CInAPCe:
projeto multi-modal para estudo do cérebro
Roberto
Covolan e Fernando Cendes
"If
the only tool you have is a hammer, you
tend to treat everything as if it were a nail."
Abraham Maslow
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A
pesquisa em Neurociência, uma das áreas mais fascinantes
da ciência contemporânea, tem como finalidade última
a compreensão da dinâmica cerebral normal e patológica
e de sua conexão com as funções cognitivas.
O cérebro, além de nos propiciar controle motor, fisiológico
e percepção do mundo ao nosso redor, nos fornece as
bases biológicas para atividades mentais de alto nível
como pensamento racional, sentimentos e emoções, raciocínio
criativo e meios para o estabelecimento das mais variadas formas
de comunicação.
Devido
à alta complexidade das funções cerebrais e,
consequentemente, dos meios necessários à sua investigação,
o progresso no entendimento da dinâmica cerebral deu-se de
forma relativamente lenta até as últimas décadas
do século XX. Entretanto, o quadro da pesquisa científica
nessa área alterou-se profundamente na década passada,
revelando mais a respeito do cérebro do que toda a história
anterior a esse período. Basta mencionar que até há
pouco tempo, a correlação anatomia-função
cerebral em tempo real só era possível por meios invasivos,
ou seja, durante um ato cirúrgico ou através da implantação
de eletrodos intracranianos, quase sempre em pacientes com epilepsia.
Isto, é claro, impossibilitava avaliar a imensa variação
individual normal e nos obrigava a lançar mão de inferências
indiretas. Hoje, graças aos métodos modernos de neuroimagem,
o mapeamento de funções cerebrais pode ser feito de
forma não invasiva em indivíduos normais, o diagnóstico
de lesões milimétricas pode ser determinado com precisão
e o prognóstico de diversas doenças neurológicas
assim como a monitorização de novos medicamentos podem
ser realizados com maior objetividade. A neuroimagem moderna, portanto,
inaugurou uma nova era de neuropatologia, neurofisiologia e neurofarmacologia
in vivo, permitindo estudos longitudinais sem nenhum risco
biológico. No entanto, há ainda muito a avançar.
Do
ponto de vista metodológico, o principal aspecto associado
às descobertas mais recentes em Neurociência, certamente,
tem a ver com o desenvolvimento de novas técnicas e de novos
instrumentos de investigação científica. O
atual cenário da pesquisa nessa área é o de
contínua absorção de inovações
tecnológicas e metodológicas, tornando cada vez mais
robustas e eficazes as técnicas atualmente existentes. A
fim de tornar mais efetivo esse processo, os centros mais avançados
têm estimulado a colaboração científica,
propiciando um ambiente de constante interação entre
pesquisadores que atuam em ciências exatas, tecnológicas
e biomédicas, mas cujas atividades voltam-se, de uma forma
ou de outra, para o estudo dos processos cerebrais.
Um
outro aspecto importante é que o desenvolvimento técnico
e tecnológico voltado para aplicações em Neurociência
possui um caráter multidirecional. Ou seja, a complexidade
inerente à atividade cerebral requer que a pesquisa nessa
área cubra um amplo espectro de atividades, utilizando desde
técnicas recentemente desenvolvidas pela genética
molecular até sofisticados métodos para mapeamento
funcional do cérebro humano. Em função dessa
necessidade de abordagem multidisciplinar, é forçoso
admitir que uma ampla investigação do funcionamento
cerebral normal e patológico é um empreendimento de
grande porte que só poderá ser levado a cabo com sucesso
por grupos articulados de pesquisadores com conhecimentos especializados,
diversos e complementares.
Epilepsia e o Projeto CInAPCe
O Projeto CInAPCe, ou seja, a idéia de formação
de um sistema de Cooperação Interstitucional de Apoio
a Pesquisas sobre o Cérebro, teve a sua origem na necessidade
de abordar um problema biológico extremamente relevante e
complexo como o estudo da dinâmica cerebral, combinando as
habilidades científicas de grupos de pesquisa com experiências
distintas e complementares, a fim de se criar um ambiente científico
em acordo com as tendências atuais mencionadas anteriormente.
