Reportagens






 

Símbolos de Luta e Identidade no MST

Christine de Alencar Chaves

Certamente poucos hoje se lembram, mas a ocupação da Granja Macali, que posteriormente daria lugar ao Acampamento da Encruzilhada Natalino, uma das primeiras manifestações da revivescência da luta pela terra que originaria o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, o MST, deu-se no dia 7 de setembro de 1979. Mas provavelmente são muitos os que se recordam da Marcha Nacional, a mais memorável das ações dos sem-terra, que durante dois meses percorreram as estradas do país para chegar a Brasília no dia 17 de abril de 1997, data do massacre de Eldorado dos Carajás um ano antes, no Pará. Embora com diferente envergadura e celebridade, esses dois eventos distantes no tempo denotam uma linha de continuidade no modo de ação política que passou a caracterizar o MST. A constituição de eventos coletivos concertados e com forte caráter expressivo, conforme um calendário simbólico e pragmático, é o modo notório de ação política dessa organização de trabalhadores expropriados da terra. O Dia da Pátria e a data do massacre de trabalhadores por força policial - tornada Dia Intenacional de Luta Camponesa, pela Via Campesina - são marcos simbólicos, assim como as manifestações em praça pública no dia do trabalhador rural ou a peregrinação de centenas de homens e mulheres em marcha pelo território nacional rumo à capital do país. Em datas e locais expressamente selecionados, através de ações coletivas definidas por um repertório limitado, valores sociais são evocados pelos sem-terra, constituindo modos de expressão e comunicação com a sociedade mais abrangente, de legitimação de suas reivindicações e de embate político com seu oponente precípuo, o Estado.

Na Encruzilhada Natalino o centro do acampamento era demarcado por uma cruz, em torno da qual os agricultores se reuniam em assembléias e celebrações. Essa cruz de três metros de altura tornou-se símbolo da "luta" e da identidade dos agricultores, por eles portada tanto em procissões como em atos públicos. Também uma cruz foi posta à dianteira na longa caminhada para Brasília, mas nos atos públicos e nas assembléias da Marcha Nacional, a bandeira do MST era o emblema da "luta" e da identidade dos sem-terra. Os símbolos materiais mudaram, como o sentido da própria "luta": da conquista da terra à da reforma agrária e de um "modelo alternativo de desenvolvimento", destes à demanda pelos direitos de cidadania e de justiça social. Antes que uma substituição, o processo de constituição do MST como um Movimento e como uma Organização de envergadura nacional deu-se concomitantemente à agregação de novos significados à mais que centenária história da luta pela terra no Brasil.

A partir de sua fundação na década de oitenta, através da criação continuada de eventos coletivos de ação direta referidos a múltiplos planos de significação, incluindo aspectos semânticos e pragmáticos, o MST recolocou na agenda política brasileira o tema da reforma agrária. Nesse processo, forjou uma nova identidade social, a de sem-terra, conferindo-lhe existência, estatuto político e um sentido de dignidade. Através da consolidação dessa identidade particular, paradoxalmente, ele passou a enfeixar retoricamente a ampla gama de marginalizados sociais, em nome dos quais articula, no discurso e na prática, o questionamento do modelo de modernização implantado no Brasil. Extrapolando sua base social rural, pôs em discussão os limites efetivos da cidadania no país, ao mesmo tempo que logrou catalizar a ação social para ampliá-los.

As principais formas de atividade política empreendidas pelo MST realizam-se através de pressão sobre o aparato de poder mediante mobilização coletiva e pública, em nome de interesses coletivos, reivindicando direitos sociais. Ocupando fazendas e órgãos públicos, acampando à beira de estradas e em praças públicas, realizando marchas, vigílias, atos ecumênicos e também saques de alimentos, os sem-terra afirmam-se como sujeitos sociais, sujeitos de direitos - embora direitos negados. É através mesmo dessas ações coletivas, tidas por muitos como transgressoras da ordem legal, que a identidade de sem-terra é estabelecida e o MST se constitui como sujeito coletivo.

Forçar os limites consentidos de ação política e o consenso em torno do ordenamento jurídico-político da sociedade, buscando ao mesmo tempo permanecer no âmbito de interlocução com os poderes constituídos supõe, por outro lado, a permanente construção da legitimidade e o enfrentamento eficaz dos processos de deslegitimação capitaneados pelas forças sociais opontentes ao propósito da reforma agrária. O embate renova-se em todas as ações coletivas empreendidas pelo MST. A cada vez, recoloca-se a necessidade de conciliação dos sentidos aparentemente contraditórios da pressão política pela ação direta e de busca da negociação a partir de uma posição de força conquistada por aqueles que são socialmente mais fracos. A contingência dessa dinâmica impõe-se de maneira tão mais premente ao MST em face da exigência de legitimação tanto externa quanto interna, tanto para a sociedade quanto para os próprios sem-terra, que integram as fileiras da Organização e se dispõem a enfrentar os riscos da "luta". Desse modo, as ações do MST ancoram-se em uma cosmologia política, em que a pressão sobre os limites da ordem legal sustenta-se na crença e na construção da legitimidade da luta pela terra. Nesse plano conjugam-se argumentos oriundos de um discurso jurídico - ancorado em interpretação que enfatiza a função social da propriedade, definida pela Constituição brasileira - e de uma fundamentação religiosa - ou seja, o direito à vida e à dignidade de pessoa humana, assim como o endosso da interpretação eclesial da "destinação universal dos bens" e do princípio bíblico de que "a terra é para todos".

A cosmologia a que os sem-terra do MST se reportam não é indiferente nem estranha àquela aclamada nos ideais consagrados da nação: é pela ativação mesma desses ideais que a luta pela legitimidade de suas ações se implementa. Para tanto, as ações e discursos veiculados nos eventos promovidos pelo MST acionam símbolos e evocam ideais comungados mais amplamente. Múltiplos elementos conjugam-se, desde os ideais modernos de igualdade, direito e cidadania até os sentidos religiosos da terra, da solidariedade e da defesa da vida, passando pela crença política na importância da disciplina e da organização e pelos valores morais de lealdade, firmeza e coragem. Sentimentos e crenças são acionados pelo grupo reunido em torno de símbolos comuns e na ação conjunta em busca dos mesmos fins. No MST elabora-se conscientemente a construção da identidade de sem-terra e a reafirmação dos ideais e desejos condensados na "luta". Para além dos símbolos do MST - o timbre, a bandeira, o hino - as próprias ações são revestidas daquelas idéias e crenças políticas, morais e religiosas. Não é incidental que essa elaboração múltipla e multifacetada receba no MST o nome de mística. Como a cruz na Encruzilhada Natalino e na Marcha Nacional, como a bandeira que se lhe sobrepôs, utilizando-se de todos os outros meios hábeis - visuais, auditivos, sensoriais - a mística no MST não apenas evoca e congrega, ela comunica e faz acontecer. As ações e eventos - bem como seus resultados - do MST em todo o território brasileiro o comprovam.

Este artigo é resultado de pesquisa de campo realizada junto aos sem-terra do MST para a elaboração da tese de doutorado, defendida na Universidade de Brasília e publicada com o título A Marcha Nacional dos Sem-Terra. Um estudo sobre a fabricação do social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.

Christine de Alencar Chaves é professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora Núcleo de Antropologia da Política (NuAP).

 
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Atualizado em 10/06/2003
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