A
presença árabe no Brasil: Mohammed Habib, um "híbrido cultural".
Mohammed
Habib é professor-titular do Instituto de Biologia, do qual foi diretor,
e atualmente exerce a função de coordenador da Coordenadoria
de Relações Institucionais e Internacionais, CORI, da
Unicamp. Nascido no Egito, o professor Mohammed formou-se em Engenharia
Agronômica pela Universidade de Alexandria. Chegou ao Brasil em 1972
e hoje se considera brasileiro - não só de carteirinha, por ser naturalizado
– mas de coração e sentimento. Para ele, é certo que ninguém esquece
seu passado, mas considera que a vinda para o Brasil lhe trouxe enriquecimento
pessoal e profissional. Nesta entrevista, o pesquisador fala do processo
migratório de árabes para o Brasil e das motivações que, no seu caso
particular, o fizeram vir para esse país.
Com
Ciência - Professor Mohammed como foi sua vinda ao Brasil e em quais
condições ela se deu?
Mohammed Habib - Eu cheguei no Brasil dia 5 de agosto de 1972, com
30 anos, carregando um currículo modesto de um professor e pesquisador
universitário jovem. Minha experiência, na época, era de apenas de 7
ou 8 anos, já que eu tinha me formado em 1964. Formei-me pela Universidade
de Alexandria e trabalhei lá como pesquisador e professor. A Universidade
de Alexandria é bastante famosa no Oriente Médio, tem sua própria história,
que se relaciona à história bastante rica e complexa do povo egípcio.
Essa riqueza deve-se, provavelmente, ao contato permanente entre o norte
do Egito e vários povos de várias culturas, de várias civilizações tanto
ocidentais como orientais. Toda a região mediterrânea do Egito representa
um grande híbrido de várias culturas, devido à influência das culturas
européias, das culturas árabes e das culturas egípcias, porque o Egito
é um país milenar e tem a sua história. Nesses tempos modernos há um
processo de hibridização cultural fantástico no norte do Egito.
Com
Ciência – Como era sua participação na vida política, acadêmica e social
no Egito?
Mohammed - Eu participei de atividades artísticas bastante diferenciadas.
Era a arte de fazer crítica, a arte do processo e eu vivi esse processo.
Na década de 70, a juventude do mundo inteiro buscava liberdade, direitos
humanos, reconhecimento ao indivíduo, democratização de sistemas, de
famílias, de instituições. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, essa a década
do nascimento das grandes ditaduras. A cultura daquele povo é muito
forte. Em 1952, o Egito fez a sua "revolução". O governo militar libertou
o país do domínio britânico, principalmente do domínio militar e econômico,
pois o Império Britânico tinha uma atuação em nível econômico mas não
conseguiu abalar o aspecto cultural. Diferentemente do que ocorre com
o neoliberalismo e capitalismo que temos hoje, que levam à eliminação
das culturas dos povos. Com isso, os povos daquela região, principalmente
os povos egípcios, que eram relativamente mais preparados no campo da
política, do conhecimento, da ciência, da educação, em comparação com
os países da região, eram um ponto de referência de fato. Quando os
militares expulsaram o rei Farouk, nós, egípcios, entendíamos que esta
era a força da libertação. No entanto, chega a década de 70 e a gente
sofre o que todos os povos sofriam nos regimes militares. Na universidade
fazíamos muito teatro, que embora fosse amador, tinha penetração nacional
e internacional - era a arte do processo, a arte de fazer política,
a arte que buscava o respeito aos interesses humanos. Por conta disso,
a década de 70 foi o auge da arte teatral no Egito. Hoje, os melhores
artistas de cinema e de teatro no Egito são exatamente da minha geração.
"Eu
tinha 14 anos e vi a guerra do Canal de Suez, o prédio onde eu
morava foi destruído pelo napalm."
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Com
Ciência – Como o senhor descreveria os processos migratórios dos egípcios?