Com essa finalidade, pesquisadores da Unicamp, Usp e Unifesp estão
realizando um esforço conjunto no sentido de estabelecer
uma rede de laboratórios e grupos de pesquisa que possa atuar
de forma integrada e cooperativa.
A questão
biológica central escolhida para investigação
foram os mecanismos básicos que levam à epilepsia
e às desordens a ela associadas. Assim, o principal objetivo
do projeto é o desenvolvimento de novos métodos e
técnicas que permitam avançar no entendimento desses
mecanismos, visando aprimorar a diagnose, prevenção
e tratamento de desordens epilépticas. Embora tenha havido
um considerável progresso na pesquisa em epilepsia nos últimos
anos, questões fundamentais relacionadas a essa condição
permanecem ainda por serem esclarecidas.
Um
dos múltiplos aspectos que revelam a complexidade característica
associada à pesquisa em epilepsia refere-se ao fato de que
essa condição não é unicamente definida,
ou seja, ela não pode ser relacionada a uma única
doença ou síndrome. Em geral, o termo epilepsia designa
uma variedade de situações patológicas que
apresentam como aspecto comum a ocorrência de crises recorrentes.
Essa multiplicidade de fatores relacionados à etiologia e
à sintomatologia da epilepsia é ela própria
reveladora da necessidade de se articular especialistas de diferentes
áreas trabalhando em um projeto comum.
Assim,
a idéia de organizar o Projeto CInAPCe foi justamente para
se estabelecer uma rede de colaboração científica,
visando pesquisar e desenvolver novos métodos de estudos
sobre o funcionamento cerebral, em especial aqueles referentes à
epilepsia. Através desses estudos, aspectos da dinâmica
cerebral estariam sendo investigados a partir de diferentes ângulos,
buscando desde a compreensão de mecanismos moleculares intracelulares
até o desenvolvimento de novas técnicas de investigação
do funcionamento do cérebro humano in vivo.
Projeto
CInAPCe: aspectos tecnológicos
Operacionalmente, portanto, o Projeto CInAPCe associa-se a essa
tendência inovadora de desenvolver pesquisas em Neurociência
através de equipes multidisciplinares. Conforme foi dito,
essa estratégia obedece à complexidade inerente aos
problemas a serem investigados que, freqüentemente, exigem
o uso de equipamentos de alta tecnologia.
Atualmente,
é muito comum encontrar a literatura científica dessa
área pontuada de pequenas siglas referentes a determinadas
expressões em inglês como MRI (magnetic resonance
imaging), MRS (magnetic resonance spectroscopy), fMRI
(functional MRI), EEG (electro-encephalography), MEG
(magneto-eletroencephalography), SPECT (single photon
emission computed tomography), PET (positron emission tomography)
e NIR-DOT (near infrared diffuse optical tomography).
Essas
siglas todas correspondem a diferentes modalidades de investigação
acerca das estruturas e/ou funções cerebrais, havendo
equipamentos que permitem congregar várias delas. Um equipamento
de ressonância magnética, por exemplo, pode ser visto
como um sistema multi-modal, altamente sofisticado e versátil,
que permite obter uma variedade de imagens estruturais (MRI), realizar
análises espectroscópicas (MRS) em que é possível
quantificar a presença de alguns metabólitos e neurotransmissores
e, além disso, realizar estudos funcionais (fMRI), detectando
regiões de ativação cerebral. Sistemas de ressonância
magnética especialmente equipados permitem ainda a combinação
de imagem estrutural e análise espectroscópica (MRSI).
Uma outra técnica que vem sendo desenvolvida em ressonância
magnética, DTI (diffusion tensor imaging), permite
investigar a conectividade entre diferentes estruturas cerebrais
detectando a difusão de moléculas de água através
de fibras nervosas.
EEG
e MEG são duas técnicas que possuem alguns aspectos
semelhantes e outros totalmente díspares. Elas permitem registar
efeitos elétricos (EEG) e magnéticos (MEG) diretamente
relacionados à atividade neuronal. Contudo, enquanto o eletroencefalógrafo
é um equipamento bastante conhecido, de ampla utilidade clínica,
tecnologicamente simples e portátil, o magnetoencefalógrafo
é um equipamento de grande porte, altamente sofisticado,
capaz de detectar sinais biomagnéticos da ordem de femto-Tesla
provenientes dos impulsos neuro-elétricos, mas bastante dispendioso,
sendo empregado quase que exclusivamente em pesquisa científica.
