Doença de
chagas: paradoxos e ilações
Rachel Lewinsohn
Embora os surtos
da doença de Chagas recentemente ocorridos em Santa Catarina e
no Amapá fossem de curta duração, o seu tratamento
pelas autoridades e pela mídia, e o seu efeito sobre a
população dão vazão para
ilações importantes.
O surto em Santa
Catarina parece ter começado quando, em meados de fevereiro,
viajantes na BR-101 pararam em um quiosque perto de Navegantes, a 113
km de Florianópolis, e ingeriram caldo de cana contaminado com Trypanosoma
cruzi. No início de março apareceram as primeiras
notícias assustadoras do acometimento de dezenas de pessoas com
doença febril, diagnosticada como doença de Chagas aguda;
houve seis fatalidades. Os pronunciamentos pretensamente
tranqüilizadores das autoridades sanitárias pouco
esclareceram. “Há um clima de pavor sem necessidade."
"Confirmada a doença, existe remédio, tem tratamento,
não tem problema nenhum." "A situação está
precisamente esclarecida, o que dá uma segurança maior
para saber quais pessoas estariam expostas à
contaminação" (Luis A.Silva, diretor da
Vigilância Epidemiológica–SC). E, dentro de poucos
dias, o silêncio. (Deve ser lembrado, porém, que,
não fosse a coincidência desses noticiários com a
doença e morte do Papa, que ofuscou todos os demais eventos do
período, possivelmente o surto teria continuado por mais tempo a
atrair a atenção da mídia e do público.)
Mais
notáveis ainda foram os comentários oficiais sobre o
surto no Amapá, que antecedeu o de Santa Catarina. A Nota
Técnica de 4/4/2005 da Secretaria de Vigilância em
Saúde do Ministério da Saúde (SVS) informa que "em
3l de março recebeu relatório do Instituto Evandro
Chagas/PA sobre a investigação de um surto de
doença febril aguda, na localidade denominada Igarapé da
Fortaleza/AP, ocorrido de 4 a 19 de dezembro de 2004..."
Exames preliminares sugeriram doença de Chagas. "A coleta de
sangue das pessoas contaminadas foi feita em fevereiro, mas o resultado
dos exames estava sob sigilo da Secretaria de Saúde. Apesar do
número elevado de pessoas contaminadas, a Divisão de
Epidemiologia descarta a ocorrência de surto da doença no
Estado... A epidemia não existe porque não foi encontrado
o barbeiro. 'Por isso, afirmamos que esses casos são acidentais.
A exemplo do que ocorre em Santa Catarina, no Amapá a
contaminação não está acontecendo de forma
clássica, ou seja, com o paciente sendo picado pelo mosquito"
(sic).(Clóvis O.Miranda, chefe da Divisão
Epidemiológica da Secretaria Estadual de Saúde)
(Itálicos R.L.) Note-se que só foi mencionado o
número de pessoas acometidas (26); nada foi dito sobre a
morbidade ou mortalidade do surto.
Longe de
tranqüilizar a população, essas
afirmações, que beiram o grotesco, só serviram
para aumentar a insegurança geral. Nem foi outro o efeito da
declaração do Ministro da Saúde, doutor Humberto
Costa, em Petrolina-PE a 8 de abril. Esses pronunciamentos e suas
implicações são analisados no meu artigo "Do caldo
de cana ao suco de açaí", publicado pelo Jornal da Unicamp em 11 de abril
(parte I) e 9 de maio (parte II).[1, 2] Nele, critico a
desinformação oferecida ao público, exemplificada
pelos trechos citados, e questiono por que os resultados dos exames no
Amapá foram mantidos sob sigilo da Secretaria de Saúde
durante semanas. "Isso equivale a esconder da população o
perigo iminente de contrair a doença de Chagas, ao passo que
toda a região amazônica deveria ter sido alertada, em
termos que não deixassem dúvida, do risco de ingerir
polpa ou suco cru de açaí, mormente porque já era
conhecida a transmissão por via oral, e pela
contaminação da mesma fruta! Essa simples
precaução de evitar a polpa e o suco crus teria sido mais
eficaz do que qualquer outra medida ..."
