Genômica
e proteômica são apostas para vacinas
Apesar
de o conhecimento científico sobre algumas doenças tropicais
ser quase secular, as pesquisas para se chegar a vacinas contra elas ainda
não deram resultados positivos. Enquanto os estudos continuam, o combate
a essas doenças envolve a tentativa de interrupção do
ciclo de transmissão. Por um lado, é feito o controle dos hospedeiros
– como os caramujos de água doce, que abrigam o verme causador
da esquitossomose; ou os mamíferos silvestres, onde se hospedam os
parasitas que provocam a leishmaniose. Por outro, faz-se a eliminação
dos insetos transmissores – como o barbeiro, que expele nas fezes o
protozoário causador da doença de Chagas; ou mosquito Aedes
aegypti, que transmite o vírus da dengue. Com os recentes avanços
da biotecnologia, contudo, os pesquisadores também passaram a apostar
no estudo do genoma dos causadores dessas doenças e das proteínas
associadas a eles para tentar chegar a vacinas como a que já existe
contra a febre amarela.
A Rede Genoma
de Minas Gerais, da qual participam sete instituições mineiras
de pesquisa, fez o seqüenciamento do genoma de todas as fases de desenvolvimento
do Schitosoma mansoni, parasita responsável pela esquitossomose.
Esse foi o ponto de partida para um estudo realizado pela doutoranda Fernanda
Caldas Cardoso, no Laboratório de Imunologia de Doenças Infecciosas
(Lidi) da UFMG, sobre a viabilidade de uma nova forma de diagnóstico
e da produção de uma vacina contra a doença. De acordo
com o coordenador do Lidi e orientador da pesquisa, Sérgio Costa Oliveira,
o desenvolvimento de vacina contra a esquitossomose sempre foi uma tarefa
difícil devido, principalmente, ao ciclo de vida do parasita, que é
muito complexo e expressa, em seus diversos estágios, diferentes antígenos
(substâncias que provocam a reação do sistema imune).
Oliveira acrescenta que, para escapar a essa reação, o parasita
produz moléculas que suprimem a resposta do organismo que hospeda o
Schitosoma.
Fernanda
Cardoso selecionou proteínas de membranas localizadas na superfície
do parasita, das quais destacou uma, denominada Sm-29, presente em algumas
fases do desenvolvimento do verme. O reconhecimento dessa proteína
pelo sistema imune e a produção de anticorpos contra ela podem
acelerar o diagnóstico da doença. Atualmente, a esquitossomose
só é descoberta em sua fase mais avançada, pela presença
de ovos do parasita nas fezes do doente. “Nosso objetivo principal é
fazer o diagnóstico de pacientes na fase inicial da xistose [nome popular
da esquitossomose], antes da postura dos ovos pelos parasitas. Desta forma,
podemos tratar os pacientes antes do agravamento da doença e também
evitamos o desenvolvimento da fase mais patológica da esquitossomose,
a fase crônica”, explica a pesquisadora da UFMG. No Brasil, o
número estimado de pessoas com risco de contrair a doença é
entre seis e sete milhões, dos quais um milhão vive em Minas
Gerais que, ao lado do Nordeste, é considerada a principal região
endêmica da esquitossomose, ou seja, onde a presença da doença
é constante.
De
acordo com Cardoso, ao contrário de muitas proteínas cuja produção
em laboratório é inviável, a Sm-29 pôde ser sintetizada
em larga escala, para ser testada tanto no diagnóstico da esquitossomose
quanto na imunização de camundongos à doença.
Os resultados dos testes de imunização, que poderão contribuir
para se chegar a uma vacina para o ser humano, serão divulgados no
segundo semestre deste ano. “Para produzir uma vacina que gere uma proteção
satisfatória nos indivíduos vacinados será necessário
um coquetel com algumas proteínas, e a Sm-29 é uma proteína
com grande potencial para compor esse coquetel”, afirma Cardoso. Segundo
ela, outras proteínas também estão sendo testadas no
Lidi com a mesma finalidade. “Para uma vacina viável, além
de uma boa proteção dos indivíduos vacinados, ela também
tem que ser composta de proteínas estáveis e ter custo baixo
para produção em grande escala”, ressalta.
Além
do estudo das proteínas e do genoma dos causadores de doenças
tropicais, alguns pesquisadores também investigam as relações
entre eles e os insetos que os transmitem para o ser humano. Para tentar chegar
a uma vacina contra a leishmaniose, o brasileiro José Ribeiro conduziu,
no Instituto
Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, uma
pesquisa sobre o Phlebotomus patasi, conhecido como mosca da areia,
um dos gêneros de insetos da família dos flebotomíneos,
responsáveis pela transmissão do protozoário causador
da doença na região do Oriente Médio. Os resultados desse
estudo, publicados no Journal of Experimental Medicine, mostram que
uma proteína presente na saliva de insetos que não tinham a
Leishmania apresentou resultados positivos na imunização
de cobaias picadas posteriormente por moscas portadoras do parasita. A exemplo
da investigação relacionada à esquitossomose, os pesquisadores
acreditam que essa proteína também poderá fazer parte
de um coquetel para a imunização de seres humanos contra a leishmaniose.