Mohammed - Na década de 50 houve o primeiro movimento migratório
egípcio dos tempos modernos. Esse processo ocorre quando o governo militar
resolve nacionalizar o Canal de Suez. Esse foi um projeto nobilíssimo,
porque ele não podia ser explorado e sua renda ser transferida para
a Inglaterra e para a França. Esses países eram os donos da empresa
que explorava o canal, embora o Canal de Suez esteja no território do
Egito. Então o Nasser, na época, nacionalizou o Canal de Suez. E esse
foi o "crime" que ele cometeu. Como resultado, a Inglaterra, a França
e também Israel - que não tinha nada a ver com a história, mas envolveu-se
no assunto por causa das promessas de ganhos territoriais no Sinai -
fecharam um acordo sigiloso para devolver o Canal de Suez aos seus "donos",
ou seja, Inglaterra e França. Isso dá início à Guerra de 56. Naquela
época, eu tinha 14 anos e vi a guerra do Canal de Suez. O prédio onde
eu morava foi destruído pelo napalm, que é uma arma proibida pela lei
internacional. Como Israel entrou na guerra, parte da população simpatizou-se
com os três países que atacaram o Egito. A partir daquele momento começou
uma divisão dentro da sociedade. As etnias que simpatizavam com a agressão
não tinham mais como ficar no Egito. A maior parte deles acabou saindo.
Uma parte foi para Israel, outra parte foi para os Estados Unidos. Outros
ainda vieram para o Brasil.
Com
Ciência – O que levou o senhor a sair do Egito? Mohammed – Havia
um certo antagonismo ideológico na minha cabeça. Quando saí, era a época
do Sadat, não era mais a época do Nasser. Com a morte do Nasser, eu
comecei a entender melhor as teses nasseristas. Com o ingresso do Sadat,
era como se eu visualizasse mais ainda os objetivos do Nasser e os objetivos
de sua política durante a ditadura militar. A preocupação dele com os
países periféricos em movimento. O Egito foi o campo experimental para
aplicar as teorias de economia aberta, do mercado aberto. O que se chama
hoje de globalização e de economia aberta começou no Egito. O Sadat
aliou-se aos Estados Unidos. Então tirou o Egito de um extremo e foi
para outro. Aí o choque foi violento. Nós não buscávamos isso. Queríamos
uma política nacionalista que defendesse os interesses do Egito, a soberania
do Egito, tudo o que nós fazíamos, mas com respeito ao ser humano. O
Sadat abriu tudo e o Egito entrou na cultura inflacionária, na exclusão
social e econômica violenta, no surgimento das categorias neo-burguesas
que exploram o mercado. Com isso, começou a miséria, começaram a surgir
favelas. Começou, então, uma outra briga na comunidade científica egípcia
e universitária. Entramos nessa briga querendo que o que havia de positivo
fosse mantido. Não tinha como enfrentar esse trator de uma política
internacional bem planejada, bem estruturada e que começou a ser aplicada
no Egito.
"Não
quis ir para os EUA pelo modelo norte-americano, pelo papel que
ele recebeu do Império Britânico para ser o xerife do mundo."
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Com
Ciência - Como era, naquela época, a política de Ciência e Tecnologia
no Egito?
Mohammed - Era muito boa. Porque o governo militar, exatamente o
Nasser, investiu muito na educação. A partir de 1952, todos os níveis
de ensino tornaram-se públicos e gratuitos. E o primeiro grau era obrigatório.
Se o pai não levasse o filho aos seis anos à escola, o pai ia para a
cadeia. A década de 60 foi o auge do desenvolvimento em ciência e tecnologia
no Egito. Era um centro fortíssimo lá. Por isso a maior parte da minha
geração está trabalhando nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Austrália,
aqui no Brasil. O Egito perdeu muito os seus cérebros nas décadas de
60 e 70. Quando eu saí de lá, eu podia ir para os Estados Unidos. Embora
dominasse e falasse a língua inglesa, e toda a minha produção acadêmica
está na língua inglesa, não quis ir para os EUA, pelo modelo norte-americano,
pelo papel que ele recebeu do Império Britânico para ser o xerife do
mundo, o dominador do mundo, já me fez desistir. Descartei o Canadá
pela sua dependência em relação aos Estados Unidos. Aí comecei a pensar
entre Brasil, Argentina e Austrália. Três opções que eu podia escolher
e optei pelo Brasil.
Com Ciência – Quais foram os motivos que o fizeram escolher pelo
Brasil como segunda pátria, já que o senhor se naturalizou brasileiro?
Mohammed - Quando cheguei no Brasil, o país estava no último governo
militar e já havia uma certa flexibilização no sentido de tentar democratizar
o país. Isso era uma coisa que eu buscava com muita ansiedade desde
quando estava no Egito. E aconteceu um fenômeno interessante na época.
Em fevereiro de 82, eu trabalhava com pesquisas de algodão eu encontrei
uma nova praga no algodão que não existia no Brasil. Publiquei o trabalho.
