Publica
outros livros. Um deles - Casa de Alvenaria - em edição
comercial ampla, escudada no êxito do primeiro. Se a casa
de Santana não deu certo, o livro sobre a sua experiência
com a nova moradia tampouco. Financia a publicação
de Provérbios e Pedaços de Fome ainda com o
dinheiro recebido pelas vendas de Quarto de Despejo. O fracasso
parece ser definitivo.
Em
1966, os jornais voltam a falar da autora. Teria sido vista na rua
Helvetia, maltrapilha e exercendo a "profissão"
que sempre exerceu nos anos em que morou na favela: a de catadora
de papéis. Queixa-se, na ocasião, das dificuldades
que tem para conseguir trabalho e mesmo de vender o que recolhe
pelas ruas. Os comerciantes da pobreza se recusam a negociar o lixo
da cidade com uma estrela. Entre parênteses, a situação
de Carolina Maria de Jesus, nestas circunstâncias, é
muito parecida com a dos negros do Cafundó que postos em
evidência por pesquisadores e jornalistas, em virtude do vocabulário
africano conservado ativamente em sua comunidade, passaram a ter
sérias dificuldades para encontrar trabalho como diaristas,
sob a alegação dos patrões de que artistas
não precisam trabalhar.
Mas
Carolina não abandona a atividade de escritora. Escreve os
romances Felizarda e Os Escravos (incompleto), nos
quais pretende tratar da vida dos ricos. Escreve também Um
Brasil Para Brasileiros, onde conta suas memórias entremeadas
por narrativas de fatos históricos que marcaram a vida política
do país na década de vinte e começos dos anos
trinta. Nenhum destes livros foi publicado no Brasil.
Em
Parelheiros vive numa pequena casa com os filhos. Algum plantio,
alguma criação - galinhas e porcos -, uma venda de
beira de estrada que não dá certo, por causa dos fiados,
segundo ela própria explica.
Reaparece
nos jornais em 1976. Neste ano é lançado em edição
de bolso o seu primeiro livro - Quarto de Despejo.
Agora
vive apenas com o filho mais velho. Os outros dois se casaram e
Carolina é avó de quatro netos.
É
na casa de José Carlos, o segundo filho, um barraco, que
ela morre no dia treze de fevereiro de 1977.
Em
1982 é publicado na França o livro Journal de Bitita
(Um Brasil Para Brasileiros). Em 1983, a rede Globo adapta
para o programa Caso Verdade o livro Quarto de Despejo
que já conhecera, nos anos de sucesso, uma outra adaptação
para o teatro e que, durante algum tempo, dera também à
autora, na solidão de Parelheiros, o sonho de vê-lo
transformado em filme nos Estados Unidos.
III
Quarto
de Despejo, tal como o público o conheceu, é o
resultado impresso de um trabalho de cortes e pequenos acertos feitos
pelo jornalista Audálio Dantas sobre os originais de trinta
e cinco cadernos manuscritos nos quais Carolina Maria de Jesus foi
registrando o seu dia-a-dia na favela do Canindé.
O
livro, enquanto diário, apresenta uma certa descontinuidade.
Os registros começam no da 15 de julho de 1955 e são
interrompidos no dia 28 de julho do mesmo ano. Retomados no dia
2 de maio de 1958, estendem-se, com breves interrupções,
até 1º de janeiro de 1960.
A
essa descontinuidade cronológica do registro não corresponde,
entretanto, uma quebra na estrutura narrativa do diário.
Os dias vazios de anotações são preenchidos
pela extensão metonímica dos dias plenos, através
de um recurso de estilo bastante simples, mas eficiente: o da repetição.
Os dias se repetem iguais na monotonia implacável de um dia
de todos os dias: levantar cedo, ir buscar água na única
torneira que serve a mais de cento e cinqüenta barracos iguais
ao de Carolina, atender aos filhos, sair para a cidade em busca
de papel, de lata, de ferro, sobrecarregar-se com o peso de seu
transporte, vender a sucata recolhida nas ruas, comprar os alimentos
que serão consumidos no mesmo dia e na proporção
exata do pouco dinheiro obtido no trabalho de todo o dia.
As
significações podem variar, porque os incidentes registrados
também se modificam. Mas essas variações convergem
todas para uma estrutura narrativa, cujo ponto de sustentação
principal é a presença obsidente da fome e da pobreza
nas formas mais concretas de suas manifestações.
