Shindo
Renmei: lembranças amargas
Milton
Mori é engenheiro químico, com doutorado em engenharia
na North Carolina State University, nos Estados Unidos. Foi também
diretor da Faculdade de Engenharia Química da Unicamp, entre
1991 e 1994.
Ao
lado desse brilhante currículo acadêmico Milton tem uma
história familiar que foi profundamente alterada pela ação
da Shindo Renmei, a seita nacionalista dos imigrantes nipônicos
que, após o final da Segunda Guerra Mundial recusava-se a acreditar
na derrota do Japão.
O
avô e o tio-avô de Milton foram assassinados pela Shindo
Renmei, em um episódio descrito por Fernando Morais no livro
recém lançado Corações Sujos, que aborda
a ação terrorista da Shindo. Foi sobre o livro de Fernando
Morais e as atividades da Shindo Renmei que Milton Mori conversou com
exclusividade para a revista Com Ciência.
Com
Ciência - Qual sua avaliação sobre o novo livro de Fernando Morais,
Corações Sujos?
Milton Mori - Bom, eu já havia lido o livro anterior, Chatô,
o Rei do Brasil. Morais é um jornalista. Ele detalha, encontra dados
dos jornais, coloca as cartas enviadas. O mesmo que fez com Chatô,
o Rei do Brasil. Para o leitor, ele vai e volta. O Ruy Castro, que
escreveu a vida do Garrincha, narra muito bem, melhor do que o Fernando
Morais. A narração dele flui. Agora, o Fernando Morais é mais detalhista.
Ele coloca fatos, fotografias, etc escreve tudo de um jornal que apareceu...
Com
Ciência - Mas, pela idéia que você já tinha da Shindo Renmei, está de
acordo com o que apareceu no livro?
Mori - Nesse sentido sim. É mais ou menos o que ele falou. As pessoas
consideravam o imperador como um Deus. É interessante, não foi nem há
meio século atrás. E como é que pode uma seita fanática conseguir ludibriar
todo mundo e fazer moedas falsas, propaganda toda falsa, para toda uma
colônia, e o pessoal acreditar? Como eu nasci no Brasil, hoje fica difícil
acreditar como é que eles conseguiram convencer todo esse pessoal. Tinha
200 mil japoneses na época e muito mais do que 100 mil, 150 mil eram
a favor da Shindo. Acreditavam que o Japão tinha vencido a guerra.
Com
Ciência - E o seu pai?
Mori - Meu pai realmente era uma pessoa diferente, por que ele perdeu
o pai e o tio assassinados pela Shindo Renmei. Depois de um ano e pouco
ele saiu de Bilac, onde morava, com mais um irmão. Foram todos para
o Paraná. Ele era diferente dos demais, era mais aberto. Começou a dar
valor ao Rotary Clube. Era o único japonês que ia lá fazer discurso,
errado, em japonês misturado com português. E não seguiu muito a tradição
japonesa. Seguiu como todo mundo, mas não rigorosamente como meu primo.
A família dele aprendeu japonês, sabe falar fluentemente. Já eu não
sei, larguei a escola bem cedo, a pedido do meu pai. "Se você não
quer aprender japonês, você não vai aprender o japonês. Mas você é que
está decidindo." Eu falei:"tudo bem".
Com Ciência - Mas você vê uma ligação entre essa distância que vocês
mantiveram da cultura japonesa com o que aconteceu? Com o assassinato?
Mori - Com certeza. Mas meus avós eram mais abertos, tinham uma
cultura melhor. A maioria dos que vieram, vinham de uma educação mais
baixa. Era um pessoal mais difícil de conversar e eles não queriam se
adaptar à vida brasileira, queriam voltar para o Japão. Meus avós não,
chegou um ponto em que eles falaram: "agora não dá para voltar mais".
Tinham uma cultura melhor. "Vamos tentar nos adaptar, como todo imigrante,
como o italiano ou o alemão, que estão vivendo com a gente." Tanto é
que meu pai nunca sentiu vontade de voltar para o Japão. Mas os fanáticos
não pensavam dessa maneira.
Com
Ciência - Você pode contar para mim como seu pai te contava a história
do seu avô?
Mori - Meu pai era muito chefão, conversava muito pouco, quem conversava
mais era minha mãe. Mas ele contava por cima que meu avô tinha um rádio,
que ele pegou o radinho e escutou a rendição do Japão. E saiu, como
uma pequena minoria que freqüentava a colônia, dizendo que todo mundo
tinha que acreditar no que ele tinha ouvido. E aí começou a história.
Com
Ciência - Você acha que isso que aconteceu com os japoneses, o surgimento
da Shindo Renmei, poderia ter acontecido com italianos, com alemães?
Mori - Eu acredito que não. Porque a cultura japonesa é muito diferente.
Até hoje, os descendentes de japoneses que estão indo para o Japão não
se adaptam. É uma cultura completamente diferente. Eu, na verdade, nasci
no Brasil e me considero brasileiro, e tive uma vida na colônia que
não é igual a morar no Japão.