Logo depois a doença, conhecida como "praga do bicudo" já estava na
lavoura do algodão no Brasil. Os pesquisadores de Piracicaba enviaram
uma carta para o Ministério da Agricultura, disseram que tinha uma praga
e que deveria ser combatida. Aí o Ministério da Agricultura sai com
um plano louco de pulverizar 56 municípios por avião com um produto
altamente tóxico, com o pretexto de erradicar a praga. Essa decisão
governamental foi tomada sem ouvir a opinião dos pesquisadores. A partir
disso, começou o meu movimento. E eu não sabia das dimensões, nem do
que significava isso. Fui até ameaçado de ser expulso do Brasil. Foi
a partir daí que nós desenvolvemos todo o projeto da doença do bicudo,
em termos de pesquisa, de protesto, de tentar impedir aquele ato agressivo
que o governo federal, na época, queria fazer.
Com
Ciência – Quais os motivos, em sua opinião, que fazem com que pessoas
de procedência de países árabes escolham o Brasil para emigrar?
Mohammed – No final do século passado e início do século ocorreu
a migração libanesa. Quando se fala em Líbano, devemos incluir um pouco
da Síria, porque são dois povos que são praticamente um só. Aquele movimento
migratório dos árabes aqui no Brasil tinha motivos internos, intrínsecos,
e também tinha alguma coisa aqui. Lá estava acontecendo a queda do Império
Otomano, o crescimento do Império Britânico e a divisão do mapa do Oriente
Médio entre as grandes potências da época, que eram a Grã-Bretanha e
a França. As pessoas não sentiam segurança, nem liberdade, nem o poder
de viver bem e de ganhar a vida. Como os libaneses tinham essa cultura
de comerciante nômade, foi um prato cheio para que eles, de fato, saíssem
em busca de outras pátrias para que pudessem viver. E a maioria achou
no Brasil um belo lugar para isso. Porque o Brasil, naquele mesmo período,
estava entrando em uma fase de querer crescer, de abrir as portas para
receber imigrantes. Exatamente no início deste século, quando entra
a maior parte das colônias italianas, espanholas, e também os árabes.
Então isso expõe mais ou menos a situação naquela época. Depois da Segunda
Guerra Mundial, com a queda do Império Britânico e o surgimento do Império
Norte-Americano, a mudança no mapa geopolítico da região, a criação
do Estado de Israel em 1948, o conflito que surge a partir dessa criação
do Estado de Israel em um país chamado Palestina, começa um movimento
de libertação muito forte e iniciam as pressões internas para expulsar
os jovens e, ao mesmo tempo, estímulos externos para esses profissionais
e pesquisadores saírem.
Com
Ciência - Estima-se que a população árabe e seus descendentes seja de
cerca de 6 milhões, no Brasil. O senhor acha que os hábitos e costumes,
incluindo as línguas, mantêm-se entre essas populações?
Mohammed - Quando você pega os árabes de modo geral, a maior parte
dos imigrantes, principalmente do início do século, principalmente os
comerciantes, não tinham uma qualificação intelectual expressiva. Tinham
mais o espírito corajoso para entrar numa área nova e trabalhar para
ganhar o dinheiro. Eles carregavam uma certa cultura, a cultura popular.
Mas traduziam essa cultura popular em uma cultura intelectual. Não eram
multiplicadores da cultura. Então, para eles, era muito difícil manter
essa cultura. O máximo que eles podiam manter era a esfiha, o kibe,
aquelas coisas das quais dependiam para sobreviver. Mas muita coisa
da cultura árabe eles não conseguiam trazer para cá, inclusive no campo
da espiritualidade. Espiritualidade é um aspecto da cultura, mas necessita
de uma habilidade, uma riqueza, uma capacidade de comunicação, vocabulário,
um nível intelectual forte para conseguir explicar e transmitir. Aquele
grupo, na época, não estava preparado para isto. Por isso, o movimento
migratório no final do século passado perdeu muito de sua cultura. Das
etnias árabes que vieram para o Brasil os árabes-cristãos eram a maioria
absoluta. Mas o cristianismo árabe é ortodoxo. E aqui a Igreja ortodoxa
somente hoje está começando a aparecer. Mas no final do século passado
e no início do século praticamente não existia. Então o árabe que veio
para cá exercia a sua espiritualidade e foi se deslocando para não ser
mais ortodoxo. Tornou-se então cristão católico, não mais ortodoxo.
Com isso perdeu a sua cultura espiritual, embora dentro do cristianismo.
Só agora, nas últimas décadas, que começa um movimento de imigrantes
mais intelectualizados, que conseguem manter a cultura. O hábito da
cultura espiritual religiosa, acabou se adaptando à nova realidade.
A minoria muçulmana que veio também naquele período, sumiu totalmente.
