Programa espacial brasileiro: autonomia ou inserção periférica?
Paulo Escada
A eclosão das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki trouxe ao mundo
uma nova percepção de estratégia militar que iria influir fortemente
nas relações internacionais a partir daquele momento, inaugurando
o período da Guerra Fria, um mundo de relações bipolares, de um
lado liderado pelos Estados Unidos e de outro pela União Soviética.
O mundo ficaria dividido ainda em três níveis diferentes de países,
em relação ao domínio da tecnologia nuclear: aqueles detentores
da bomba, os não detentores e os com potencial para obtê-la.
A corrida espacial, que teve como marco o lançamento do satélite
soviético Sputinik, em 1957, abrigou outro cenário da disputa do
período da Guerra Fria. Cada intento alcançado por um dos lados
concorrentes, era um modo de mostrar ao inimigo e ao mundo seu poderio
tecnológico, principalmente a capacidade de destruição. Nesta queda
de braço, ocupa atenção especial o domínio de tecnologias de lançadores
de satélite, os foguetes, que podem ser facilmente convertidos para
uso militar.
No entanto, a possibilidade da aniquilação mútua no caso da deflagração
de uma guerra iria despertar a preocupação das duas superpotências
a partir dos anos 60, quando se iniciam as negociações bilaterais
para o controle do arsenal bélico nuclear. A política norte-americana
começa a mudar em direção a uma linha que iria combinar defesa com
diplomacia. Mecanismos de controle e uma permanente racionalidade
frente ao inimigo seria adotados com o intuito de se evitar o confronto
direto, a possibilidade da guerra total, e a destruição mútua.
Em 1968, é assinado um dos principais tratados internacionais: o
Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), no âmbito da Organização
das Nações Unidas (ONU), que atualmente conta com a assinatura das
cinco maiores potências mundiais - Estados Unidos, Rússia, Inglaterra,
França e China. As relações bilaterais entre Estados Unidos e União
Soviética avançaram em 1991, com a redução considerável do arsenal
nuclear dos dois países, através do tratado START II. No final do
mesmo ano, ocorre a dissolução da União Soviética, marcando definitivamente
o fim do período da Guerra Fria.
Os Estados Unidos, então como única potência mundial hegemônica,
se vêm na tarefa de conduzir de forma bilateral e também nas frentes
multilaterais a política de desnuclearização. Isso porque o arsenal
bélico nuclear soviético, bem como suas instalações nucleares e
a sua inteligência diluíram-se entre os novos Estados formados a
partir da dissolução da União Soviética. Esta nova realidade ia
exigir dos Estados Unidos um esforço adicional de sua diplomacia
e adoção de novas estratégias de negociação e persuasão para conseguir
a adesão de países detentores da bomba e da tecnologia nuclear aos
principais tratados e regimes de controle de armas nucleares, como
também de mísseis balísticos.
Apesar dos esforços engendrados pelos Estados Unidos para conter
a corrida pela bomba, as iniciativas neste sentido não demonstram
eficácia. Países em regiões contenciosas argumentam a necessidade
de defesa para investir no desenvolvimento da tecnologia nuclear.
França e China realizam testes nucleares, sob a alegação de que
necessitam manter o domínio da tecnologia. Os testes reforçam as
críticas ao caráter discriminatório do TNP, que confere diferente
tratamento aos países detentores e aos não detentores da bomba.
Índia e Paquistão, países não alinhados, que adquiriram recentemente
a tecnologia da bomba atômica, agravam o cenário mundial, sob a
perspectiva de instabilidades e guerras de proporções catastróficas.
Esse cenário, exposto sumariamente, demonstra o grande paradoxo
da era nuclear, como afirmam Araújo e Liberatti: "o objetivo político-estratégico
das armas nucleares era evitar a sua utilização" [1].
Se num primeiro momento a busca pela bomba atômica foi estratégica
na consolidação do poderio militar, político e econômico sobre o
mundo, por outro, a sua proliferação representou grande risco à
paz mundial.
A inserção brasileira na era espacial Durante os primeiros
anos de ditadura militar brasileira, os Estados Unidos desenvolvem
uma estreita política de cooperação militar com o Brasil. No entanto,
no início dos anos 70, apesar de país aliado, o Brasil terá um tratamento
mais distanciado por parte da política externa dos Estados Unidos.