Com
Ciência - Depois da morte do seu avô, o que aconteceu com sua família?
Mori - Meu pai ficou muito decepcionado - isto eu fiquei sabendo,
acho que ficaram com medo, também. Meu pai acho que tinha, na época,
uns 21 anos. Ele imaginou o irmão dele mais novo, mais essa tia-avó
que tinha perdido o marido, e chegaram à conclusão de que era melhor
sair de lá. E todos eles saíram com a familia. Meu tio acho já tinha
um filho também. Pegaram o caminhão, dois caminhões diferentes, e foram
para Jandaia do Sul, no norte do Paraná. E lá eles recomeçaram a vida
novamente. Acho que ficaram um ano e pouco para tentar vender o bar
e a loja de tecidos, que eram do meu tio-avô e do meu avô.
Com Ciência - Você é de Jandaia do Sul? Mori - Sou de Jandaia
do Sul. Mas nasci em Bilac. Saí acho que com 3 anos de idade. Nasci
em Bilac e nunca mais fui a Bilac. Nem sei como é. É uma cidade pequena.
Com
Ciência- E como foi em Jandaia do Sul, havia algum preconceito
contra japoneses?
Mori - Eu, particularmente, não notei isso. Era uma cidade nova,
com italianos, bastante árabes. Eu não tive segregação racial na cidade.
Mas eu tenho um amigo, colega de turma, que nasceu em Londrina, que
tem a mesma idade que eu, e, quando o pai dele colocou ele na escola,
com uns 4 anos, ele conta que apanhava muito dos japoneses descendentes
diretos, que diziam que ele era diferente. Diferente porque o pai dele
era japonês e a mãe não. Para mim não aconteceu isso, porque eles tentavam
ensinar diferente do que ocorria em Bilac, ensinavam a leitura e falavam
da História do Japão mas o pessoal tentava se adaptar à vida nova, no
sentido da integralização. Mas, quando eu saía da escola, meus grandes
amigos eram os italianos e descendentes de árabes. Meu pai era sócio
do Tênis Clube de Jandaia do Sul. Eu ficava muito mais com ele. Por
isso, num momento, eu falei com meu pai: "vou largar a escola japonesa".
Aí ele deu a decisão para mim. Mas meus amigos eram mais descendentes
de italianos e árabes.
Com
Ciência- Quando você era pequeno, você ouviu falar da Shindo?
Mori - Não. Gozado, de repente, acabou. Nunca ouvi falar. São 28
pessoas que morreram. Essa seita ficou mais um menos um ano, um ano
e pouco. Depois desapareceram.
Com
Ciência- Na sua família, as pessoas acham que foi justa a punição
para os assassinos?
Mori - Não, tanto é que minha tia-avó lutou contra esse pessoal,
depois fez muito mais propaganda, falando tudo o que aconteceu. Nunca
acharam os assassinos. E é interessante que meu pai falava que a família
de um dos rapazes que matou meu pai e meu tio-avô, depois foi para o
Japão. Três ou quatro anos depois a família voltou e teve a cara-de-pau
de chegar na minha família e pedir desculpas. É coisa de japonês.
Com Ciência - Como é sua relação hoje com o Japão e com a cultura
japonesa?
Mori - Olha, eu não tenho contato nenhum. Eu poderia ter um contato
se soubesse bem japônes. Mas o que eu sei é aquela linguagem de
casa, misturada com português, com a qual meus pais conversavam.
Eu não sei, na verdade; se estou numa conversa entre três japoneses
eu consigo captar algumas frases e às vezes eu perco o sentido. Como
eu não conheço o vocabulário, acabo não entendo. Agora, bom-dia, boa-tarde,
essas coisas assim, consigo captar; mas numa conversa normal, corrida,
fica muito difícil para eu acompanhar. Não é que eu não tenha nenhuma
relação com o Japão. No meu íntimo eu tenho alguma coisa. A minha educação,
tudo isso aprendi com minha família. Mas tem muita coisa que aprendi
fora da minha casa, também. Eu nunca fui para o Japão. Até o pessoal
da minha família fala: "pôxa, você que tem condições de ir, que é professor,
foi para a Europa, foi para os EUA..." Eu falo: "olha, é muito longe."
Tá louco. Não tenho vontade. Quem sabe um dia? Talvez eu possa ir.
Com Ciência - Como você avalia hoje o que aconteceu ? O que você
acha que foi a Shindo?
Mori - Olha, pelo que tem no livro e pelo que meus pais contaram,
no início, realmente, essas pessoas que fundaram a Shindo Renmei acreditavam
piamente que era tudo mentira. E, olhando para trás, acho que, pela
época... O meio de comunicação era o rádio. Então são pessoas que acreditavam
que, como é que pode o Japão perder se 2600 anos antes da Segunda Guerra
nunca o Japão tinha perdido uma guerra - contra a China, contra a Rússia.
É a cultura.