Anciãos transmitem cultura indígena
Na maior parte das sociedades indígenas a transmissão
dos elementos culturais como a mitologia, os rituais e os costumes
é feita oralmente e são os idosos que desempenham
essa função fundamental para a sobrevivência
dos povos.
Há exemplos da importância do idoso para a preservação
das culturas em aldeias da Amazônia e em Mato Grosso do Sul,
onde o cacique Kaiová, Paulito Aquino, que diz ter mais de
100 anos, é a única pessoa a realizar os rituais de
perfuração dos lábios. Entre os Baniwa, do
Alto Rio Negro, os idosos são os responsáveis por
contar as histórias da criação do mundo durante
os rituais de passagem de idade. Há relatos de velhos sábios
com conhecimentos e poderes sobrenaturais que reuniam uma legião
de seguidores. A importância da figura desses sábios
está também na organização e reorganização
social fundamental para a sobrevivência do grupo.
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O
Kaiová cacique Paulito Aquino diz ter mais de 100 anos
de idade. Foto: Guto Pascoal.
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A transmissão oral da cultura acontece em nativas de todos
os continentes. No Brasil, existem cerca de 220 etnias indígenas
e, em grande parte delas, a figura do ancião é valorizada
como um arquivo vivo. Os saberes tradicionais englobam várias
aspectos da vida nas aldeias, desde a medicina, com as curas através
do conhecimentos dos remédios feitos de ervas e dos rituais
xamânicos, até os cantos e as danças para os
dias de festas.
A valorização das tradições passou
a ser mais freqüente, principalmente a partir das organizações
políticas e sociais que aconteceram nas últimas décadas
para exigir o respeito aos direitos indígenas e a demarcação
das terras. Esses processos utilizam os velhos como principais fontes
para o resgate cultural das tradições que foram abandonadas
e perdidas com o contato com as áreas urbanas.
A pesquisadora Nádia Farage, do Departamento de Antropologia
Social da Unicamp, diz que não dá para afirmar que
todos os povos indígenas têm a mesma relação
com os idosos "mas, via de regra, há essa tendência
de maior valorização dos mais velhos que são
os depositários da memória dos povos", afirma
ela, que pesquisa a etnia Wapixana de Roraima. Segundo Farage, lá
os velhos são vistos como uma marca do passado no presente,
como uma dobradiça do tempo. "A realidade para eles
é só o presente e o passado só existe na linguagem
dos velhos", diz Nádia.
O antropólogo Robin Wright, também da Unicamp, diz
que há algumas sociedades em que os velhos não tem
tanta importância. "Isso acontece com os povos nômades,
onde os velhos não conseguem acompanhar e atrapalham. Não
há lugar para eles nessas sociedades. Mas nas sociedades
mais fixas, onde existe a agricultura, os idosos têm um lugar
privilegiado", diz Wright
Profetas Baniwa
Na tradicional cultura Baniwa os idosos são extremamente
importantes, principalmente pelos conhecimentos espirituais desenvolvidos
durante toda a vida. Os xamãs mais poderosos só atingem
os altos níveis de poderes sobrenaturais, como o dom da cura,
da clarividência e das profecias, depois de uma longa vida
de experiências. Os Baniwa vivem na região do Alto
Rio Negro na Amazônia. No Brasil, são 5.100 pessoas,
na Colômbia 7.000 e na Venezuela cerca de 1200.
O antropólogo Robin Wright estuda os Baniwa desde a década
de 70, quando conviveu com o povo. Ele já publicou três
livros sobre a história dos Baniwa, entre eles The history
and religion of the Baniwa peoples of the upper Rio Negro Valley.
Ele explica que os velhos são os responsáveis por
passar a história da criação do mundo, durante
os rituais de iniciação dos meninos entre 10 e 13
anos. Nesse ritual, três ou quatro velhos fazem o benzimento
de uma tigela com pimenta e sal, No final, os condimentos são
servidos com biju aos iniciados que passaram por um período
de reclusão.
Durante o ritual de benzimento os idosos narram os mitos através
de cantos. "Eles recriam o mundo através do pensamento,
lembrando e contando os episódios e os mitos. Os velhos cantam
sobre uma viagem mítica através da Terra, onde os
homens perseguem as mulheres que roubaram a flauta sagrada. Nessa
viagem eles passam por todos os cantos do mundo. São mais
de 100 lugares, onde vão parando e benzendo para que, se
os meninos passarem nesses lugares, não corram perigos. "É
uma história muito antiga que vem sendo transmitida, com
um cenário pré-colombiano", diz Robin Wright.
Nessa viagem, os velhos fazem referências ao relevo e à
geografia de extensas regiões, do rio Orinoco aos Andes.