PET
e SPECT são técnicas características da medicina
nuclear. O PET, por exemplo, tem como base de funcionamento a detecção
indireta de pósitrons emitidos por substâncias radioativas,
previamente manipuladas por um cíclotron para serem, então,
injetadas na corrente sangüínea. Os pósitrons
emitidos por essas substâncias aniquilam-se ao colidirem com
elétrons do meio. Dessa reação de aniquilação,
resultam dois fótons emitidos back-to-back, que podem
ser capturados por detetores especiais, permitindo localizar e quantificar
a absorção do composto radioativo injetado. Existem
vários tipos de radio-ligantes disponíveis para estudo
do metabolismo cerebral e cinética de neurotransmissores.
Uma das atividades de interesse nesta área é o desenvolvimento
e produção de radio-ligantes específicos.
NIR-DOT
é uma técnica óptica que utiliza-se de lasers
com comprimentos de onda na faixa do infra-vermelho próximo
(650 a 1000 nm) para extrair informações sobre a dinâmica
cerebral a partir de alterações hemodinâmicas
corticais. Ela explora determinadas propriedades ópticas
da hemoglobina, componente do sangue responsável pela sua
cor característica. Ocorre que os espectros de absorção
da oxihemoglobina (HbO) e da desoxihemoglobina (dHb) diferem significativamente
na região do infra-vermelho próximo, enquanto que
tecido biológico absorve muito pouco nessa faixa do espectro
luminoso. Isso permite realizar uma análise espectróscopica
não-invasiva bastante efetiva de ambos, HbO e dHb, determinando
suas concentrações relativas e inferindo desses dados
o nível de atividade neuronal localizada. Essa técnica,
ainda em fase de desenvolvimento, é bastante promissora.
Conta a seu favor o custo relativamente baixo e o fato de ser portátil.
Técnicas
como essas, no estágio em que se encontram, são já
extremamente úteis para estudo do cérebro, algumas
com ampla aplicação clínica. Todas, porém,
encontram-se em franco desenvolvimento. Além disso, existe
um grande esforço científico e tecnológico
no sentido de estabelecer arranjos multi-modais em que essas técnicas
são combinadas para aquisição simultânea
de dados. Tais arranjos consistem em sistemas combinados como fMRI/EEG,
EEG/MEG, fMRI/NIR-DOT, EEG/NIR-DOT. Através desses sistemas
busca-se potencializar virtudes complementares dessas técnicas,
minimizando suas limitações intrínsecas. Avanços
tecnológicos recentemente alcançados nessa área
já possibilitam, por exemplo, a aquisição simultânea
de dados de fMRI/EEG, aliando a boa resolução espacial
do fMRI à excelente resolução temporal do EEG.
Esse sistema em particular tem sido aplicado para o estudo da epilepsia.
Assim,
do ponto de vista tecnológico, este é um dos principais
interesses do Projeto CInAPCe: atuar no desenvolvimento de sistemas
multi-modais.
Este
projeto contempla o desenvolvimento tecnológico de forma
integrada: a aplicação imediata é uma conseqüência
natural e uma necessidade para o desenvolvimento dessas tecnologias.
O estudo de processos normais e patológicos é a melhor
maneira de "testar essas ferramentas". Segue-se que o
conhecimento e o "saber-fazer" coletivo, derivado deste
processo, trará um grande impacto para o atendimento de saúde
local com implicações sociais e econômicas.
Dentre os avanços associados a este projeto estariam a formação
de estudantes e profissionais especializados, difusão de
conhecimento, o desenvolvimento de novas drogas e uma maior interação
de nossas universidades com o setor da indústria de biotecnologia.
Fernando
Cendes, neurologista, é chefe do Laboratório de Neuroimagem
da FCM - Unicamp. Roberto Covolan, físico, é professor
do Instituto de Física Gleb Wataghin - Unicamp.
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