O artigo atendeu
ao pedido de várias pessoas, preocupadas como eu com a quase
total ignorância do público (e, diga-se de passagem, de
muitos médicos) quanto aos fatos básicos da
doença. Objetivando contrabalançar o "espúrio
senso de segurança [criado] pelas afirmações das
autoridades sanitárias...", enfatiza a necessidade e
urgência de "esclarecimentos sobre (1) causas, transmissão
e manifestações da doença, e sua
prevenção; (2) as medidas de controle; (3) o significado
e os limites do controle."
Tentei
preencher esses desideratos na medida do possível, mas o
espaço reservado ao artigo só permitiu a abordagem de uma
fração dos problemas. Ficaram em aberto questões
cruciais: a inexistência de dados epidemiológicos sobre a
doença, que impede um conhecimento mesmo aproximativo de suas
dimensões; a assistência médica e social ao
chagásico crônico sintomático, e a
discriminação que sofre no mercado de trabalho; o
desmantelamento das estruturas de vigilância e controle locais e
intermunicipais e dos elos com as comunidades, e muitos outros
problemas; além daqueles mais especificamente
médico-científicos que ultrapassam o âmbito da
divulgação geral. E uma dúvida recorrente: por que
a doença de Chagas, numericamente muito mais importante do que a
aids, só atrai a atenção da mídia e do
público na iminência de um desastre que ameaça
alastrar-se além das classes normalmente expostas ao
contágio, e recai no esquecimento assim que o perigo parece ter
passado?
Em parte, esse
estado de coisas pode ser visto como seqüela dos acontecimentos
após a Segunda Guerra Mundial, quando as descobertas das
sulfonamidas e sobretudo dos antibióticos pareciam prenunciar o
fim de todas as doenças contagiosas. A euforia durou pouco,
porém, e a explosão do conhecimento científico nas
décadas seguintes transformou o mundo, e trouxe mudanças
radicais na visão da sociedade sobre os problemas da
saúde e doença. Encontram-se motivos de sobra,
socioeconômicos e políticos, que explicam o
subseqüente desinteresse das autoridades e da indústria
farmacêutica pelas doenças endêmicas no terceiro
mundo.[3]
De outra parte,
o vaivém do pêndulo entre expectativa e
decepção, ambas exageradas, é um dos paradoxos que
caracterizam a nossa sociedade e o nosso tempo, tal como o descompasso
entre o potencial virtualmente ilimitado da ciência e tecnologia
e a sua aplicação em benefício da humanidade.[4]
Assim, o homem explora os mistérios do espaço
cósmico, enquanto grande parte da humanidade vive ao relento;
"1100 milhões de pessoas carecem de acesso a água
potável;... 2400 milhões ... não têm acesso
a serviços de saneamento adequados;... e morrem diariamente
cerca de 6000 crianças devido a doenças ligadas à
água insalubre e a... saneamento e higiene deficientes..."(OMS)
Embora as técnicas modernas multipliquem a capacidade de
produção agrícola, todo ano a fome e
subnutrição fazem milhões de vítimas. A
ciência e tecnologia parecem empenhadas em uma corrida
desenfreada para encontrar novos apetrechos, novos botões a
apertar, para aumentar o conforto de uma fração
ínfima da humanidade, inacessível à imensa
maioria, ao mesmo tempo que multiplicam de forma inconcebível o
poder destrutivo dos armamentos.
"O
descompasso entre a pesquisa e a ação" [5] é
apenas um dos paradoxos na medicina, de conseqüências
trágicas para incontáveis milhões. A medicina
preventiva, instrumento por excelência da Saúde
Pública cuja importância Oswaldo Cruz e Carlos Chagas
não se cansavam de ressaltar, é uma disciplina que atrai
poucos candidatos à especialização. A
glória (merecida) é da cirurgia, capaz de substituir
órgãos deficientes, prolongando a vida de pacientes ainda
há pouco sem qualquer esperança de tratamento.
Também merecem destaque os avanços espetaculares na
pesquisa médica, que capacitam o clínico a aliviar, se
não curar, moléstias antigamente consideradas
insuscetíveis de qualquer tratamento. Mas a vasta maioria dos
males que acometem o homem não requer tratamentos sofisticados,
e sim cuidados básicos e uma orientação dirigida
à prevenção. Todavia, populações
inteiras não têm acesso a assistência médica
de qualquer espécie, nem se falando de água limpa e
saneamento básico, problema não médico,
senão socioeconômico e político (v.acima). O
que falta sobretudo, porém, é informação
adequada, isto é, educação sanitária.