Alguém
já comparou certas passagens mais líricas do diário
de Carolina à singela beleza das Fioretti de São
Francisco de Assis. Esta, por exemplo, em que a autora, referindo-se
a uma vizinha da favela, escreve:
"Dona
Domingas é uma preta igual ao pão. Calma e útil".
(p. 52)
A
comparação, além de motivos de ordem estilística,
deve ter também apoio ideológico, certamente em virtude
da tematização da pobreza, comum ao santo da Umbria
e à favelada do Canindé. Mas só uma abstração
de efeito retórico permite, na verdade, compará-los.
Se
lembrarmos, por exemplo, a "parábola da Verdadeira Alegria"
de São Francisco de Assis, nela veremos que a pobreza é
um fim e um ideal que se convertem num instrumento didático
para a redenção do homem, de modo que a verdadeira
alegria é o sofrimento, o abandono e a fome. No livro de
Carolina, porque a pobreza é um estado real e concreto de
carência, algo que os protagonistas do drama da miséria
vivem como condição social e não como projeto
de vida exemplar, a alegria é também muito mais palpável
e toca diretamente os sentidos:
"...Fiz
a comida. Achei bonito a gordura fringindo na panela. Que espetáculo
deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver
nas panelas. Ainda mais quando é arroz e feijão, é
um dia de festa para eles." (p.43).
Embora
talvez se pudesse dizer de Carolina aquilo que já se disse
de São Francisco - simplex in litteratura -, Quarto
de Despejo apresenta a pobreza com a materialidade e a concreção
de um objeto físico e não como a provação
da carne para a redenção do espírito. Menos
ainda, a pobreza é nesse livro a manifestação
de estados psicológicos contraditórios, como é
comum encontrar nas representações da vocação
da classe média e da burguesia para um certo sentimento de
culpa, muitas vezes pronunciado em termos de despojamento material
e moral.
Assim,
a pobreza em Quarto de Despejo não é de modo
algum exemplar, no sentido de que não é uma construção
simbólica com fins didáticos, mas um estado social
de carência efetiva contra o qual só se pode lutar
nos termos próprios das limitações dos meios
que esse estado propicia.
Esta
luta é vã, porque fadada a consumir-se no imediatismo
do consumo dos recursos que o habitante da favela pode ter ao seu
alcance.
A
mediação das relações entre necessidades
básicas e a sua satisfação pelo trabalho tem
um grau tão elementar e primário que o próprio
trabalho, longe de entrar na dinâmica do processo de produção
e de transformação das condições sociais
de seus agentes, constitui apenas um fator de reprodução
das hierarquias que lhe determinam a forma, dando-lhe como conteúdo
uma total ausência de futuro social. Amanhã será
como hoje, hoje é como ontem, ontem foi como todos os outros
dias anteriores e futuros.
Mesmo
o dinheiro, mediação das mediações,
deixa de ser aí um valor, uma abstração para
ser, ele também, um objeto, uma coisa. O dinheiro-ferro,
o dinheiro-papel, o dinheiro-arroz-e-feijão, enfim o dinheiro-coisa
substitui o dinheiro-moeda e expressa, mais do que qualquer outro
recurso de composição ou de figura de estilo, a realidade
e a concreção da pobreza no mundo social que o livro
de Carolina nos mostra.
Antonio
Candido, na análise que faz do romance I Malavoglia (1881),
de Giovanni Verga, observa um fenômeno semelhante[3].
Segundo o crítico, nesse romance, o dinheiro "parece
transitar do mundo abstrato do valor para o universo denominado
das coisas naturais" (p. 97) e constitui um recurso importante
para dar expressão metafórica ao mundo fechado da
pobreza.
Guardadas
as devidas proporções, o mesmo se pode dizer da função
do dinheiro no livro de Carolina. Aliás, muitos dos outros
recursos utilizados pelo romancista italiano e apontados por Antonio
Candido aparecem, certamente com menor ênfase funcional, em
Quarto de Despejo. Entre eles, a repetição
e o provérbio que no plano da narrativa e da linguagem contribuem
para dar substância expressiva ao fechamento e à imobilidade
do mundo social de que nos fala o diário de Carolina.
Quarto
de Despejo é uma obra de gosto realista, na qual o verismo
é a nota dominante da "ideologia estética"
do autor. Contudo, o seu realismo estaria melhor caracterizado se,
ao invés de literário, o víssemos dentro daquela
espécie de realismo etnográfico desenvolvido pelo
antropólogo Oscar Lewis nos anos quarenta e cinqüenta
nos seus trabalhos sobre a cultura da pobreza[4].
