Reportagens






 
Reforma Agrária: mercado versus desapropriação ou mercado e desapropriação?

Antônio Márcio Buainain
e José Maria da Silveira

Poucas questões suscitam tanta polêmica e paixão como a discussão da reforma agrária. Ainda hoje se carrega a herança do debate do final dos anos 50 e início dos anos 60, quando uma reforma agrária abrangente colocava-se como necessária para a resolução de impasses que travavam o desenvolvimento: conflitos no campo que ameaçavam "incendiar" o país; a relativa escassez de alimentos pressionava os preços e a inflação; contribuindo para alimentar as reivindicações dos trabalhadores urbanos e dificultar o processo de industrialização em curso (já naquela época dependente de capitais internacionais sensíveis aos riscos institucionais); estreiteza do mercado doméstico e; fragilidade da base exportadora, apoiada no setor primário exportador. A eliminação do poder do latifúndio inimigo das reformas modernizantes seria a principal forma de superação de um modelo esgotado, que não mais respondia às necessidades do país.

A história foi outra, como sabemos. No contexto do governo militar deu-se um amplo processo de modernização direcionado pelo Estado, que preservou a grande propriedade e promoveu a transformação de parte do latifúndio improdutivo no competitivo e dinâmico agronegócio brasileiro.

O festejado agronegócio é hoje responsável pela geração de parcela substancial do superávit comercial com o resto do mundo, pela geração de milhões de empregos no campo e na cidade e pelo crescimento de pequenas e médias cidades em quase todas as regiões do país, alterando os fluxos migratórios, antes direcionados às grandes e superlotadas regiões metropolitanas.

Todavia, ainda que o desempenho econômico do agronegócio brasileiro seja notável, não foi capaz de abafar a luta pela reforma agrária, que cresceu após a redemocratização e, em particular, a partir dos anos 90. Essas tensões estão fundadas na violenta transformação, em um curto período de tempo, da sociedade brasileira.

A pressão pela reforma agrária aumenta e ganha espaço em função da crise da agricultura familiar; da mecanização de sistemas produtivos como o da cana, algodão e laranja, tradicionais absorvedores de mão-de-obra rural; da reestruturação da indústria e elevação do desemprego nas regiões urbanas; do relativo fechamento das fronteiras agrícolas que funcionavam como válvula de escape para tensões sociais em outras áreas; e pela falta de oportunidade e perspectiva para milhões de famílias desalojadas de seu meio de vida no mundo rural. Essas tensões sociais culminaram nas tragédias de Eldorado dos Carajás, no Pará, e Corumbiara, em Rondônia, evidenciado a todos que os conflitos agrários tendem a aumentar de forma "assustadora".

O marco institucional para a realização da reforma agrária é dado pelo Estatuto da Terra, de 1964, e pela Constituição de 1988, que prevêem o assentamento de famílias sem terras em propriedades improdutivas desapropriadas pela União. Assim, os proprietários devem ser indenizados pelo valor de mercado das propriedades, recebendo em títulos da dívida agrária (TDA) o valor da terra nua e em dinheiro o valor das benfeitorias. Mais recentemente, foi lançado o Programa de Crédito Fundiário, que concede crédito em condições especiais para associações formadas por pequenos agricultores e trabalhadores sem terra adquirirem terras.

O lançamento dessa iniciativa, em dezembro de 1997, com o nome de Programa Piloto Cédula da Terra, inicialmente circunscrito a 5 estados do Nordeste, provocou acaloradas polêmicas no meio acadêmico e nos movimentos sociais que transcenderam as fronteiras do país: organizações internacionais chegaram a solicitar ao Banco Mundial, co-financiador do Programa, um Painel de Inspeção, que reúne um comitê independente para avaliar as ações do próprio banco1.

O debate revestiu-se de fortes tintas políticas. O Programa era visto como parte de uma estratégia do governo neoliberal para "privatizar" a reforma agrária e beneficiar o latifundiário, que no lugar de ser "punido" com a desapropriação seria "premiado" com a venda de sua propriedade; ou ainda como medida destinada a desmobilizar os movimentos sociais com a promessa de adquirir terra no mercado e retirar recursos da verdadeira reforma agrária, feita com base na desapropriação das terras improdutivas. Não cabe aqui entrar nesta polêmica, de resto um tanto superada pelo próprio apoio que a Contag vem dando ao Programa de Crédito Fundiário, mas apresentar, de forma sucinta, alguns pontos para reflexão sobre o assunto.

