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Preconceitos tropicais

A expressão doenças tropicais, ou exóticas, causou, e ainda causa, muita polêmica no meio científico. Várias pesquisas e artigos foram produzidos para mostrar que o termo traduzia um preconceito dos colonizadores europeus em relação ao clima e aos povos que habitavam os trópicos. “A denominação tropical ou exótica era um artifício classificatório que sintetizava, para além das doenças e do clima, um valor cultural incorporado historicamente na mentalidade do europeu”, analisa Marli Brito Moreira de Albuquerque Navarro, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

As associações entre clima-doença e raça-doença, não resistiram aos argumentos historiográficos e biomédicos. A malária, por exemplo, conhecida como “doença tropical por excelência”, foi uma epidemia que abateu a Inglaterra entre os anos de 1887 e 1922 sendo este um dos primeiros países da Europa a criar institutos de pesquisa na área de medicina tropical. A varíola, embora hoje esteja distribuída pelas regiões tropicais, arrasou a Europa há muitos séculos atrás. A amebíase foi verificada na Rússia, a peste, a cólera e outras doenças resurgem e ameaçam populações em termos globais. Por outro lado, a doença do sono é endêmica na África tropical, nunca tendo se estabelecido em outros países dos trópicos.

Atualmente, não há consenso sobre quais são as doenças tropicais e quais os critérios se deve usar para classificá-las dentro dessa categoria. Há uma tendência de se pensar que são poucas as doenças exclusivas dos trópicos e que nenhum fator, dos muitos que causam as doenças, pode ser determinante exclusivo dessas enfermidades. O clima e a distribuição geográfica das doenças ainda são relevantes, mas em geral aparecem associados à pobreza. Esse novo critério introduziu no rol das doenças tropicais a tuberculose e aids, por exemplo. Mas pesquisadores ressaltam para os riscos de se passar de um determinismo climático e racial, que marcou a origem da definição de doenças tropicais, para um determinismo socioeconômico.

Expressão “doenças tropicais” marca preconceito contra clima e povos dos trópicos

A definição de doenças tropicais, exóticas ou do estrangeiro está intimamente relacionada aos processos de colonização da África, Ásia e América e à expansão pós-colonial. Durante vários séculos, existiu entre os europeus uma forte associação entre o clima tropical, quente e úmido e a contaminação com doenças. Maria Eugenia M. Costa Ferreira, do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Maringá (Ufem), no artigo “Doenças tropicais: o clima e a saúde coletiva - alterações climáticas e a ocorrência de malária na área de influência do reservatório de Itaipu, PR” , analisa que a associação entre clima e doença era tamanha que os colonizadores europeus passavam férias em terras mais elevadas da América tropical, África tropical e norte da Índia para evitar a contaminação com tais doenças. A colônia holandesa do Cabo da Boa Esperança era preferida para paragem dos navios europeus no sul da África devido ao seu clima temperado. No Brasil, quando chegava o verão, o imperador se instalava em Petrópolis, Rio de Janeiro.

Diversos estudos feitos nos séculos XIX e inícios do XX pretendiam confirmar a associação entre clima e doença. Uma das conseqüências da hipótese climática foi o surgimento de vários preconceitos contra os povos da zona tropical evidenciados, por exemplo, na obra de Ellsworth Huntington, Civilization and climate, que ficou famosa por defender a idéia de que o calor tornava os habitantes dos trópicos preguiçosos, impedia os homens de raciocinar e era a causa de todas as doenças.

Fonte: Índios - Spix, J. B. und Martius, C. F. P. Atlas Sur Beschreibung der Reise in Brasilien. Monachii:Typis C. Wolf, 1828.
Doenças tropicais são associadas aos povos dos trópicos

 

Fonte: Negra Mina e criança - Agassiz, Luis & Elisabeth Cary. A Journey in Brazil: 1865-1866, 1868.

Negra Mina e criança

Durante muito tempo houve uma forte associação entre as condições físicas dos locais em que se vivia e as condições morais, intensificando a idéia de uma possível degradação física e moral dos povos que migrassem dos países temperados para os tropicais. As regiões tropicais eram consideradas como locais inabitáveis pelo homem branco, por estes serem de raça diferente das raças nativas das colônias. Os europeus se degenerariam nos trópicos e os negros e índios já eram degenerados, por terem vivido séculos nos trópicos, o que explicava, inclusive, a alegada inferioridade destes.

As teorias raciais radicais ganharam espaço nos EUA e Europa e o foco no clima e na herança racial como fatores que facilitavam a transmissão de doenças ficou conhecido como “determinismo climático e racial”. Sandra Caponi, do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica que “o pessimismo climático situava o estrangeiro, ou nativo das colônias, como ‘o outro’ por excelência. Tudo nas colônias parecia poder ser definido por suas diferenças: de clima, de cultura, de fauna, de costumes e, fundamentalmente, de raças. Restava saber se a raça européia branca poderia habitar ou não as regiões tropicais”.