As
pesquisas para se chegar a vacinas contra essas doenças seguem paralelas
aos estudos sobre as condições favoráveis à sua
disseminação. Na Amazônia, a transmissão da leishmaniose
é tida como uma das conseqüências do desmatamento e ocupação
para atividades agropecuárias em antigas áreas florestais. Além
dos hospedeiros tradicionais – os mamíferos típicos de
floresta, como bicho preguiça, tamanduá e tatu –, vem
crescendo o número de registros da doença em animais domésticos
como cães, que vivem em assentamentos rurais da região. “O
aumento desses casos, muito bem caracterizados em áreas desmatadas
do Brasil, tornam a transmissão doméstica um grande meio disseminador
de Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA) na América Latina”,
diz Antonia Maria Ramos Franco, do Departamento de Ciências da Saúde
do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
A
LTA é um dos tipos de leishmaniose, e pode causar lesões e úlceras
na mucosa do nariz, da boca e da garganta. Outra variação da
doença é a Leishmaniose Visceral (LV), que provoca febre prolongada,
anemia e problemas respiratórios e, em casos mais graves, leva ao sangramento
da boca e do intestino. “Os cães são os principais reservatórios
de LV nas Américas, e seu papel como reservatório de LTA vem
sendo discutido e investigado nos últimos anos”, completa a pesquisadora
do Inpa. A recomendação dos órgãos responsáveis
pelo controle da doença é que os cães com sintomas como
queda de pelos, vômitos e fezes com sangue – que caracterizam
a leishmaniose nesses animais – sejam sacrificados, pois além
do risco de transmitir a doença para os seres humanos, não existe
tratamento eficaz para os cães infectados. De acordo com a Organização
Mundial de Saúde, em todo o mundo, estima-se que 350 milhões
de pessoas vivam em regiões endêmicas e corram o risco de contrair
uma das variedades da leishmaniose.
Mesmo
com esses estudos sobre a disseminação de doenças tropicais,
o controle dos hospedeiros e a eliminação dos transmissores
ainda tem tido um sucesso limitado. Após uma campanha de erradicação
da dengue na década de 50, através da eliminação
do mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus que causa
a doença, ela reapareceu em 1967 no Pará, em 1976 em Salvador
e, em 1977, no Rio de Janeiro. Em 1986, já havia epidemia de dengue
em vários estados brasileiros e, em 1994, a Fundação
Nacional de Saúde registrou mais de 50 mil casos da doença em
20 unidades da federação. Nos cinco primeiros meses de 2005,
cidades como Campinas, no interior de São Paulo, já registraram
mais casos de dengue do que em todo o ano de 2004, deixando as autoridades
sanitárias alertas para uma possível epidemia da doença
no próximo verão, quando a estação de chuvas aumenta
a possibilidade de proliferação do mosquito.
Já
a principal espécie do inseto responsável pela propagação
da doença de Chagas, o Triatoma infestans, popularmente conhecido
como barbeiro, está atualmente eliminado no estado de São Paulo,
segundo a Superintendência de Controle de Endemias (Sucen).
Entretanto, esse inseto foi descoberto em moagens de cana do Sul após
as recentes notícias alarmantes sobre um surto da doença no
litoral de Santa Catarina, e sua presença ainda persiste em diversas
regiões do país. A fase mais grave da doença de Chagas
(a crônica), que de acordo como Ministério da Saúde atinge
cerca 30% dos infectados pelo parasita Trypanossoma crusi transmitido
pelo barbeiro, pode provocar a dilatação do coração
e a perda de bombeamento do sangue. “A doença crônica não
é reversível com os recursos atuais, pois se trata de seqüelas
nos órgãos afetados”, diz o infectologista Roberto Martinez,
da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.
Mas biotecnologia,
que traz perspectivas na busca de vacinas, e segundo Martinez, pode levar
à eliminação do Trypanossoma cruzi em pessoas
já infectadas, também é vista como uma alternativa no
tratamento de distúrbios cardíacos de pacientes com a doença
de Chagas, transmitida pelas fezes que o barbeiro deposita ao picar uma pessoa
para sugar seu sangue. Uma rede envolvendo quinze centros de pesquisas de
oito estados brasileiros irá estudar o uso de células-tronco
no tratamento de doentes chagásicos, como parte do Estudo Multicêntrico
de Terapia
Celular em Cardiologia, que abrange um total de 350 especialistas de 50
instituições e tem um financiamento governamental de R$ 13 milhões.
A previsão é de que os resultados desses estudos sejam conhecidos
em aproximadamente três anos.
(RC)