A desconcentração da propriedade da terra é um elemento importante de uma estratégia de desenvolvimento sustentável do Brasil
Não é preciso gastar tinta para sustentar que a grande propriedade é um fator de concentração de renda e riqueza, e que em muitas regiões, em particular nas zonas pecuaristas, produz um esvaziamento do meio rural e inibe o desenvolvimento local. O fortalecimento e criação de espaços para a propriedade familiar, ao lado da propriedade patronal de tamanho médio, são certamente fatores de dinamização das economias regionais, pois geram emprego e renda que é apropriada e gasta no local, e contribuem para o desenvolvimento dos mercados de bens e serviços em geral.

A desapropriação e assentamento de famílias pobres é apenas um dos instrumentos para alcançar esse objetivo estratégico. Sempre achamos que é preciso alargar a capacidade de o Estado intervir com eficácia na questão agrária, o que exige não apenas mudanças institucionais que flexibilizem a possibilidade de arrecadação de terras via desapropriação como a utilização de novos instrumentos visando facilitar o acesso dos pobres à terra, a reestruturar as pequenas propriedades familiares em processo de minifundização por herança ou venda e a promover, no médio prazo, a desconcentração da estrutura fundiária do país. Neste sentido, a defesa da reforma agrária via desapropriação não deveria excluir o apoio a outras medidas, como a implantação de crédito fundiário, adoção de uma política de tributação (Imposto Territorial Rural) que incentivasse a geração de riqueza, punisse a improdutividade e promovesse a dinamização do mercado de terras, ou mesmo a facilitação do acesso por meio de contratos de uso da terra vantajosos para ambos os lados.

A desapropriação como um mecanismo de aquisição de terras para a reforma agrária
Segundo a Constituição Federal de 1988, apenas terras improdutivas e que não cumprem a função social podem ser desapropriadas para fins de reforma agrária, sendo expressamente vedada a desapropriação de propriedades produtivas. No passado, as propriedades improdutivas eram em grande medida associadas a latifundiários absenteístas, ?figura social tão negativa quanto a do usurário?, que mantinham rentáveis produções extensivas e uma estratégia de enriquecimento patrimonial baseadas em relações de trabalho pré-capitalistas e apropriação de novas terras nas fronteiras em expansão.

O latifúndio improdutivo continua existindo, mas hoje já não é mais possível associar, de forma direta, a terra improdutiva a um proprietário que não leva em conta a dimensão social da propriedade. Pelo menos em muitos casos, a "improdutividade" reflete fatores de natureza econômica, ambiental, deficiências de infra-estrutura, políticas equivocadas ou ausência de políticas; no limite, reflete inclusive a "improdutividade" agronômica, terras não aptas para uma exploração sustentável. O resultado é que propriedades improdutivas desapropriadas transformam-se em verdadeiro presente de grego para os assentados: terras de baixíssima qualidade, localizadas em regiões deprimidas economicamente e longe dos mercados, sem vias de acesso ou qualquer outra infra-estrutura, em que pese os cuidados dos funcionários do Incra de separar o joio do trigo.

A verdade é que vem se reduzindo o estoque de boas terras improdutivas, em particular nas regiões mais dinâmicas do país, por uma razão muito simples: os agentes, inclusive os proprietários de terras, são racionais, e por isso mesmo não mantêm improdutivas terras que têm valor e que podem ser economicamente exploradas no contexto atual. Limitar a reforma agrária às terras improdutivas é de fato restringir o próprio alcance e a qualidade da reforma. Como a Constituição veda a desapropriação de terras produtivas, a alternativa é criar mecanismos para a aquisição de propriedades pela via legítima do mercado.

Mudanças legais introduzidas no período recente, como a que autoriza o Incra a adquirir propriedades, e que vem sendo utilizada apenas em situações de conflito, deveriam, portanto, ser ampliadas. Claro que a compra de terras pelo poder público para fins de reforma agrária colocaria outros problemas, como o da restrição fiscal e o da possibilidade de desvios de conduta, mas ambos poderiam ser minimizados por meio de leilões de aquisição, que poderiam inclusive utilizar os hoje cobiçados Títulos da Dívida Agrária ou da Dívida Pública em Geral.

Compra de terras por associações de produtores
Os pobres no Brasil vêm sendo tratados como incapazes que precisam da tutela do Estado para tomar decisões às vezes simples, como a de que alimento comprar, ou qual a prioridade da família para a semana: o remédio ou a cesta básica, o uniforme das crianças ou a passagem de ônibus para ir trabalhar. Isto correspondia à prática política clientelista, de domínio dos currais eleitorais nas cidades e no campo. No lugar de empoderar o trabalhador para tomar sua decisão sobre como organizar seu cotidiano, a opção tem sido a tutela. No lugar de recursos em moeda corrente que poderiam ser utilizados segundo a preferência e necessidade de cada família, vales, ticketes e até mesmo pagamento em espécie: vale refeição, cesta básica, vale transporte etc...

