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Abordagens sociais, culturais e comportamentais em doenças endêmicas

Rita Barradas Barata

A saúde e a doença, bem como outros agravos à saúde como os acidentes e violências são socialmente produzidos e historicamente determinados. A organização social da vida material e não material dos homens determina o perfil epidemiológico de cada classe social na sociedade. Os modos sociais de produção da vida, com seu conjunto de circunstâncias favoráveis ou nocivas à saúde, acabam por delimitar os problemas de saúde que mais frequentemente estarão associados a cada grupo social.[1]

As doenças, ao contrário do que pensa o senso comum, não são eventos inesperados e resultantes da fatalidade. Elas são produzidas e distribuídas entre os grupos sociais no próprio processo de reprodução social, isto é, no processo histórico de formação e transformação da sociedade.[2]

Cada período histórico e cada formação social concreta apresenta padrão de ocorrência de doenças e de mortalidade que reflete as condições de vida das populações e que corresponde ao perfil médio dos padrões existentes nos diversos grupos sociais.

Assim, na compreensão da distribuição das doenças em populações e no estudo dos determinantes do processo saúde-doença no âmbito coletivo as abordagens sociais, culturais e comportamentais são duplamente importantes: por um lado, permitem compreender os diversos aspectos do processo em si e, por outro lado, têm implicações concretas sobre a eficácia dos procedimentos de controle e sobre a efetividade dos programas e políticas públicas de enfrentamento do problema.

A saúde coletiva é um campo de saberes e práticas sobre o processo saúde-doença na dimensão coletiva no qual se articulam diversas disciplinas científicas. Grosso modo, para a compreensão e explicação da distribuição e da determinação do processo saúde-doença contribuem a epidemiologia e as ciências sociais em saúde e, para a investigação das práticas de intervenção e controle contribuem as ciências sociais em saúde e as ciências da gestão.

O conceito de endemia teestm dois sentidos distintos em epidemiologia. Hipócrates, na Antiguidade, usava o termo para distinguir um grupo de doenças que apresentavam distribuição espacial peculiar, ou seja, que ocorriam apenas em determinados lugares, estando relacionadas com as condições ambientais aí existentes. No século XIX, sob o impacto do desenvolvimento da estatística e sua incorporação pela epidemiologia para o estudo da distribuição das doenças, passou-se a utilizar a denominação de ocorrência endêmica para significar a ocorrência dentro dos valores esperados, em contraposição à ocorrência epidêmica que é aquela que ultrapassa os valores esperados.

Durante o período de expansão colonial dos países europeus nos continentes asiático, africano e americano as doenças prevalentes nessas áreas, conhecidas ou não no continente europeu, passaram a ser chamadas de doenças tropicais e, posteriormente de doenças endêmicas acentuando a concepção naturalizada sobre as mesmas. O termo tropical faz pensar que essas doenças seriam exclusivas dos trópicos e portanto estariam fortemente relacionadas com as características ambientais prevalentes nessas áreas.

A designação doença endêmica era reservada àquelas doenças que, em sua cadeia de transmissão exigiam a existência de um vetor biológico, no qual ocorria parte do ciclo de vida do agente etiológico, habitualmente um protozoário como o agente da malária ou da doença de Chagas, ou um vírus como o vírus da febre amarela ou da dengue. Essa designação se justificava pois a doença só poderia ocorrer nas áreas onde existissem os vetores correspondentes. Posteriormente, passaram a ser incluídas entre as doenças endêmicas, doenças que não têm essas características sendo transmitidas direta ou indiretamente entre homens infectados e suscetíveis, como a lepra e as hepatites virais.

As abordagens sociais da produção dessas doenças permitiram demonstrar o papel apenas relativo do ambiente físico. O trabalho clássico de Luiz Jacintho da Silva sobre as origens da doença de Chagas e seu processo de difusão no estado de São Paulo demonstra que as condições ambientais eram propícias para a existência dessa endemia em todas as regiões, entretanto, a doença só instalou-se nas áreas de fazendas de café com trabalho assalariado e a disseminação da doença acompanhou a fronteira agrícola de expansão da cultura cafeeira sendo sua presença posterior e manutenção em áreas pobres, de minifúndios, apenas o resíduo desse movimento de expansão.[3]

Do ponto de vista da epidemiologia há duas correntes teóricas nas abordagens sociais do processo saúde-doença: a teoria da multicausalidade e a teoria da determinação social. A teoria da multicausalidade caracteriza-se pela inclusão dos aspectos relativos à organização social e à cultura entre os “fatores” que contribuem para a produção da doença, tratando-os como hierarquicaamente equivalentes a outros fatores que compõem o conjunto das “causas” da doença.[4] Como exemplo dessa abordagem podemos citar estudo conduzido por Martelli e colaboradores para a identificação de fatores de risco de infecção chagásica entre doadores de sangue. Os autores encontraram riscos altos, acima de 2,3 vezes, de infecção entre indivíduos com maior tempo de residência em área rural e menor renda e grau de instrução, demonstrando a associação entre infecção e condições de vida. [5]

A teoria da determinação social diferencia-se da anterior pela importância que confere à organização social na produção do processo saúde-doença, conforme assinalado no início deste artigo. Esta abordagem está presente em vários trabalhos na área das endemias podendo ser exemplificada pelos estudos de Chieffi & Waldman sobre esquistossomose, o estudo de Silva sobre a doença de Chagas anteriormente citado e, o de Barata sobre malária. [3,6,7] Nessas investigações procura-se compreender o surgimento e a disseminação das doenças como processos estritamente vinculados à organização social.