Ao invés disso somos bombardeados pela mídia com
pretensos dados médicos, a maioria (com raras e honrosas
exceções) mascarando um marketing importuno de
procedimentos ou produtos descabidos, inócuos ou francamente
nocivos. Inclui-se nesta categoria a propaganda de medicamentos de toda
espécie ("Ao persistirem os sintomas..."). Dados não
são informação; informação
não é conhecimento; conhecimento não é
sabedoria. Tais montes de dados desconexos não equivalem
minimamente a informação, que dirá conhecimento.
Mas essa glorificação do inútil, além de
induzir à automedicação, ocupa um espaço
importante: o da verdadeira educação sanitária.
Além disso contribui para o descompasso entre o conhecimento
médico e sua aplicação.
Descompasso
particularmente significativo na doença de Chagas, cujo
descobridor foi um dos maiores cientistas do Brasil e do mundo.
Porém, apesar de suas contribuições monumentais
à ciência médica universal, ele é
virtualmente esquecido no seu país. Eis outro paradoxo, cuja
causa mais importante é, sem dúvida, a campanha
difamatória deslanchada contra ele pelos seus colegas na
Academia Nacional de Medicina e na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Liderados por Afrânio Peixoto e seus partidários,
movidos por ciúme e ambições pessoais,
profissionais e políticas, infernizaram a vida do genial
cientista durante anos. Em dezembro de 1922 a polêmica chegou ao
plenário da Academia, onde os debates se prolongaram durante um
ano, terminando com a derrota da cabala; entretanto, os seus efeitos
deletérios perduram até hoje. Em seu livro Meu pai, Carlos Chagas Filho
analisa a campanha e suas conseqüências. A
situação política e socioeconômica em que se
desenrolou a contenda é descrita com vivacidade no livro de
Benchimol e Teixeira, Cobras,
lagartos & outros bichos, que ressalta a rivalidade entre os
Institutos Oswaldo Cruz e Butantan, e os problemas homéricos
criados aos cientistas e institutos pelas rixas entre oligarquias e
governos, verdadeiras "guerras de foice" por verbas e poder.
O resultado mais nocivo
da campanha foi sem dúvida o seu efeito persistente sobre o ensino
e pesquisa da doença de Chagas no Brasil. "Tanto Emmanuel Dias como
Amílcar Vianna Martins sempre mantiveram que ... o oblívio se
originou e se ampliou em um forte esquema de desconhecimento programado
que as escolas de medicina passaram a adotar quanto à doença
e seu descobridor, provavelmente em função de: (a) a influência
direta de Peixoto e sua turma; e (b) o obscurantismo universitário
e a falta de uma massa crítica com nível e coragem para ajuizar
os fatos..." (J.C.Pinto Dias, comunicação pessoal) Embora a
doença de Chagas passasse a constar dos mais importantes tratados de
medicina nas línguas inglesa, alemã e francesa, e fosse ensinada
nas mais importantes escolas de medicina do mundo, por incrível que
pareça, no nosso país ela foi suprimida durante anos a fio,
tanto nos livros quanto no ensino em sala de aula ou hospital, e, conseqüência
inevitável, a sua pesquisa foi virtualmente paralisada.[3] O quadro
só se reverteu muitos anos depois da morte de Chagas.
Finalmente, é provável que a campanha contra Carlos
Chagas tenha lhe custado o Prêmio Nobel.[3]
[1]
www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ jornalPDF/ju283pag02.pdf
[2] www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ jornalPDF/ju287pag02.pdf
[3] R.Lewinsohn, Três Epidemias: Lições do
Passado.Campinas,Editora da Unicamp, 2003.
[4] R.Lewinsohn, Medical Theories, Science, and the practice of
medicine. Soc.Sci.Med. 10, 1260-1271. 1998
[5] J.C.P.Dias, Doença de Chagas e a questão da
tecnologia. Bol. Of. Sanit.Panam.,.99/3, 244-257. 1985.
Formada pela
Faculdade Fluminense de Medicina, a autora fez
pós-graduação nas universidades de Londres e
Cambridge, Inglaterra. Pesquisou, lecionou e ministrou cursos de
História da Medicina na FCM da Unicamp. Autora de livro
(v.ref.3), aposentada, continua ativa como professora colaboradora
voluntária da Unicamp.