Exatamente neste período, os militares elaboram uma forte política
de P&D, dentro de uma visão conhecida como Grande Potência, que
segundo Cavagnari Filho, era baseada na idéia de tornar o País uma
potência econômica mundial. Para se atingir tal meta, era imprescindível
também promover avanços tecnológicos na área militar, buscando a
autonomia no domínio de tecnologias estratégicas.
Começam a se esboçar, então, as grandes metas tecnológicas para
cada uma das Forças Armadas, como descreve Cavagnari: "dentro das
forças navais, o submarino de propulsão nuclear; na força terrestre,
os blindados e os meios de guerra eletrônica; na força aérea, o
vetor de dupla finalidade (veículo lançador de satélites e míssil
balístico)"[2].
As atividades de capacitação tecnológica da área espacial começam
nos anos 80, quando se institui a Missão Espacial Completa Brasileira
(MECB), embora a pesquisa em Ciências Espaciais tivesse surgido
nos primórdios da década de 60. Esta nova fase do programa espacial
ocorre em paralelo com o período da redemocratização do País, agravamento
da crise econômica, com altas taxas de inflação e, no plano internacional,
com o fim da Guerra Fria. O cenário instável iria trazer como dificuldade
ao programa espacial a queda de recursos, desmantelamento de pessoal
especializado em torno das atividades, tendo em vista a redução
vertiginosa dos salários e o embargo imposto pelos países centrais
à importação de itens que pudessem levar ao desenvolvimento de tecnologias
sensíveis de uso dual, por conta da não adesão do Brasil ao Regime
de Controle de Tecnologias de Mísseis (MTCR) e ao TNP.
A posição brasileira tanto em relação ao MTCR, como ao TNP, seria
muito parecida com a da Argentina, país que mantinha a mesma linha
de crítica ao caráter discriminatório dos dois tratados. Apesar
de manterem historicamente uma relação militar tensa, os dois países
do Cone Sul afinam-se quanto às questões nucleares. Em 1968, Brasil
e Argentina assinam o Tratado de Tlatelolco, que deu à América Latina,
e mais tarde ao Caribe, o caráter de regiões livres de armas nucleares.
As relações bilaterais se aprofundam principalmente após o fim do
regime militar nestes dois países e também depois do fim da Guerra
Fria, período em que se observam novos padrões nas relações internacionais,
principalmente no campo econômico, com a intensificação do comércio
internacional e com o advento da globalização. Como conseqüência,
Brasil e Argentina iriam promover uma aproximação estratégica que
resultaria na construção do Mercosul, uma forma de fortalecer a
posição da região frente às superpotências econômicas.
No entanto, a busca pelo prestígio e hegemonia militar na região
do Cone Sul, seria realimentada quando a Argentina encontra apoio
dos Estados Unidos na conquista da condição de país aliado da OTAN.
Tal desequilíbrio nas relações bilaterais do Cone Sul tem como grandes
interessados os Estados Unidos, que fazem pressão pela a implementação
da ALCA. Ao mesmo tempo que a Argentina adquire status militar na
região, promove o desmonte do projeto Condor II, o foguete argentino.
Em 1995, o Brasil adere finalmente ao MTCR, e ao TNP, através da
ratificação do Congresso Nacional, em 1998. Antes da assinatura
de tais documentos, o governo brasileiro, através do Ministério
da Ciência e Tecnologia, iria promover a reorganização das áreas
espacial e nuclear, procurando adequar as atividades de pesquisa
neste setor através de mecanismos que assegurassem maior eficiência,
competitividade, excelência e maior engajamento da universidade
e do setor privado na produção de C&T.
O programa espacial brasileiro
As mudanças nos cenários internacional e nacional refletem-se no
programa espacial brasileiro. Criado em um determinado contexto
político e de relações internacionais, teria que se readaptar às
novas demandas do mundo em transição, entre os anos 80 e 90. As
atividades espaciais têm início no País em 1961, quando é criado
o Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais
(GOCNAE), de onde partem as primeiras diretrizes para as atividades
de pesquisa. No entanto, somente no final dos anos 70, o governo
brasileiro toma a decisão de criar um programa tecnológico completo,
dentro da perspectiva militar, prevendo o desenvolvimento de foguetes
lançadores de satélite, satélites, base de lançamento e infra-estrutura
para um programa de tal envergadura.