Pesquisas sobre doenças tropicais a serviço da expansão capitalista colonial e pós-colonial

A ciência médica foi uma das que mais contribuiu no processo de expansão colonial e pós-colonial para os trópicos. As ditas doenças tropicais representavam uma ameaça para os povos dos países que pretendiam se estabelecer nas colônias ultramar. No século XIX médicos europeus investiam em transformar os trópicos em locais habitáveis para os colonizadores brancos europeus e, ao mesmo tempo, garantir a saúde da mão-de-obra escrava das colônias, essencial ao sucesso da colonização.

Fonte: Anselmo, Artur. Origens da Imprensa em Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1981.
Epidemias representam ameaça ao desenvolvimento econômico

No século XX, muitas pesquisas na área de geografia médica combatiam a relação entre clima-doença. Destacam-se os estudos de Victor Godinho que tinham a intenção de atender a interesses políticos e econômicos, provando aos imigrantes que chegavam a São Paulo que não havia relação entre doenças tropicais e uma suposta insalubridade das cidades brasileiras. Na mesma linha, vários estudos foram encomendados na década de 1950 sobre as doenças tropicais endêmicas da Amazônia e Centro-Oeste, para atender interesses do governo de implantar projetos de exploração de energia, minérios e agropecuárias nessas regiões. Segundo Ferreira, a geografia médica brasileira esteve, quase sempre, a serviço de interesses colonialistas ou desenvolvimentistas de base capitalista, e uma produção científica desvinculada dos interesses econômicos só surgiu na década de 80.

Pobreza passa a caracterizar doenças tropicais

Houve, e ainda há, no meio científico, um esforço concentrado em mostrar o quanto o termo“doenças tropicais” estava equivocado e o quanto expressava o preconceito europeu em relação aos povos que viviam nos trópicos. O médico sanitarista Frederico Simões Barbosa, da Universidade Federal de Pernambuco, no artigo “Saúde e trópico” defende a impossibilidade de se definir uma moléstia como tropical. Segundo ele, a definição não resiste a três argumentos: as doenças tropicais não são as mesmas nas diferentes regiões tropicais do mundo; nenhum fator, dos muitos fatores que causam as doenças, pode ser determinante exclusivo dessas doenças; e raras são as doenças que se limitam às regiões tropicais. O próprio Carlos Chagas, em uma aula inaugural na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1926, já afirmava que eram “muito poucas, em verdade, e conta-se por algumas unidades, as doenças exclusivas de países tropicais, e também raríssimas aquelas circunscritas aos países frios e temperados”.

Ainda hoje o termo é controverso e diferentes critérios são utilizados para definir as doenças tropicais. O clima, a distribuição geográfica ou a ecologia dos parasitas e vetores, ainda são critérios relevantes, mas aparecem associados à categoria de mais força na atualidade: a pobreza. Dentro desta hipótese, são associadas aos trópicos as doenças decorrentes de falta de saneamento básico, tais como, amebíase, helmintíases, protozooses intestinais, cólera. Além das relacionadas à precariedade das habitações e condições de vida, como tripanossomíase, toxoplasmose, hanseníase, tuberculose, peste, leptospirose e, mais recentemente, a aids, cuja origem foi atribuída ao continente intertropical florestal africano.

"A maior parte dessas doenças não está associada exclusivamente às qualidades dos meios climáticos tropicais, apenas grassando nos países tropicais devido às condições de subdesenvolvimento. Este é o caso da tuberculose, da aids, das infecções intestinais e da desnutrição infantil, dentre outras", ressalta Ferreira. Muitos pesquisadores têm sugerido a adoção de termos como doenças negligenciadas, emergentes e reemergentes, ao invés de tropicais, devido a essa nova caracterização dessas doenças.

A associação entre condições socioeconômicas e doenças tropicais não é nova. Os médicos europeus que formaram a Escola Tropicalista Baiana, antes do estabelecimento de uma medicina imperial no Brasil, já questionavam o determinismo climático e racial e atribuíam a proliferação das doenças às más condições em que viviam negros e índios nas colônias. Suas hipóteses, porém, perderam força no decorrer da história e, nas últimas décadas do século XIX, emergiu uma ciência construída pelas nações coloniais, marcada pelo pessimismo climático e por determinismos raciais, que orientou os rumos posteriores da pesquisa brasileira.

