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Brasileiros na Itália

O professor Geraldo Di Giovanni é sociólogo, diretor do Instituto de Economia e pesquisador do Núcleo de Políticas Públicas (NEPP) daUnicamp, universidade na qual trabalha quase desde sua fundação.

Foto: Marianne Frederick

Descendente de italianos, como bem alerta o seu nome, durante boa parte de sua vida chamava-se Giovanni. O Di veio depois, num movimento simbólico-afetivo pelo país de origem dos ancestrais, que de tão forte, resultou na mudança do símbolo maior de todas as personae com que vamos, ao longo da vida, sendo inseridos na sociedade: o próprio nome próprio.

É sobre isso e outras adjacências sentimentais, intelectuais e existenciais que nos fala nessa entrevista.

Com Ciência - Como o senhor é um profissional de renome, estabelecido no ambiente acadêmico brasileiro, o que o levou a pedir a cidadania italiana? Algum motivo prático?
Geraldo Di Giovanni
- Não, eu seria um imigrante ideológico. Acho que é isso. Não tenho razões práticas. Eu acho que essa coisa da cidadania é de um pragmetismo terrível. Porque o Brasil vai mal eu vou arrumar um passaporte italiano para jogar minha filha para estudar na Itália, ou para eu estudar, ou para procurar trabalho lá? Eu acho que isso é uma loucura. Eu até quero ter passaporte, mas não por razões pragmáticas. Eu acho que a Itália tem uma dívida muito grande, acho que tem consciência pesada. É a consciência pesada por ter deixado ir embora pela fome milhões de italianos que imigraram. Claro que hoje se espalharam pelo mundo, mas imagine se todo italiano que saiu quisesse agora voltar? É uma utopia dar cidadania italiana para todos os descendentes italianos.

Com Ciência- Quando você conseguir a cidadania, vai se sentir italiano? Seu sentimento de brasilidade e italianidade poderia evoluir em conflito ou se acomodaria na duplicidade?
Di Giovanni -
Eu não tenho conflito. Tenho um vínculo forte com a Itália que eu gosto de preservar, é importante. É o seguinte: é um elemento psicológico. A pessoa tem que juntar sua biografia e sua história. Ou seja, como sociólogo, no meu caso, há a estrutura social, mas também destino pessoal. Acho que para algumas pessoas, e me enquadro nisso, você tem que entender essa relação da estrutura social e do destino pessoal. Eu não me entendo se eu não procurar entender isso. Agora, não tem conflito nenhum entre ser brasileiro e ser italiano.

Com Ciência - Como você descreveria sua ligação com a Itália? E a da sua família?
Di Giovanni
- Devido aos vínculos muito fortes que minha família paterna mantém com a cultura italiana, a Itália foi muito importante em minha formação. Meus bisavós vieram para o Brasil em 1898 e se estabeleceram no Interior de SP, como uma grande parte do contingente de imigrantes que chegaram aqui nessa época da grande fome na Itália. Uma parte desses imigrantes foi trabalhar no café e outra parte, até pela formação que tinha, foi trabalhar nos centros. O meu bisavô se instalou na cidade de Rio Claro para trabalhar como alfaiate. É muito interessante que em seu passaporte do meu bisavô estava escrito a profissão: artista. A alfaiataria, ourivesaria e todo o artesanato eram considerados Artes Menores.

Com Ciência - Em sua opinião, como se dá o processo de assimilação cultural?
Di Giovanni -
Considero-o muito desigual. Quando se conversa com pessoas caipiras no interior do Estado, se percebe que algumas pessoas foram totalmente absorvidas pela chamada cultura local e que das origens, só guardam um remoto nome alemão ou um remoto nome italiano. Há famílias tanto alemãs quanto italianas que mantêm algum vínculo com as culturas originais. Esse vínculo, na minha família, é mantido pelas pessoas com formação um pouco mais elaborada. E eu acho que isso pode ser uma regra: as pessoas com maior formação conseguem entender um pouquinho da história da imigração e a preservam. Minha tia que tinha preservado as origens falava italiano perfeito, era professora de italiano na Sociedade Italiana de Beneficência de Rio Claro, cantava muito bem, e portanto cantava músicas italianas. Eu, na minha juventude, aprendi a tocar violão e a acompanhava cantando. Percebe como os vínculos vão se formando?

Com Ciência - Conte-nos mais sobre a formação de seus vínculos com a Itália.
Di Giovanni
- Na primeira vez em que eu fui para a Itália, a primeira coisa que fiz foi correr para a de cidade do meu bisavô, chamada Civita Nuova del Sannio, lá no Molise. Assim o vínculo com a origem dos antepassados vai se constituindo. Conforme nos tornamos adultos, começamos a estudar, ter curiosidade pela história das migrações, principalmente da vinda para o Brasil. A relação com a origem dos antepassados começa a deixar de ser idílica, começa a ganhar planos de realidade muito fortes que vão se constituindo na cabeça do sujeito. Eu, por exemplo, começei a perceber que a migração Itália-Brasil foi extremamente dramática. Não foi algo como "ah, vamos fazer a América, vamos procurar o Novo Mundo", não é nada disso.