O Programa de Crédito Fundiário rompe com esta visão de que o pobre, por ser pobre, seja um incompetente e incapaz, e trata de empoderar os próprios interessados para escolher, negociar e adquirir suas terras. Sendo assim, o faz de maneira madura, pois reconhece a assimetria de poder entre as comunidades pobres e os proprietários. Para compensar essa assimetria cria mecanismos de assessoramento durante as negociações e condiciona o fechamento do negócio à aprovação de um conselho representativo, procedimento adotado inclusive pelas grandes corporações, onde negócios de monta devem ser aprovados pelos conselhos diretivos.

Quais as vantagens desse procedimento? Várias! Vejamos alguns: (i) os compradores, habitantes locais, têm mais informações que os órgãos públicos, e evitarão comprar terras ruins, que não permitem sua exploração sustentável e geração de renda para a família e pagamento do empréstimo; (ii) como devem pagar pelas terras, não farão conluio com os proprietários; (iii) o negócio é mais ágil, evita toda a burocracia e conflito envolvido no processo de desapropriação.

Competição entre desapropriação e aquisição
Os dois instrumentos não são excludentes. Em primeiro lugar, o crédito fundiário não pode ser utilizado para adquirir propriedades consideradas improdutivas. Isto, por si só, já é suficiente para eliminar a principal contestação de que o crédito veio para desativar a desapropriação. Além disso, o Programa utiliza recursos de empréstimos internacionais que não estariam disponíveis para outros fins. Tais empréstimos exigem contrapartida financeira da União e dos estados que participam do Programa. Na prática a maioria dos estados não têm programas de assentamento, e a adesão ao Crédito Fundiário significa, nesses casos, recursos adicionais para a reforma agrária. Já a contrapartida da União pode ser feita às custas da redução do orçamento destinado aos assentamentos do Incra, mas em meio a tantos cortes orçamentários, contingenciamentos e restrições fiscais não é possível atribuir a redução de recursos do Incra aos novos instrumentos de política fundiária.

Títulos versus dinheiro.
Foi-se a época em que os títulos da dívida pública eram papéis sem valor, emitidos pelo Tesouro sem qualquer controle. Hoje a emissão de títulos está sujeitas às mesmas restrições da política fiscal e monetária que o dinheiro, e ainda que seja difícil para um leigo compreender, título vale dinheiro. Aliás, não fosse assim não se entenderia por que os grandes bancos, fundos de pensão, empresas e especuladores internacionais adquirem os títulos da dívida pública brasileira. Só o fazem por uma razão: é um bom negócio. Melhor ainda: é um ótimo negócio! Ao contrário do que muitos sustentam, em muitos casos a desapropriação não é uma punição, mas sim um prêmio, pois ninguém, além do Incra, compraria as terras desapropriadas pelo justo valor de mercado. Entre privados, muitas dessas terras seriam negociadas pelo "preço de mercado", muito abaixo do justo valor que a lei manda corretamente pagar pela desapropriação.

Crédito versus desapropriação
Não se trata, portanto, de escolher um ou outro instrumento, mas de aprimorar e utilizar os dois. Ambos são úteis e necessários e provavelmente atingirão, dentro da população pobre, famílias com perfil diferente. O crédito fundiário, instrumento de balcão, poderia ser mais intensamente utilizado em zonas com menor presença de grandes fazendas, inclusive como instrumento de reestruturação dos minifúndios - um problema grave em geral negligenciado pela política fundiária -, e seria mais procurado por grupos mais organizados para a produção, com fortes raízes locais, com algum patrimônio prévio etc. A desapropriação, instrumento de fomento e indução que deveria ser usado em articulação a outras medidas, seria mais apropriado para montar grandes projetos, que exigem mais investimentos em infra-estrutura e promoção de desenvolvimento, dirigido à parte mais pobre e vulnerável do público-meta. Contrapor um ao outro só contribui para desfocar o debate das questões centrais que precisam ser equacionadas para viabilizar a reforma agrária no país.

Notas:
1.A comissão visitou o Brasil duas vezes e não encontrou qualquer fundamento nas alegações que se fazia contra o Programa.

Antônio Márcio Buainain e José Maria da Silveira são professores do Instituto de Economia da Unicamp.

 
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Atualizado em 10/06/2003
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