A diferença, entre muitas outras, é que ao ficcionista,
num caso, e ao antropólogo, no outro, substitui-se no livro
de Carolina o autor como personagem da experiência existencial
e social vivida, e o personagem como autor da mesma experiência,
agora relatada. Se Lewis megulha sua pesquisa num dia de cinco famílias
mexicanas pobres, Carolina desdobra no tempo sua pobreza e a dos
favelados. Mas como os dias se repetem iguais e monótonos
no ritual de fome-trabalho-sobrevivência, o resultado é,
como dissemos, a construção, ao longo da narrativa,
de uma espécie de diametáfora de todos os dias, tão
denso e fechado na imagem quanto o dia etnográfico de Lewis
o é nos detalhes.
Por
este caminho o realismo de Quarto de Despejo reencontra a
literatura, chegando ao ponto de apresentar a sua autora-personagem
com uma certa dose daquele titanismo romântico, daquela majestade
tenebrosa, a que se refere Antonio Candido em seu ensaio sobre Verga,
e que, não raras vezes, são atribuídos nos
romances naturalistas ao destino do pobre, quando jogado nos limites
da sobrevivência. Se se pensar na grandiosidade do gesto suicida
da escrava Bertoleza no final de O Cortiço de Aluísio
Azevedo pode-se ter uma medida sugestiva desse titanismo.
Não
se quer afirmar que Carolina Maria de Jesus exagera por um tique
de escola literária, a que não pertence, a tragédia
dos humildes e as tintas da autocomiseração. Mas também
é verdade que o documento que nos oferece sobre a pobreza
da favela tem um expediente intrínseco de distanciamento
que produz no livro uma espécie de duplo complementar e antagônico
da realidade que ele retrata. De um lado, a autora pertence ao mundo
que narra e cujo conteúdo de fome e privação
compartilha com o meio social em que vive. Do outro, ao transformar
a experiência real da miséria na experiência
lingüística do diário, acaba por se distinguir
de si mesma e por apresentar a escritura como uma forma de experimentação
social nova; capaz de acenar-lhe com a esperança de romper
o cerco da economia de sobrevivência que tranca a sua vida
ao dia-a-dia do dinheiro-coisa.
Assim,
o diário de Carolina ao mesmo tempo em que se cola à
realidade que mimetiza, constitui uma vingançca em relação
a ela. Reproduzida em livro, esta realidade incorpora, como traço
constitutivo do trabalho intelectual que a produziu escrita, a possibilidade
do projeto e do futuro sociais que em si mesma ela excluía.
Não é por acaso que a autora, semi-alfabetizada, mostra-se
no livro distinta e distinguida dos demais favelados. O seu diário
aparece freqüentemente como uma espécie de livro de
São Miguel, livro do juízo, onde ameaça anotar
os comportamentos "errados" de seus vizinhos. Carolina
manifesta ao longo de todo o diário um acentuado pendor legalista
e uma crença no trabalho que lembra muito a ideologia dos
personagens dos sambas de Adoniram Barbosa, o Joca de "Saudosa
Maloca", em particular[5].
No
mundo dicotômico de oposições estanques que
Quarto de Despejo nos apresenta, a oposição
cidade/favela subsume uma série de outras não menos
importantes para se compreender a geografia que o livro desenha
e a circulação das necessidades e dos desejos da autora-personagem
em meio a seus acidentes. Luz e sombra, brancos e negros, riqueza
e pobreza, céu e inferno, integrados e marginais, casa de
alvenaria e barraco, luxo e lixo são alguns dos termos que
as caracterizam. Entre eles não há vasos comunicantes
e mesmo o trabalho, como dissemos, na sua forma primária
de trabalho-sobrevivência, se permite o contacto dos opostos
não o faz senão para reforçar a sua separação.
Mas Carolina sonha com as estrelas e não abdica de seu brilho.
No plano mais concreto dos comportamentos sociais, ela funciona
como um elo da ligação entre a cidade e a favela chamando,
por exemplo, várias vezes a polícia para pôr
ordem nas situações mais críticas da desordem
que a favela representa.
Carolina
é o chefe de uma família de pai ausente, de uma família
contra o pai, se preferíssemos uma caracterização
mais radical ao estilo de Pierre Clastres. Um tipo de família
a que os antropólogos chamariam matrifocal e muito comum
em sociedades que tiveram na sua formação e desenvolvimento
a contribuição decisiva do trabalho escravo. Ao realismo
prático que a faz entender que um marido no barraco seria
antes de tudo mais uma boca para sustentar, associa-se em Carolina
o ideal do artista que necessita de concentração criadora
e também um certo estoicismo de resistência contra
a pobreza material e moral do meio em que vive, conferindo-lhe no
livro aquele traço de titanismo e de tenebrosa nobreza que
acima referimos.