Trópicos ainda são vistos como ameaça aos países desenvolvidos

Se na época da expansão colonial as doenças tropicais eram sinônimo de “doenças de negros e índios”, hoje são sinônimo de “doenças de pobre”. A maioria das doenças tropicais se concentra nas regiões mais pobres do mundo que, ironicamente, estão nos trópicos. Pesquisadores alertam para os riscos de se passar de um determinismo climático e racial que marcou a origem da expressão doenças tropicais para um determinismo socioeconômico.

Na medida em que tropical é sinônimo de pobre existe uma possibilidade perversa de que o rótulo tropical seja um caminho na direção do negligenciado e que se estigmatize uma população inteira: o problema agora é de quem mora nos trópicos”, diz Francisco I. Pinkusfeld M. Bastos, que pesquisa aids na Fiocruz. Bastos lembra que houve uma tentativa de transformar toda a população do Haiti em categoria de risco no início da epidemia de aids, junto com os homossexuais, os heroinômanos e hemofílicos (os assim denominados "4H"). “Embora todas as categorias fossem preconceituosas, chama a atenção o fato de definirem toda a população de um país como 'sob risco', quando, na verdade, a aids entrou no Haiti via o turismo sexual norte-americano”, diz.

Marli Navarro, destaca a emergência dos temores sanitários que despertam hoje a figura do imigrante. “Alguns documentos oficiais expressam uma total equivalência entre o termo doenças exóticas e aquilo que entendemos como doenças emergentes, reemergentes e negligenciadas. Confirmando a antiga visão que traduz que os malefícios que ameaçam a ordem dos países desenvolvidos residem na invasão estrangeira dos países pobres”. Como aparece no documento referente aos programas dos EUA para as cidades sustentáveis da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), em que o termo “doenças exóticas” refere-se as doenças dos países sub-desenvolvidos que representariam uma ameaça para o povo dos EUA. “Preocupações humanitárias e a necessidade de proteger os cidadãos dos EUA motivam o alto interesse deste país em ajudar outras nações a aprimorar a administração do seu crescimento urbano e de suas condições ambientais”, diz um trecho do documento.

Sandra Caponi estudando os experimentos com humanos feitos na Índia entre 1894 e 1899 por Ronald Ross - prêmio Nobel de Medicina em 1902 - para determinar o papel do Anopheles na transmissão da malária, aponta que a desigualdade social foi um dos principais fatores que justificou a transformação de vidas humanas em corpos sem direito, que podiam ser submetidos a experimentos e aniquilados em nome do bem comum da humanidade. . (leia sobre o assunto no artigo “A Biopolítica da população e a experimentação com seres humanos” e na notícia Desigualdade social justificou experimentos antiéticos com humanos ). As denúncias vieram à tona com a publicação do livro The best in the mosquito: the correspondence of Ronald Ross and Patrick Manson, e escandalizaram o mundo acadêmico. Entre os recursos usados por Ross para convencer a população a participar da pesquisa estava a promessa de que picada do mosquito salvaria suas vidas.

Caponi explica que o relativismo ético (ou duplo standard) tem sido usado como argumento por pesquisadores que crêem não ser possível aceitar as normas éticas para experimentos com humanos quando se tratam de comunidades pobres, sem condições de ministrar assistência à população, cujos governos se manifestam favoráveis à realização das experiências. Nessa modalidade de poder, ressalta a pesquisadora, os cientistas colocam as vidas das populações pobres fora da jurisdição humana, onde o corpo deixa de ser alguém para ser transformado em um elemento que pode contribuir para o conhecimento dos fenômenos populacionais e conter o avanço das doenças que ameaçam o desenvolvimento sustentável das nações civilizadas.

Leia mais:
Contas de vidro, enfeites de branco e "potes de malária"
Dominique Buchillet.

Trópicos, micróbios y vectores
Naturalistas y microbiologos en la emergencia de la medicina tropical
Coordenadas epistemológicas de la medicina tropical
Sandra Caponi, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva

Cólera e medicina ambiental no manuscrito 'Cholera-morbus' (1832), de Antonio Correa de Lacerda (1777-1852)
Nelson Sanjad, publicado na revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos

A Escola Tropicalista Baiana: um mito de origem da medicina tropical no Brasil
Flavio Coelho Edler, na revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos

Escola tropicalista baiana

Tropical disorders and the forging of a brazilian medical identity
Julyan Peard. In: Hispanic American Historical Review, vol. 77, no. 1 (fev 1197) 1-44.

A Biblioteca Virtual de Tropicologia disponibiliza outros artigos interessantes:
Trópico e desenvolvimento

Garrido Torres

Agricultura e desenvolvimento nos trópicos: potencialidade e limitações
Paulo de Tarso Alvim

(SD)


 

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Atualizado em 10/06/2005

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