Para
brasileiro ver
O
professor Peter Fry nasceu antropólogo, se para tanto é preciso, entre
outras aptidões, a do persistente estranhamento em relação a si mesmo,
à cultura em que se educou e formou, na Inglaterra e nos países em que
viveu, adotando-lhes criticamente os costumes, estudando-os, produzindo
textos primorosos de análise e interpretação e sendo, enfim, adotado,
ele próprio, por esses países.
O caso do Brasil foi mais definitivo, pois vindo para a Unicamp ainda
jovem doutor, transcorridos alguns anos, naturalizou-se brasileiro.
Depois
de retornar à África e lá permanecer por um bom período, ei-lo que volta
ao Brasil, desta vez para o Instituto de Filosofia e Ciencias Sociais,
o IFCS, na UFRJ, após ter passado, quando saiu de Campinas, um tempo
no Museu Nacional. Peter Fry continua no IFCS, no Rio de Janeiro, mas
continua também na África, na Inglaterra, no Brasil.
Com
Ciência - Você está no Brasil há trinta anos. Veio para cá como
jovem professor para criar o Departamento de Antropologia da Unicamp,
e ficou, tendo, inclusive, se naturalizado brasileiro. Conte para nós
os motivos e as motivacões que o levaram a essa decisão.
Peter
Fry
- São várias decisões. De vir ao Brasil. Aventura irresponsável da juventude.
Mal adaptado a Londres depois da pesquisa de campo na África. Falava
um pouco de português. Imaginava uma confluência de África e Portugal,
duas regiões de que gostava. Tornar-me brasileiro, foi quando percebi
que a minha carreira estava se desenvolvendo aqui mesmo. Queria compartilhar
os mesmos direitos e obrigações dos meus amigos e colegas.
Com
Ciência - Você já havia feito um movimento de migração, quando viveu
no Zimbabwe (África) e defendeu sua tese de doutoramento na Universidade
de Londres, naquele país. O que o levou a optar pelo Brasil e não pela
África, como sua segunda nacionalidade?
Peter Fry - Queria de fato trabalhar na África. Mas como a Rodésia
não era ainda Zimbabwe, governado, então, por um governo ilegal de minoria
branca, não havia como ir para lá. O Brasil surgiu como opção, num momento
de bastante tristeza em Londres.
Com
Ciência - Há alguns anos atrás, você publicou um importante livro de
ensaios chamado, com seu bom humor britânico, Para Inglês Ver.
O Brasil continua "para inglês ver", ou teria mudado desde então? Ou
teria mudado o inglês, isto é, o autor?
Peter Fry - Que pergunta! A resposta seria mais um livro que gostaria
de escrever. Mas, breve: os dois mudaram evidentemente. Eu, mais velho,
mais desconfiado, mais sentimental, vejo algumas coisas de maneira distinta,
sobretudo a questão racial. Naquela época, vi a democracia racial como
cruel mentira propalada por uma elite branca astuta. Isso não dá agora
para sustentar. As relações raciais no Brasil têm características distintas
das do resto Do mundo, sobretudo os EUA. Por achar isso, ganhei o epíteto
de neo-freyreano de alguns. Aceito com orgulho, não o Freyre admirador
de Salazar (!), mas o Freyre da interpretação fina e ousada do Brasil.
Mas o Brasil também mudou, sobretudo nos últimos poucos anos de estabilidade
de moeda. Agora é possível falar de prestação de contas, brigar por
valor, reconhecer as vantagens da maior transparência nas coisas públicas.
Finalmente, também parece que estamos saindo do nacionalismo primitivo
que fez com que não pudéssemos importar computadores, sendo obrigados
a comprar geringonças nacionais a preços absurdos para enriquecer a
"burguesia nacional". Naquela época de reserva de mercado, um muambeiro
de computadores me disse: "Não temos condições neste momento de inventar
computadores nem de fabricá-los. Mas temos a inteligência e know how
para desmontar o que importamos e entender tudo rapidamente". Ele vendia
computadores contrabandeados a preços mais baixos e com assistência
técnica. O Brasil ficou para trás na mais importante revolução tecnológica
de todos os tempos. Agora está melhor, mas ainda tem um bando de velhos
e jovens,que são de fato velhos, com vontade de negar a existência do
Oceano Atlântico.
Com Ciência - Você se sente hoje totalmente integrado à sociedade
e à cultura Brasileiras ?
Peter Fry - Não!!!!! Mas também não me sinto totalmente integrado
em lugar nenhum. Acho que nasci para gostar dessa posição de dentro
e fora, ao mesmo tempo. Mas me dou muito bem aqui. Acho que domino grande
parte dos códigos sem ter que pensar. E apreendi com o meu amigo Carlos
Vogt tentar ler, nas entrelinhas, a minha interlocução com o Brasil
e com os brasileiros.
Com Ciência - O que a África, em especial Moçambique, país com o
qual você mantém relações acadêmicas e institucionais importantes, significa
para você, para além dos aspectos acadêmicos e profissionais aí envolvidos?
Peter Fry - Outra pergunta que exige um livro. Nasci no centro de
um império, no momento do início da sua decadência. Para nós crianças,
as colônias eram, ainda, fato de orgulho. E sentimos responsabilidade.
A África sempre exerceu um fascínio, ou por causa das aulas na escola,
ou pela literatura, sei lá. Mas agora este fascínio começa trazer mais
tristeza que esperança.
Com
Ciência - Você se sente como um imigrante? Mais aqui, mais na Inglaterra
ou mais na África?
Peter Fry - Na África me sinto imigrante mesmo, porque sou branco
e sou visto como branco, sobretudo nas terras que os ingleses dominaram.
Sou visto como algo inerentemente (biologica e mentalmente) difererente.
Aqui, às vezes, até passo por brasileiro (raramente; é questão tanto
de postura quanto de sotaque), mas essa postura "inglesa" impõe uma
distância. Na Inglaterra, passo bem por inglês mas cometo gafes quando
faço coisas brasileiramente. Ou seja, não é uma questão de mais ou menos
imigrante. Cada situação produz um frisson específico, mas fazem viver,
do meu modo!
Com
Ciência - Depois desses longos anos de permanência no Brasil, o que
é que lhe causa maior estranheza na cultura do Brasil?
Peter Fry - O que me causou e continua causando estranheza (poderia
ser decepção também) é o otário, que, por definição é o inglês (para
inglês ver...) Achei extraordinário encontrar uma sociedade que valoriza
a contravenção e esperteza tão publica e abertamente. Ver os nossos
deputados discutirem o grau aceitável de nepotismo, achei muito, muito
estranho. Não quero dizer que o nepotismo e a corrupção são estranhas,
não são. É a admiração que elas despertam que me estranha. Também não
quero dizer que todos nós aderimos a este valor sempre. Mas de vez em
quando... Isso levanta um dilema: os encantos do Brasil iriam embora
se o jeitinho deixasse de existir?