Terra,
Violência e Outra Democracia: O Caso do EZLN
Guilherme
Gitahy de Figueiredo
Vários
pesquisadores brasileiros têm se interessado pela comparação
entre o Movimento dos Sem Terra (MST) e o célebre Exército
Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), guerrilha
dos indígenas maias que se levantou no estado mexicano de
Chiapas em janeiro de 1994. E não é para menos: são
dois dos movimentos sociais mais fortes e famosos na América
Latina desde os anos 90, e que colocaram os movimentos do campo
no primeiro plano do cenário político. Este artigo
procura ressaltar algumas peculiaridades do EZLN para o público
brasileiro familiarizado com o MST, levando em conta o contexto
histórico mexicano. Aborda o objetivo principal da guerrilha
de lutar pela democracia, os motivos para ainda não ter deixado
de ser uma luta armada, as contingências que levaram à
criação de uma estratégia centrada na participação
e na comunicação, e encerra sugerindo algumas lições
que o movimento brasileiro poderia tirar da experiência zapatista.
Se
o principal objetivo do MST é a reforma agrária, contribuindo
assim para a democratização do Brasil, a principal
das demandas do EZLN é a democracia, pois afirma em seus
comunicados que somente através da democracia podem ser solucionados
os demais problemas sociais, inclusive o da concentração
das terras. Essa diferença remete ao caráter repressor
do Estado mexicano e à origem revolucionária do movimento:
o EZLN nasceu como órgão instalado em Chiapas das
Forças de Libertação Nacional (FLN), movimento
armado que pretendeu organizar milícias em todo o país
e preparar-se para o momento em que houvessem condições
maduras para a revolução. O único órgão
das FLN que prosperou, no entanto, foi o EZLN. Em Chiapas, estado
distante do centro do país e até os anos 80 uma das
suas últimas fronteiras agrícolas, a diocese de San
Cristóbal de Las Casas, ligada à teologia da libertação,
substituía algumas das funções do Estado no
atendimento das carências sociais e contribuiu para a formação,
a partir dos anos 70, de fortes movimentos independentes das estruturas
corporativas estatais. Estes movimentos guardam várias semelhanças
com o MST, pois realizam até hoje ocupações
de terra, de prédios públicos, marchas, lutam por
terras, crédito e pela comercialização dos
seus produtos etc. Mas viram os seus horizontes se estreitarem na
medida em que sofriam a dura repressão por parte do Estado
e de grupos armados ligados aos grandes proprietários e,
por outro lado, assistiam ao desmantelamento do órgãos
estatais e das políticas públicas voltadas à
pequena agricultura depois de 1982 e ao fim da reforma agrária
consagrado na reforma do artigo 27 da Constituição,
em 1992.
Se
a repressão e a falta de perspectivas levou à adesão
de muitos ao EZLN no final dos anos 80 e começo dos 90, ao
mesmo tempo caía o socialismo real, se encerravam as guerras
civis na Nicarágua e em El Salvador, e emergia a luta civil
pela democracia no México. A massificação da
guerrilha a levou a absorver as práticas e valores políticos
habituais das comunidades e dos movimentos independentes, e a disputa
por espaços de influência com esses movimentos e com
a Igreja, já influenciados pela nova fase de luta democrática,
contribuiu também para a criação de mecanismos
e valores democráticos que levavam a uma certa subordinação
do EZLN às comunidades indígenas. Por outro lado,
o ceticismo de parte dos dirigentes das FLN em começar um
levante não impediu o EZLN de realizar uma consulta interna
que decidiu pelo início da luta armada. O subcomandante Marcos,
principal dirigente da guerrilha a partir de 1994, chegou a essa
posição ao liderar a consulta e as reformas na estrutura
formal do EZLN que efetivaram a subordinação já
existente da guerrilha às comunidades. Com o levante de 1994,
que desfez de uma vez a subordinação formal às
FLN, o discurso socialista e a estratégia revolucionária
clássica foram abandonadas, e a demanda por democracia se
tornou a mais destacada. Este passo foi importante para o EZLN começar
a se concentrar na comunicação política e ensaiar
as primeiras alianças com os movimentos sociais urbanos emergentes:
o levante encontrou uma forte porém ambígua acolhida
por parte dos movimentos urbanos, especialmente as ONGs, que apoiaram
as suas demandas mas condenaram os meios violentos. O êxito
parcial na comunicação e nas convocatórias
de grandes encontros e consultas nacionais e internacionais serviu
para consolidar as transformações que levaram o EZLN
à estratégia de evitar a violência e se concentrar
na comunicação e na criação de mecanismos
de participação política para promover a democracia
política e social no México e o combate ao neoliberalismo
no mundo. Manteve-se a idéia de que a transformação
política é necessária para que as outras mudanças
sejam possíveis, mas trocou-se o modelo clássico da
revolução por uma estratégia em que os meios
coincidem com os fins: trata-se de promover a democracia e alcançar
outras demandas sociais através da organização
a partir das bases, valorizando a participação direta
e novas formas de democracia representativa, lutando por autonomia
local e unindo as lutas locais em programas políticos mais
amplos através das redes de comunicação e solidariedade
horizontais.