Só os velhos sabem os nomes dos rios e lagos e a viagem não
é inventada, corresponde à realidade, como um mapa
guardado na memória. Como conhecedores dos mitos, os velhos
tem a função de ensinar para os mais novos a conhecimento
dos antepassados.
Além da transmissão desse conhecimento, os idosos
tem outras importantes funções, como a de liderar
os cantos e as danças na condução de vários
rituais e de fazer brincadeiras com as pessoas. "Como eles
estão fora do sistema social, já cumpriram suas obrigações
sociais, políticas e econômicas, eles têm essa
figura de palhaços, fazendo piadas e tirando sarro das pessoas",
diz Wright.
Mas o papel social mais marcante entre os idosos Baniwa é
o de sábio ou profeta. Desde a metade do século XIX
até hoje, os Baniwa têm seguido sábios, que
são considerados enviados de Deus. São pessoas com
dons de curas milagrosas, capazes de profetizar acontecimentos,
de saber o que ocorre em outras localidades distantes e de conhecer
previamente as intenções das pessoas.
Os sábios são pajés com alto nível
de poder, que dominam os conhecimentos e são conhecidos como
"Mestres do Povo Jaguar" ou "Jaguares do Paricá".
Os pajés fazem uso do paricá que tem efeitos psicoativos.
O paricá é um pó para ser inalado, feito de
sementes da árvore Piptadenia. "Mas somente os pajés
mais velhos conseguem misturar o paricá com o caapí,
que tem tanto poder", diz o antropólogo Robin Wright.
O caapí é uma bebida conhecida como ayhauasca ou Santo
Daime e que também tem efeitos psicoativos.
Atualmente não existe mais nenhum profeta, mas o povo ainda
reverencia o túmulo dos grandes sábios. O último
profeta morreu na década de 70. A existência dos pajés
ficou comprometida com a chegada de missionários evangélicos
e católicos nas décadas de 50 e 60. Hoje cerca de
70% da população é convertida ao protestantismo
e 30% ao catolicismo.
Segundo Wright, alguns rituais Baniwa ainda acontecem entre os
católicos, como os de iniciação, mas entre
os protestantes os rituais xamânicos eram escondidos. "Antes
os protestantes eram fundamentalistas e diziam que os pajés
eram coisa do diabo, mas hoje alguns jovens procuram os pajés
para se curar e tentam resgatar a cultura, procurando saber com
os mais velhos como era antigamente. E os poucos velhos que conhecem
as histórias são fontes importantes para este resgate".
O tembetá Kaiová
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Cacique
Paulito Aquino em frente a Casa das Rezas. Foto: Guto Pascoal
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Um exemplo vivo dessa função de guardião
das tradições é o cacique Paulito de Aquino,
da etnia Kaiová, que habitantem o Mato Grosso do Sul. São
várias pequenas aldeias espalhadas nas cidades do sul do
estado. Com esse fracionamento da população e a mistura
com outras etnias, como parte da política de ocupação
das terras iniciada na primeira metade do século XX, muito
dos costumes e da cultura tradicional acabou se perdendo. Os conflitos
pela terra e a falta de perspectivas das novas gerações
acabaram gerando uma grande onda de suicídios (de 1986 a
1997 foram registrados mais de 240 suicídios entre os Guarani
e Kaiová no Mato Grosso do Sul).
Na aldeia Panambizinho o cacique Paulito Aquino centraliza aspectos
da cultura entre os 200 moradores que dividem a reserva de 60 hectares,
próxima à cidade de Dourados. O cacique é a
única pessoa entre a população das etnias Guarani
e Kaiová, com cerca de 25 mil pessoas, a fazer os rituais
de perfuração dos lábios dos meninos, quando
atingem os 8 anos de idade. O adorno tembetá é um
bastão feito de resina de árvore e tem um significado
religioso. Representa a santificação do indivíduo,
como um batismo.
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João
Aquino, filho do cacique Paulito, mostra tembetás e
as maracas. Foto: Guto Pascoal
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Aquino conta que, segundo a mitologia de seu povo, a figura do
Nhandeara, considerado o Rei dos Deuses, desceu na Terra há
1000 anos e os mandou seguir as regras da religião, o que
inclui o uso do tembetá e as rezas com as maracas. O cacique
é também um dos últimos representantes dos
antigos rezadores, que conhecem os segredos das ervas medicinais
e fazem a comunicação com Deus através da cruz
e das maracas, para a cura de pessoas e para pedir chuva durante
a estiagem. "O Mato Grosso é abençoado porque
tem muito índio que sabe rezar pedindo calma para as tempestades",
diz o cacique.