O
repúdio da autora à situação em que
se encontra é visceral. Da mesma forma e na mesma medida
é por ela estranhada. Tanto que no dia em que ia se mudar
da favela, depois do sucesso do livro, foi apedrejada pelos vizinhos.
O ponto de estranhamento entre Carolina e os favelados é,
sem dúvida, o livro. Escrevê-lo foi a forma que encontrou
para tentar romper o fechamento do mundo em que vivia. A esperança
que deposita nessa experiência é grande. E é
muito provável que tenha sido renovada depois do conhecimento
que a autora trava com o jornalista que a "descobriu"
em 1958, quando retoma as anotações abandonadas desde
1955.
IV
Em
Quarto de Despejo, a malandragem não é nunca
um expediente de transformação ou de mobilidade sociais.
Não é sequer alternativa ideológica para a
pobreza real. Apenas uma das máscaras com que ela se manifesta
num mundo de opressão atirado nos limites da mera sobrevivência.
Ao
malandro, Carolina contrapõe o trabalhador, o operário
e a inocência das crianças. De algum modo intui que
para quebrar o círculo de reprodução da miséria
é preciso mais do que simpatia. Por isso fala às vezes
em revolução e denuncia com freqüência
o populismo demagógico de muitos políticos importantes
da época.
O
seu livro despertou paixões e desencadeou movimentos para
a eliminação das favelas em São Paulo. Há
quem diga que a favela do Canindé desapareceu em conseqüência
de suas denúncias. Outros lembram que a marginal do Tietê
já estava planejada e que a favela sumiria de qualquer maneira
por motivos mais estruturais de urbanização.
A
agitação em torno do livro foi grande.
Tão
grande que, ao menos no plano individual, Carolina pareceu encontrar
a solução para os seus problemas. O trabalho intelectual
produzia, enfim, o efeito de distinção dos méritos
pessoais da favelada, transformando-a, numa semana, na autora de
um dos maiores best-sellers do Brasil.
Desse
modo, os mesmos mecanismos eletivos, presentes nas relações
de trabalho fortemente hierarquizadas, e cujas conseqüências
ela padece no fundo sombrio do quarto de despejo da cidade, são
também o passe para a sua saída.
Carolina
vive, então, como muitos outros pobres e negros no Brasil
- Lima Barreto talvez seja o caso mais trágico de nossa literatura[6]
- a esperança de resgatar, pelo prestígio intelectual,
o prestígio social que nunca tivera.
Para
isso era preciso continuar a escrever. Ela o faz.
Mas
a novidade de Quarto de Despejo envelheceu. Foi consumida
rápida e definitivamente. Os outros livros não vendem.
Carolina
Maria de Jesus recolhe-se no pequeno sítio de Parelheiros.
Experimenta, com fracasso, a solução que havia ela
mesma defendido por escrito para a pobreza da favelas: voltar ao
campo e ao trabalho com a terra.
Notas
[1]
In: SCHWARZ, Roberto (org.). Os Pobres na Literatura Brasileira.
São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 205-213. [voltar]
[2] Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, São Paulo,
Livraria Francisco Alves (Editora Paulo de Azevedo Ltda.), 2ª.
ed., 1960.[voltar]
[3] Antonio Candido, "O mundo-Provérbio (Ensaio sobre
I Malavoglia)", Revista Língua e Literatura, São
Paulo, nº 1, 1972, pp. 93-111.[voltar]
[4] Oscar Lewis, Antropologia da la Pobreza, México/Bogotá,
Fondo de Cultura Económica, 1961.[voltar]
[5] Ver aqui mesmo o artigo de José Paulo Paes, "Samba,
Estereótipos, Desforra". Também publicado no
Folhetim, nº 309, de 19 de dezembro de 1982. [voltar]
[6] Para que se tenha uma medida da extensão dessa tragédia,
ver, por exemplo, o artigo de Antonio Arnoni Prado, "A Correspondência
entre Monteiro Lobato e Lima Barreto", Suplemento Literário
- Minas Gerais, Belo Horizonte, Ano XV, nº 855, 19 de fevereiro
de 1982, pp. 6 e 7.[voltar]
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