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Soldado
do Exército Zapatista de Libertação Nacional
faz a guarda do acampamento em La Realida. Foto: Vidal Cavalcante/BRimagens
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Por
que o EZLN ainda é um movimento armado? A guerrilha nunca
foi capaz de formar uma capacidade bélica que desafiasse
o Estado mexicano apenas com a violência. Primeiramente porque
Cuba e os outros movimentos armados na América Latina não
apoiavam a luta armada mexicana com armas ou treinamento: o México
era considerado uma retaguarda estratégica para os movimentos
de outros países e mantinha boas relações com
a ilha de Fidel. E depois porque o levante de 1994 não foi
capaz de abalar as instituições e dividir o país
a ponto de viabilizar uma guerra civil. O levante, porém,
foi suficientemente impressionante para que o EZLN desse uma visibilidade
enorme aos problemas sociais e ao autoritarismo existente no país.
Se a capacidade militar do EZLN mostrou, com o tempo, não
ser tão grande, a propaganda armada foi eficaz. Entre 1994
e 1996, a guerrilha soube aproveitar o período das negociações
de paz para manter uma presença constante na mídia
e lançar iniciativas políticas com o objetivo de unir
os movimentos sociais independentes na elaboração
de um novo projeto de nação. A postura do EZLN era
de não se apresentar como vanguarda, de incentivar a recusa
da luta pelo poder fosse através das armas ou através
das urnas, e promover a união horizontal de movimentos com
ideologias e estratégias diversas na luta pela democracia
a partir da participação de base e forçando
"os que mandam a mandar obedecendo": lema inspirado na tradição
indígena segundo a qual as autoridades das comunidades servem
a elas.
Paradoxalmente,
as mesmas armas que garantiram ao EZLN o espetáculo que o
colocou no primeiro plano da vida política também
permitiram a militarização cada vez maior do país.
Isolada atrás do cerco militar, a guerrilha não tinha
como dirigir o movimento civil mais amplo que se formava inspirada
no novo zapatismo. E por fim, nenhuma das demandas negociadas com
o governo foram atendidas, o que obstruiu qualquer plano que tivesse
para se desarmar e terminar sua conversão à luta civil.
Em 1996, o EZLN tinha assinado com o governo os "Acordos de San
Andrés", que versavam sobre o direito à autonomia
política, econômica, cultural e jurídica para
as comunidades indígenas. Esses acordos correspondiam apenas
à primeira fase de um cronograma de negociação,
mas após a interrupção dos diálogos
acabaram por se tornar a principal demanda da guerrilha. E mesmo
após o começo da alternância de poder no México
com a eleição do opositor Vicente Fox pelo direitista
Partido da Ação Nacional, que para muitos simbolizou
a virada democrática do país, os "Acordos de San Andrés"
continuaram não sendo cumpridos e a repressão continuou.
Embora
o EZLN e os movimentos sociais que compõem o chamado zapatismo
civil formado ao seu redor não tenham encontrado um progresso
significativo no atendimento de suas principais demandas, as circunstâncias
peculiares desta luta deram lugar a usos muito inovadores das modernas
tecnologias de comunicação, com implicações
importantes para a forma como esses movimentos se organizam e concebem
as suas relações. Isolado militarmente nas montanhas
de Chiapas, e descartando a busca do poder do Estado, o EZLN passou
a visar a conquista da opinião pública e a mobilização
para as suas idéias e demandas através de um discurso
cada vez mais poético e simbólico, combinado com ações
capazes de substituir as próprias armas na capacidade criar
espetáculos. Em relação à grande mídia
foi capaz de criar uma tática de inserção ativa,
buscando criar boas relações com alguns veículos
através de um trato personalizado e facilitando a eles o
acesso à informação, criando obstáculos
ao trabalho de outras empresas de comunicação menos
simpáticas ao movimento, e desenvolvendo uma grande capacidade
para criar assuntos e difundir informações. E como
os principais aliados urbanos do EZLN foram as ONGs, com destaque
para as ONGs de direitos humanos, as redes de solidariedade com
as comunidades zapatistas hipertrofiaram as práticas de militância
ligadas à observação dos direitos humanos:
coleta, organização, disponibilização
e difusão de informação sobretudo através
da internet para mobilizar protestos internacionais contra os abusos.