Todo esse conhecimento da tradição Kaiová
chegou a ser ameaçado na aldeia Panambizinho. Os rituais
do fura-lábios e vários outros costumes foram abandonados
por algum tempo com a chegada de missões evangélicas,
que condenam o tembetá e o culto às divindades da
mitologia Kaiová. Os líderes de Panambizinho chegaram
a seguir as orientações dos pastores, mas abandonaram
logo em seguida e resgataram as próprias tradições.
O cacique Aquino conta que os pastores das igrejas chegaram trazendo
comida e mandaram queimar todos os objetos sagrados, como as maracas
e o altar que fica no interior da Casa das Rezas. "No começo
a gente achava bom as coisas que eles falavam, mas diziam que a
gente não podia fazer as festas nem dançar. Então
recomeçamos tudo de novo, porque não podemos perder
nossa cultura", diz ele.
Até hoje as crianças não podem usar o tembetá
na escola evangélica que fica dentro da aldeia, mas as pessoas
da família do cacique fazem questão de manter a tradição.
O filho do cacique, João Aquino, é o sucessor de Paulito
Aquino nos rituais de perfuração. Ele diz que a perda
da tradição causa miséria e por isso pretende
passar para as novas gerações a prática do
tembetá e as histórias de seu povo.
O Daporewau Xavante
Um outro exemplo da resistência da cultura, respeito às
tradições e aos ensinamentos dos mais velhos acontece
entre os Xavante, que vivem no estado do Mato Grosso. A cultura
desse povo é marcada pela coletividade e a falta de individualismo.
A principal marca de identidade Xavante é o uso de pedaços
de madeira atravessados nos lóbulos das orelhas dos homens.
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O
Xavante Dutsã mostra como os padrinhos fazem a perfuração
da orelha. Foto: Guto Pascoal
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Esse adorno é conhecido na língua xavante como Daporewau
(a pronúncia é dapo-revaú). Hoje a população
é de cerca de 12 mil pessoas que vivem em 150 aldeias e todos
os Xavante do sexo masculino usam o adorno, porque os meninos só
podem começar a namorar e casar depois de passar pelo ritual.
As preparações para o ritual duram três meses.
A perfuração dos lóbulos dos meninos no ritual
de passagem para a idade adulta é feita por um padrinho,
geralmente uma pessoa mais velha com experiência nessa prática.
O Xavante Dutsã Tserenhíõmo, 19 anos, explica
as técnicas e os cuidados usados na perfuração,
segundo a tradição. "O padrinho atravessa a orelha
com o osso da canela de onça parda e depois coloca o osso
na boca e engole o sangue, que não pode cair na terra senão
pode trazer infecções", diz Dutsã.
O cacique Tseretsu, 62 anos, é o líder da aldeia
Abelhinha e é avô de Dutsã. Segundo o costume,
como homem mais velho ele é o responsável por ensinar
os cantos, as danças, o artesanato e as técnicas da
construção das casas para os mais jovens, além
de contar a mitologia do povo.
A tatuagem Kadiwéu
No caso dos Kadiwéu, habitantes de uma vasta área
em Porto Murtinho, na fronteira com o Paraguai, a principal habilidade
é a arte da pintura corporal e da cerâmica que encantou
vários exploradores e pesquisadores, como o italiano Guido
Boggiani, no final do século XIX e o etnólogo Claude
Lévi-Strauss na década de 30. Darcy Ribeiro, que viveu
entre os Kadiwéu na década de 40, classificava a variedade
de estilos dos desenhos abstratos e os padrões de pintura
de rosto e de corpo dos Kadiwéu como "a mais elaborada
manifestação artística dos índios americanos".
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A
índia Kadiwéu Ramona Soares desenhando com jenipapo,
na cidade de Bodoquena-MS. Foto: Guto Pascoal.
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Os desenhos são feitos até hoje pelas mulheres, mas
as grandes artistas são as mulheres mais velhas, que passaram
dos 60 anos. A Kadiwéu Ramona Soares, 62 anos, vive na cidade
de Bodoquena, próxima à reserva, e conserva os conhecimentos
da refinada arte dos padrões dos desenhos tradicionais. Ela
conhece também o simbolismo de cada desenho, o tipo de padrão
para cada família e diferentes motivos para serem desenhados
em cada parte do corpo.
Ramona diz que as grandes desenhistas são as índias
mais antigas. "As mais novas não praticam tanto como
no meu tempo", afirma ela. Por isso, a qualidade dos desenhos
está decaindo e muito da técnica está se perdendo.
Hoje, os Kadiwéu se pintam somente nos dias de festa, mas
a arte das cerâmicas é realizada para a venda fora
da aldeia.
(GP)
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