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Corações
Sujos - a história da Shindo Renmei São Paulo, Companhia das Letras, 2000 por Rafael Evangelista Ao contrário do que a escrita fácil e leve de Fernando Morais parece convidar, Corações Sujos é um livro que não deve ser lido sem reflexão. A obra trata da Shindo Renmei, uma associação que surgiu dentro da colônia japonesa no Brasil no ano de 1944 - mais de um ano antes do rendição do Japão - com o objetivo (oficial) primeiro de preservar a cultura japonesa e a imagem do imperador Hiroíto. No entanto, com o término da Segunda Guerra e a derrota do Japão, a associação tornou-se cada vez mais radical e passou a assassinar os imigrantes japoneses que acreditassem na derrota nipônica frente aos aliados. O número de assassinados chegou a 23 e o de pessoas feridas chegou a 100. Os membros da Shindo Renmei falsificaram revistas e jornais internacionais para que os japoneses acreditassem que seu país de origem havia vencido a guerra. Segundo Rogério Denzem - autor de outro livro sobre o caso intitulado Inventário Deops - Shindô Renmei - os kachigumi, aqueles que acreditavam na vitória do Japão, chegaram a ser 75% da colônia japonesa de 200 mil pessoas que vivia no Brasil. A primeira reação que a maior parte das pessoas tem ao saber da história da Shindo Renmei ¾ que significa Liga do Caminho dos Súditos ¾ é acreditar que os japoneses que recusavam-se a acreditar na derrota do Japão eram um grupo de pessoas ingênuas e que os membros da Shindo eram malucos fanáticos. No entanto, é preciso localizar o caso dentro da história do Brasil e do contexto de repressão a que os imigrantes de países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) estavam submetidos. Desde meados da guerra o governo de Getúlio Vargas havia proibido a publicação de jornais na língua desses países, assim como proibiu o ensino dessas línguas nas escolas e o uso delas nas ruas. Para a comunidade nipônica, grande parte ainda não falante do português, isso significava ser condenada ao silêncio e à desinformação. Soma-se a isso a grande diferença da cultura japonesa da cultura ocidental, que dificulta bastante a assimilação dos japoneses. E, ainda, a maior parte deles não estava no Brasil para ficar mas pretendia retornar ao país natal e, portanto, não viam motivos para tornarem-se brasileiros. Apesar de argumentos desse tipo estarem presentes no livro de Morais ele não parece levá-las em consideração quando escreve sua reportagem em forma de livro. Em diversos trechos, Morais repete os julgamentos que pressupõe serem o de sujeitos contemporâneos ao Shindo mas não pertencentes à comunidade nipônica; exemplo disso são qualificações como: "um bando de japoneses desequilibrados", que Morais apresenta como da polícia paulista. Como não há uma interpretação clara do autor sobre a Shindo, tem-se a impressão de que esse é um julgamento possível, que ela pode ter sido formada por um bando de loucos. Há também um certo caráter anedótico na descrição de Morais de algumas ações mal sucedidas dos tokkotai (os membro da Shindo que realizavam as ações terroristas). Esses dois elementos contribuem para que o leitor tenha a possibilidade de fazer um julgamento também anedótico e construído em cima de estereótipos. Não parece haver no livro de Morais um movimento de compreensão do que foi o Shindo Renmei, daí a necessidade de o leitor procurar desenvolver ele mesmo esse movimento. Permitir a interpretaçãoda Shindo como uma seita de malucos é admitir um simplismo atroz. É preciso localizá-la historicamente e dentro do contexto de repressão e racismo vigentes na época. Uma das preocupações das autoridades brasileiras do início do século era promover um branqueamento do povo brasileiro - através da imigração - e os japoneses não se encaixavam no perfil racial desejado. Além disso, muitos foram para cidades pequenas e promoveram verdadeiras "invasões" nelas, tornando-as em boa parte japonesas. Quando Morais fala daqueles que acreditavam e dos que não acreditavam na derrota japonesa, na maioria das vezes atribui isso a um maior nível educacional da pessoa ou então a uma maior assimilação que este teria da cultura brasileira. No entanto, é preciso levar em consideração que muitos dos que se tornaram assimilados, ou que tinham maior nível educacional, foram aqueles que conseguiram ascender socialmente. A grande maioria dos japoneses enfrentava duras condições de sobrevivência, o que contribui para que desejassem voltar para o Japão, algo que se tornou bastante difícil após a vitória dos aliados. Esses fatores - o cotidiano de racismo que muitas vezes viviam e a posição social inferior - são importantes quando imaginamos porque tantas pessoas recusaram-se a admitir que seu país tivesse sido derrotado. Conhecer a história da Shindo Renmei sem buscar um mínimo de compreensão do contexto histórico e da cultura japonesa significa muito pouco. Fernando Morais faz um levantamento de bastante fôlego dos casos de assassinato - que às vezes chega à gratuidade - e da repercussão na imprensa das ações da Shindo. Ao leitor interessado em aprofundar-se no entendimento dos motivos do surgimento da Shindo Renmei, a própria bibliografia descrita no final do livro de Morais é uma indicação interessante. Toda a descrição, mesmo jornalística, traz em seu bojo uma interpretação, mesmo que involuntária. A tentativa de descrever um fato sem interpretá-lo significa apenas deixar essa tarefa para o senso-comum, do autor ou do leitor.
Veja também o testemunho exclusivo de dois familiares de vítimas da Shindo Renmei, Milton Mori e Kazuhiro Mori. Na seção de entrevistas. |
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