Apesar de alguns anos de atraso, em 1993, é lançado o primeiro satélite
da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), o Satélite de Coleta
de Dados 1. A meta era que o SCD-1 fosse lançado pelo Veículo Lançador
de Satélites, o VLS-1, cujo desenvolvimento vinha sofrendo atrasos
devido ao embargo na importação de produtos de tecnologia sensível,
promovido pelos países centrais, sob a liderança dos Estados Unidos.
Em 1994, a Comissão Brasileira de Atividades Espaciais (COBAE),
uma comissão interministerial criada no âmbito do Estado Maior das
Forças Armadas, que gerenciava o programa espacial, é substituída
pela Agência Espacial Brasileira (AEB), um órgão sob o comando civil.
A AEB terá como objetivo consolidar o caráter civil do programa
espacial, além de modernizar o arranjo e as articulações das instituições
e setores da sociedade integrantes do programa. Um dos principais
propósitos da Agência seria, portanto, arrefecer as suspeitas internacionais
em relação ao caráter bélico das atividades espaciais. Por outro
lado, os militares, por uma questão conjuntural e por suas características
institucionais, já não seriam considerados os articuladores ideais
para as novas bases com as quais vinha-se propondo o desenvolvimento
do programa espacial brasileiro, embora ainda estivessem fortemente
presentes nas esferas decisórias das atividades no setor.
Ainda dentro de uma perspectiva de modernização do programa, a AEB
deveria estar incorporando o esforço em direção a uma nova linha
de política de C&T e imprimindo forte influência aos setores envolvidos
nas atividades espaciais. A formulação da Missão Espacial Completa
Brasileira, em 1979, e o acordo com a República Popular da China,
em 1988, para o desenvolvimento de dois satélites de sensoriamento
remoto, estão inseridos dentro uma perspectiva de autonomia na geração
de novas tecnologias, sob uma visão herdada dos militares.
Com as mudanças no cenário internacional e dificuldades impostas
ao desenvolvimento de tecnologias espaciais, o país buscou acertar
o passo em relação às demandas externas, sem ao mesmo tempo abdicar
de seu programa. O mesmo ocorre com o seu programa nuclear. O novo
cenário das relações internacionais, que surge após o fim da Guerra
Fria, exige do governo brasileiro novas estratégias no campo da
política externa e adequação de seu programa espacial. A concepção
de Grande Potência, defendida e levada adiante no período militar,
não se coaduna com a nova ordem internacional.
Sob um nova percepção, o governo vai aderir ao MTCR e ao TNP, com
o objetivo de colocar o Brasil em um novo patamar dentro das relações
internacionais, buscando novas possibilidades de parceria com países
industrialmente mais avançados em áreas estratégicas e resolver
problemas de atraso tecnológico. A adesão ao MTCR é vista, portanto,
como uma possibilidade de manter em seu rumo o programa espacial
e não uma restrição. Esta é a visão do governo, como pode se verificar
nas palavras do Secretário-Geral das Relações Exteriores, Embaixador
Sebastião do Rego Barros.
"Não abrimos mão do nosso programa. Ao contrário, ele se mantém
absolutamente intacto dentro de suas características de programa
pacífico controlado por uma agência civil, a Agência Espacial Brasileira,
e já começa a colher os benefícios da nossa adesão ao MTCR na forma
do interesse desimpedido de grandes empresas em participar e da
possibilidade de ter facilitado o acesso a tecnologias e componentes
que ainda não temos condições de desenvolver internamente."
No entanto, percebem-se algumas divergências no interior do programa
espacial em relação à prioridade dada a determinados projetos desenvolvidos
em cooperação com outros países, nesta nova fase da área espacial.
A crítica está no dispêndio de recursos elevados em projetos de
retorno tecnológico duvidoso e que privilegia a indústria de outros
país. Segundo o presidente da Associação da Indústria Aeronáutica
Brasileira, Walter Bartels, em declarações à imprensa, os gastos
no setor tem direcionado somente um quarto dos recursos à indústria
nacional, ficando a maior fatia do bolo para a indústria estrangeira.
A participação no projeto da Estação Espacial Internacional (ISS)
é um dos itens mais criticados dentro desta perspectiva, mesmo tendo
a Embraer assumido o papel de contratante principal no projeto.