As abordagens culturais são típicas das ciências sociais em saúde, em sua vertente antropológica. As várias correntes teóricas e metodológicas existentes coincidem em destacar a importância dos significados simbólicos existentes no “nível da organização microsocial”. A importância maior dessa abordagem está justamente na possibilidade de compreensão do universo cultural das pessoas suscetíveis ou afetadas para poder instrumentalizar as intervenções de controle tornando-as mais efetivas. Os trabalhos desenvolvidos por Constança Barbosa, em localidades endêmicas para a esquistossomose, em Pernambuco, exemplificam essa abordagem no campo das doenças endêmicas.[8] Parte importante do fracasso da educação em saúde como instrumento para o controle de doenças e de outras intervenções em saúde pública que dependem da participação ativa dos indivíduos deve-se ao desconhecimento do universo social e cultural e dos valores simbólicos compartilhados pelos sujeitos.

As abordagens comportamentais estão mais relacionadas com as ciências humanas, especialmente a psicologia social, e fornecem elementos para a compreensão dos comportamentos individuais como um dos componentes da vulnerabilidada às doenças e das modalidades de respostas face às propostas de intervenção. Os estudos epidemiológicos baseados em estilos de vida e os estudos de psicologia social referidos à aderência a tratamentos ou procedimentos preventivos são tributários dessas abordagens. No campo das doenças endêmicas, os trabalhos de Zoica Bakirtzief sobre aderência ao trtamento de pacientes hansenianos exemplificam esse tipo de abordagem.[9] A relativa ineficácia das propostas de controle de doenças baseadas no diagnóstico precoce e no tratamento dos infectados, em doenças de evolução crônica como é o caso da hanseníase, decorre da dificuldade em alterar satisfatoriamente os comportamentos individuais garantindo sua adesão ao tratamento pelo tempo necessário para obter a cura ou remissão do quadro, mas principalmente para interromper o processo de transmissão.

Cada vez mais, no âmbito da investigação científica em saúde buscam-se construir abordagens multidisciplinares para tentar avançar o conhecimento de problemas complexos. Sem dúvida, as doenças endêmicas colocam muitos desafios aos pesquisadores, mas principalmente aos responsáveis pela condução das políticas de saúde e pelos programas de controle. As abordagens simplistas e naturalizadas estão fadadas ao fracasso por não levarem em consideração inúmeros aspectos sociais, culturais e comportamentais imprescindíveis à correta compreensão da produção e distribuição desses problemas de saúde, mas, principalmente, indispensáveis na elaboração de modelos tecnológicos que intervenção que possam efetivamente interferir com a transmissão dessas doenças e reduzir ou anular o sofrimento delas decorrente.

Referências

[1]. Breilh J, Granda E, Campaña A, Yépez J, Páez R, Costales P. La salud enfermedad como hecho social: un nuevo enfoque Capitulo 2. Deterioro de la vida. Corporación Editora Nacional Ecuador 1990.

[2]. Samaja J. A ordem descritiva da reprodução social. Capítulo 5. A reprodução social e a saúde. Elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Editora Casa da Saúde. 2000.

[3]. Silva LJ. Desbravamento, agricultura e doença: a doença de Chagas no estado de São Paulo. Cadernos de Saúde Pública 2(2):124-140,1986.

[ 4]. Barata RB. Epidemiologia e ciências sociais.Capitulo 17 In: Barata RB e Briceño-León R Doenças endêmicas: abordagens sociais, culturais e comportamentais. Rio de Janeiro. Editora Fiocruz, 2000.

[ 5}. Martelli CM et.al. Risk factor for Trypanosoma cruzi infection among blood donnors in central Brazil. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz 87 (3):339-343, 1992.

[6]. Chieffi PP, Waldman EA. Aspectos particulares do comportamento epidemiológico da esquistossomose mansônica no estado de São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública 4(3): 257-275,1988.

[ 7]. Barata RB Organización tecnológica del control de la malaria en São Paulo, Brasil, de 1930 a 1990. Revista Panamericana de Salud Pública 1(5):335-343,1997.

[ 8]. Barbosa CS e Coimbra Jr. CEA A Construção cultural da esquistossomose em comunidade agrícola de Pernambuco. Capítulo 2. In: Barata RB e Briceño-León R Doenças endêmicas: abordagens sociais, culturais e comportamentais. Rio de Janeiro. Editora Fiocruz, 2000.

[ 9]. Bakirtzief Z. Aderência ao tratamento de Hanseníase. Capítulo 5. In: Barata RB e Briceño-León R Doenças endêmicas: abordagens sociais, culturais e comportamentais. Rio de Janeiro. Editora Fiocruz, 2000.

Prof Adjunto Departamento de Medicina Social Faculdade de Ciências Médicas Santa Casa de São Paulo. Comissão de Ciência e Tecnologia da Associação Brasileira de Pósgraduação em Saúde Coletiva - ABRASCO

 

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Atualizado em 10/06/2005

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