As redes de solidariedade aliaram a denúncia da repressão
em Chiapas com a difusão de versões românticas
sobre a luta zapatista, e o processo de articulação
de lutas locais em redes horizontais de comunicação
e solidariedade foi se espalhando pelo mundo inspirado na nova linguagem
política zapatista. Uma linguagem poética, simbólica,
aberta, e por isso mesmo assimilável pelos mais variados
grupos e capaz de absorver outros significados em diferentes contextos
mundo afora. Uma conseqüência direta da formação
dessas redes foi a formação do movimento anticapitalista,
com sua capacidade de gerar grandes ações internacionais
sem uma direção e através de uma comunicação
descentralizada, e outra indireta foi o Fórum Social Mundial,
ou ao menos sua tentativa parcial de incluir e articular horizontalmente
a diversidade de ONGs e novos movimentos sociais.
Sem
dúvida há similitudes entre o EZLN e o MST: ambos
cresceram e se destacaram ao longo dos anos 90, quando o neoliberalismo
e a crise do socialismo real enfraqueceram o sindicalismo, ao mesmo
tempo em que se agravava a situação no campo. No México
o golpe foi sentido de maneira ainda mais forte, pois houve a criação
do Tratado de Livre Comércio da América do Norte que
entrou em vigor no mesmo dia escolhido para o levante em 1994, e
em 1992 foi enterrada a reforma agrária garantida pelo artigo
27 da Constituição de 1917. Além disso a crise
do sindicalismo mexicano está relacionada à crise
do Estado corporativo, ou seja, sequer havia um sindicalismo independente
importante ou um partido de massas como o PT brasileiro que pudessem
ajudar a abrir vias institucionais para o atendimento de demandas
do campo. No México, onde por décadas vigorou a combinação
entre o atendimento setorial de demandas e controle político
através do sistema corporativo, era também mais difícil
encontrar vias institucionais que não se confundissem com
as formas tradicionais de cooptação. Daí mais
uma dificuldade para o surgimento de um movimento que, a exemplo
do MST, pudesse crescer conquistando espaços institucionais
e influência nas políticas públicas sem perder
a sua autonomia. A prática deste está centrada na
ocupação de terras para forçar o Estado a realizar
a reforma agrária, e os êxitos parciais dessa estratégia
estimulam novas adesões e o fortalecimento do movimento.
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Nativas
de La Realidade convivem com os guerrilheiros do EZLN e as visitas
do subcomandante Marcos. Foto: Vidal Cavalcante/BRimagens |
Os indígenas do EZLN encontraram uma realidade mais adversa.
A necessidade de criar um movimento nacional para combater o autoritarismo,
o cerco de dezenas de milhares de militares e a ameaça permanente
de extermínio pelo exército e pelos grupos paramilitares
contribuíram para colocar no centro da prática zapatista
a formação de alianças, redes de comunicação
e solidariedade. Se não fosse a maturidade que surgiu no
zapatismo tanto armado como civil com relação à
utilização e invenção de formas de participação
e comunicação política, o EZLN teria que permanecer
na luta armada e certamente a repressão seria muito maior.
Inversamente, a ameaça de extermínio foi e é
um estímulo importante para o zapatismo se tornar um exemplo
ainda inigualável de estratégia de participação
e comunicação por parte de um grande movimento social.
São milhares de pessoas observando, registrando, organizando,
interpretando, traduzindo e disponibilizando informações
sobre Chiapas pelos mais diversos meios, interpondo um eficiente
obstáculo à repressão. Contingências
levaram à formação de uma estratégia
inovadora que se tornou vital para o zapatismo, contingências
diferentes das vividas pelo MST. Mas este poderia buscar naquele
alguma inspiração. Poderia procurar nas práticas
zapatistas inúmeros exemplos de como galgar posições
mesmo entre as grandes empresas de comunicação, como
tecer relações democráticas e aumentar a sua
legitimidade através da valorização radical
da participação, e de como envolver novos militantes
que unam suas lutas locais com o trabalho de produzir e difundir
informações sobre a luta pela terra no Brasil.
Guilherme
Gitahy de Figueiredo é Mestre em Ciência Política
pela Unicamp
Veja
mais fotos sobre o EZLN no site BRimagens
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