Só começou a voltar a partir da década de 50, com a vinda dos imigrantes
qualificados.
Com Ciência – E na sua experiência como professor universitário,
diretor de instituto e membro da alta administração da universidade,
que desafios mais fortes o senhor enfrentou e enfrenta?
Mohammed – Quando cheguei no país, um brasileiro me disse que eu
teria que trabalhar muito mais que os brasileiros trabalham, porque
dariam preferência ao trabalhador brasileiro. Isso ficou na minha cabeça
até hoje. Mas, quando eu comparo a minha vida aqui com a vida de outros
imigrantes árabes em outros países, acredito que tive muita sorte. Estou
numa sociedade realmente onde eu tenho que agradecer a Deus. Porque
aqui eu não sofri problemas que eles sofreram e continuam sofrendo em
outros países, como preconceitos e discriminação racial. Pode até haver
algumas manifestações de preconceito e discriminação racial no Brasil,
mas não chegam ao estado dramático que tem, por exemplo, nos Estados
Unidos, na Alemanha, na Inglaterra, no Canadá. Como conseqüência disso,
no Brasil, os muçulmanos andam totalmente despercebidos, enquanto que,
nos Estados Unidos, são muito visíveis. Devido ao preconceito que sofrem
nos Estados Unidos esses imigrantes se fecham, se unem, se individualizam.
O imigrante árabe está totalmente integrado à sociedade brasileira.
Diferente, por exemplo, do imigrante árabe nos Estados Unidos.
Com Ciência - O senhor é imigrante diferenciado. Como é, de modo
geral, a situação das famílias árabes ou descendentes no Brasil?
Mohammed - Tem uma questão bonita do imigrante árabe no Brasil.
É preciso diferenciar o imigrante que chegou aqui de seus descendentes.
Os imigrantes árabes que chegaram aqui, normalmente vieram para fazer
comércio, não tinham uma cota intelectual expressiva. Muitos deles nem
sabiam ler ou escrever, comunicavam-se horrivelmente, mas também não
precisavam de mais nada. Não tinham nenhuma instrução, mas tinham uma
consciência da importância da educação. Então os filhos deles, de todos,
foram universitários. Todos os filhos dos árabes no Brasil estudaram.
Com muito sacrifícios, mas todos estudaram. Todos fizeram faculdade.
Desse modo, os árabes contribuíram para o Brasil não pelo trabalho que
faziam como comerciante, mas pelo investimento deles em seus filhos,
para fazer deles cidadãos altamente qualificados, para servirem à sociedade.
Com
Ciência - O senhor mantém um convívio regular com a comunidade árabe
de Campinas e região?
Mohammed – Sim. Nós formamos, em Campinas, uma pequena comunidade
muçulmana de 30 famílias e construímos uma mesquita, que já tem mais
de 15 anos, no Bairro São Quirino. São sírios, libaneses, palestinos,
sul-africanos, líbios. Minha família é a única de procedência egípcia.
Na comunidade, falamos inglês, árabe e português. Os filhos desses imigrantes,
todos eles, falam português.
Com Ciência – Como é que o senhor concilia a cultura em que
se formou com esta que adotou e que, certamente, já o adotou?
Mohammed - Eu me considero hoje um grande híbrido. Consegui guardar
dentro de mim o que tem de positivo da cultura anterior e o que tem
de positivo na cultura atual porque também ambas têm pontos negativos.
Estou numa posição bastante favorável que eu escolhi, então consigo
manter da cultura egípcia aquilo que é bom, e aquilo que é viável para
a situação brasileira. E consegui absorver da cultura brasileira aquilo
que não entra em choque com minha cultura original e que me dá condições
de ter uma vida respeitada aqui no país. Algumas coisas abandonei, quando
vi que não cabia. A minha esposa foi aluna na Universidade de Alexandria.
Portanto ela tem instrução para acompanhar exatamente esse tipo de adaptação,
esse tipo de hibridização. Ela também tem o híbrido. A fase inicial
era isso: a fase de experimentação. Um exemplo disso, é que na cultura
egípcia não tem bebidas alcoólicas.
Com
Ciência – Como o senhor, que é um militante de esquerda, concilia
a tradição religiosa de sua formação com
as suas idéias políticas?
Mohammed - Parece que há a idéia de que a religiosidade
enrta em choque com uma ideologia de esquerda. Algumas pessoas acham
que ser de esquerda significa ser ateu, mas não é assim.
O militante de esquerda pode ser ateu como pode ser muito religioso.
O campo ideológico-político não tem nada a ver
com o campo ideológico-espiritual.