Com Ciência - Quais episódios dramáticos você destacaria?
Di Giovanni -
Acho que a primeira situação dramática, em muitíssimos casos, é a perda do nome. Por exemplo, a minha família lá é Di Giovanni. Aqui, uma parte é Giovanni e outra parte é Di Giovanni. Provavelmente havia algum funcionário brasileiro na imigração que estava pouco ligando para o nome das pessoas. Então o nome ficava mutilado, ganhava uma grafia errada. Isso é terrível, é uma perda de identidade. E, na verdade, o imigrante nessa situação é pobre, ele esta tangido pela fome, não sabe o que vai ser o futuro, tem uma mala de roupas, e o nome. Aí alguém vai lá e tira o nome dele.

Com Ciência - Como se distribuiram os imigrantes que chegavam? Com eram suas relações?
Di Giovanni -
Toda a imigração, tanto japonesa quanto italiana, entre outras, criaram certas redes de solidariedade. Por exemplo: meu bisavô foi fundador da Sociedade de Beneficência Italiana. O que era uma sociedade beneficente? Tem um italiano que ficou doente, precisa se internar, os outros colaboram, fazem bailes, tem uma biblioteca italiana, contratam uma professora... O século vira e essas redes de solidariedade é que garantem, de um lado a integração dos que vem no novo meio, que é sempre inóspito e hostil, e de outro a preservação de costumes. Depois, na época da guerra, a sociedade beneficente e sua escola foram fechadas, não se podia ensinar italiano, nem japonês, nem alemão. Registrar os filhos com nomes estrageiros também era proibido. Então há esse lado dramático e existe uma tendência muito comum de se manter uma memória seletiva da imigração no Brasil, o lado dramático fica esquecido.

Com Ciência - Quando viveu na Itália, fazendo seu pós doutorado, você se sentiu estrangeiro, compartilhou o drama e o sentimento dos imigrantes, ainda que apenas filosófica e culturalmente?
Di Giovanni
- Eu era estrangeiro, mas, pelo fato de ter origem italiana, eu era um estrangeiro diferente. O pessoal da universidade, que me apresentava para os outros, falava: "Olha, esse é o Giovanni, ele é brasileiro, mas tem origem italiana". Então, veja bem: não tem "o estrangeiro". Tem categorias de estrangeiro. Por exemplo: na Itália, a denominação para estrangeiro é extra-comunitário, de fora da Comunidade Européia, mas é uma linguagem nova. Mas, por exempo, americano, eles não chamam assim. Agora, os negros, asiáticos, é tudo extra-comunitário. Se percebe, fortemente, o diferente tratamento entre branco, asiático e negro nas filas da polícia . A Europa tem um racismo embutido que é uma coisa impressionante. Nesse racismo embutido, eles são muito auto-complacentes e não é por causa da crise econômica. A crise econômica apenas ajuda a evidenciar a distinção. Eu acho que o europeu não consegue conviver com isso. O número de imigrantes está crescendo, até para fazer o que eles não fazem, o trabalho duro, o trabalho "sujo", então tem uma contradição muito violenta.

Com Ciência - Você chegou a ver algum tratamento diferente com algum brasileiro?
Di Giovanni
- Com o brasileiro o tratamento é muito complexo. Não tem um só estrangeiro, você tem categorias de estrangeiros, assim como brasileiro que não é um só brasileiro, tem vários brasileiros. Em primeiro lugar, você tem a mulher brasileira. Eu acho que todo italiano pensa que toda mulher brasileira tem um lado de puta. Fala que a mulher brasileira é bonita, feia, branca, mulata, eles já ficam assanhados. Aí tem uma outra categoria que é muito marcada, que é a da mulata. A mulata que vai dançar, a mulata que vai para o show. E tem uma sub-cateogira de mulata, para a qual eles criaram o termo "Jerusa". Jerusa é o nome de um personagem do Jorge Amado - acho que é do livro Gabriela, Carvo e Canela - que casa com um italiano. Elas vivem verdadeiras tragédia pessoais na Itália. São mulheres muito simples que esquecem o português, não falam o italiano e acabam como empregada da família toda. No início são objeto sexual mesmo. Então o cara se apaixona pela "Jerusa", leva-a para a Itália, a apresenta para a família, que na maioria dos casos não a aceita, e lhe impõem o trabalho doméstico.

Com Ciência - Que outras categoria de brasileiros são também conhecidas?
Di Giovanni
- Outa seriam os "Veados". São brasileiros, travestis, que fazem a vida em Roma. Então na TV, fala-se assim: "hoje o programa Milão Urgente, convida para o debate o presidente do sindicato das prostitutas italianas, o advogado de direitos humanos, o padre, a polícia, e o representante dos veados". Somente os travestis brasileiros são chamados assim. Você percebe que a cultura vai qualificando as pessoas. E não tem só "os" brasileiros. Há mais tipos de brasileiros. Por exemplo, os brasileiros bem-sucedidos na visão dos italianos são os professores universitários, publicitários, artistas, arquitetos. Além desses, há os jogadores de futebol, obviamente, mas que hoje é um categoria diluída diluída.

Com Ciência - Há algum preconceito específico em relação aos brasileiros nas lojas?
Di Giovanni
- Não, na Itália não há. Pelo menos, eu não vi. O que eu vi é o seguinte: muitos jovens brasileiros estudantes trabalham em lojas porque falam português. Em Milão, Gênova, Roma, nas lojas mais antigas, são chamados para atender os clientes da classe média brasileira.

Atualizado em 10/12/00

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