Pressão externa e interesses econômicos
Esta perspectiva de análise sobre as questões em torno do programa
espacial parte da premissa de que as demandas externas assentadas
em questões de segurança internacional operam em sintonia com os
interesses econômicos dos países centrais. É preciso ir além das
ações políticas dos países mais avançados no setor, que estabelecem
políticas e imprimem demandas junto ao Brasil, sob justificativas
relacionadas à segurança mundial. É preciso trazer à luz os diversos
aspectos que se interrelacionam neste processo.
A política de controle de tecnologias de uso dual seria apenas uma
delas. A intenção de coibir a proliferação de armas nucleares e
mísseis ajusta-se muito bem a uma política protecionista dos países
centrais, que se revela mais nas relações políticas internacionais
e no jogo de força econômica entre os países que ocupam posições
estratégicas nos principais fóruns de negociação multilateral. A
lógica é a da defesa dos interesses de suas indústrias. Não se pode
perder de vista que o mercado na área espacial, em seus mais diversos
segmentos - satélites, lançadores, base de lançamento -, movimenta
bilhões de dólares por ano, convergindo fortes interesses por parte
dos países que dominam tecnologias no setor.
Nesta perspectiva, a política comandada e liderada pelos Estados
Unidos atua de forma protecionista. O exercício destes interesses
podem ser percebidos, por exemplo, nas parcerias internacionais
desenvolvidas no setor. A participação do Brasil no projeto da Estação
Espacial Internacional se configura dentro de uma linha totalmente
diferente daquela empregada no período militar, de vertente nacionalista.
Alega-se que nesta parceria, não há uma efetiva e estratégica participação
da indústria nacional e previsão de aprendizado tecnológico significativo.
As prerrogativas estariam atreladas mais ao envolvimento do Brasil
em um grande projeto e à oportunidade de estreitamento de relações
de nível técnico-científico com os países mais avançados na área
espacial. No entanto, não se percebe retorno econômico e tecnológico
imediato. Apesar da pequena participação brasileira no projeto em
relação ao orçamento total, os recursos empregados na ISS são altos
para o padrão nacional e, portanto, concorrentes com os de projetos
que estariam engajados dentro de uma perspectiva de inovação tecnológica.
O texto original do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os Estados
Unidos para o uso do Centro de Lançamento de Alcântara, revela de
forma mais clara a interferência externa no desenvolvimento do veículo
lançador de satélites, ao proibir que os recursos do aluguel da
base fossem aplicados no programa do foguete. No entanto, tais percepções
não devem ser consideradas de forma definitiva, precisariam de maior
investigação.
O governo brasileiro, através do Ministério da Ciência e Tecnologia,
tem reformulado nos últimos anos a política de C&T. Para uma inserção
brasileira adequada na economia globalizada, o governo defende um
modelo de arranjo institucional mais dinâmico e integrado com o
objetivo de ampliar a participação da sociedade neste processo.
Ao mesmo tempo, a inovação tecnológica é considerada estratégica,
principalmente em setores da economia, cujos produtos contêm um
alto valor agregado, como o espacial. Mesmo em uma situação de desequilíbrio
de nível tecnológico, as parcerias com países mais avançados são
consideradas estratégicas, desde que estejam enquadradas em conceitos
de ganhos e aprendizado tecnológico.
Depois de um longo período de desajustes e ajustes ao longo dos
últimos vinte anos, o governo trabalha com um novo projeto para
o setor, embora tenha mantido a estrutura institucional existente
e boa parte dos projetos criados no período militar. Buscar uma
posição mais privilegiada neste setor, com resultados mais sólidos,
só será possível a longo prazo. Para alcançar tais metas, exige-se
um esforço dedicado nas diversas frentes do programa espacial, política
afinada entre os integrantes do programa e recursos bem aplicados.
Paulo Augusto Sobral Escada é jornalista, assessor de imprensa
do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e mestrando
em Ciência Política na Unicamp.
Notas:
1. ARAUJO, Braz, LIBERATTI, Marco Antônio. "Controle
de armas e proliferação nuclear no Pós-Guerra Fria: percepções norte-americanas".
São Paulo, 1996. (Working Papers, 7). Núcleo de Políticas e Estratégias
da Universidade de São Paulo. [voltar]
2. CAVAGNARI FILHO, Geraldo Lesbat. Pesquisa
e Tecnologia Militar. In SCHWARTZMAN, Simon (org.). "Ciência e Tecnologia
no Brasil: A capacitação brasileira para a pesquisa científica e
tecnológica". Rio de Janeiro. Fund. G.V Editora, vol. 3, 1996. [voltar]
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