CARTA AO LEITORNOTÍCIASENTREVISTASREPORTAGENSRESENHASCRÍTICA DA MÍDIALINKS DE C&TCADASTRE-SE NA REVISTABUSCA POR PALAVRA-CHAVECARTA AO LEITORNOTÍCIASENTREVISTASREPORTAGENSRESENHASCRÍTICA DA MÍDIALINKS DE C&TCADASTRE-SE NA REVISTABUSCA POR PALAVRA-CHAVE
 

Resenhas

Corações Sujos
Fernando Morais

O Espaço da Diferença
Antonio A. Arantes (org.)

Teresina e seus Amigos
Antônio Cândido

Filmes

Terra Estrangeira
Walter Salles Jr. e Daniela Thomas

Outras resenhas

Envie sua resenha
rae34@uol.com.br


 
 


















 

Terra Estrangeira.
Dir. Walter Salles Jr. e Daniela Thomas
Brasil, 1995.

por - Igor José de Renó Machado e Gustavo Adolfo Pedrosa Daltro Santos [1]

As fronteiras de Terra Estrangeira

Depois de filmar o criticado A Grande Arte e antes do sucesso alcançado com Central do Brasil, Walter Salles Jr. dirigiu uma belíssima história em que trata da solidão vivida pelos imigrantes. Em Terra Estrangeira vemos a história de Paco (Fernando Alves Pinto) e sua mãe espanhola (Laura Cardoso), que desejam conhecer a terra de seus antepassados. Sem dinheiro após o confisco promovido por Collor, Paco aceita entregar um pacote misterioso - a pedido do também misterioso Igor (Luís Melo)-, em Portugal em troca do custeio da viagem. Após perder o pacote ele encontra-se com a Alex (Fernanda Torres), brasileira que trabalha como garçonete em Portugal e que vive com Miguel (Alexandre Borges), um músico-contrabandista viciado em heroína. Em fuga para a Espanha, Paco, é perseguido por bandidos interessados atrás do pacote, que trazia um violino com diamantes escondidos.

Esse filme, em que Salles divide a direção com Daniela Thomas, traz as marcas de seu tempo. Tempo em que, possivelmente, era mais fácil entrever as contradições de um mundo cada vez mais integrado, mas com pessoas cada vez mais desenraizadas. Desenraizadas não de uma nacionalidade ou de outra (esse tipo de raíz que se imagina), mas da dignidade, da cidadania, e da relação com o outro. Em 1990, Collor e sua equipe econômica haviam acabado de confiscar a vida de milhões de brasileiros, para melhor se "integrar" num sistema econômico mundializado. Portugal, a terra em que se desenrola boa parte da intricada trama do filme, ainda estava por passar por rituais de "europeidade" como "Lisboa - Capital Européia da Cultura - 1994", a "Expo '98" e "Porto - Capital Européia da Cultura - 1999". Tampouco fazia parte de um "espaço Schengen" de fronteiras interiores abertas, na Europa, à circulação livre. Nesses cenários, vemos transitar - o filme se compõe de movimentos externos muito marcados - personagens que, profundamente afetados pelos novos modos de exclusão social, procuram nichos de enraizamento.

Mais do que o constante ritmo de fuga e desesperança, porém, o que suscita a atmosfera de desolação (ainda que, por vezes, frenética), que impera quase todo o tempo, é a inexistência do familiar, do semelhante - exceção feita à relação entre Alex e Paco, mais perto do fim. Não se trata, vale notar, somente de uma (des)identidade puramente cultural, ou psicológica [2], mas de uma alteridade ameaçadora, hierarquicamente imposta desde o Brasil. Nesses termos, pode-se dizer que o filme nos sugere um comentário sobre situações de relações sociais desiguais e violentas, postas em termos de centros e periferias de poder. As fronteiras, (re)colocadas por tais relações de poder, são tanto nacionais, intra-nacionais, quanto supra-nacionais. Brasil, Portugal e Europa aparecem como os contextos em que as desigualdades se dão.

Senão, vejamos. Somos tomados, durante o desenrolar do filme, por uma constante sensação de periferia. O Brasil como periferia da economia mundial, Paco como imagem do próprio povo brasileiro na periferia do Brasil, Portugal como periferia da Europa, um contrabandista luso-brasileiro (Miguel) como periferia do tráfico internacional de jóias. Além disso, a "casa" da mãe do Paco (e dele, por extensão ou por falta de escolha, num Brasil em que lhe roubaram as economias) é o País Basco; Igor se encontra numa "falsa modernidade de janotas incultos" e, como se verá mais tarde, na periferia de uma Europa criminal, de contrabando. Por seu lado, Miguel morre quando tenta ir para "a Europa", isto é, sair de Portugal [3] com dinheiro roubado dos contrabandistas. Vemos que cruzar certas fronteiras é mortal - neste caso, a fronteira pode ser a portuguesa, mas a fronteira crítica é, com certeza, a dessa "vida de contrabando", estrangeira. Em outro momento do filme, a fronteira que traz o sonho de liberdade para Alex e Paco é o mar, o barco, a ponta da Europa, de onde os portugueses saíram para invadir outras terras. Ou, talvez, o mar seja o lugar onde esse barco encalha, numa das imagens mais belas do filme.

De fato, mais do que dados de uma realidade mapeada em livros, as fronteiras que vemos aqui limitam a passagem e delimitam espaços sociais hierarquicamente organizados. No filme, imagens diversas traduzem esses espaços, a partir de um ou mais pontos de vista determinados. Por exemplo, Lisboa é a terra em que essa condição do Brasil (terra de exilados) é explicitada para os brasileiros, onde eles se vêem cada vez mais estrangeiros pelo próprio sotaque. Entretanto, não é a pura diferença que ofende, como Alex parece crer, mas o contexto em que essa diferença adquire sentido. "Estrangeiros", ou excluídos de uma vida que gostariam de ter, os brasileiros em Portugal (como Miguel e Alex, e mais tarde Paco) vão se perceber estrangeiros de fato, através de imagens negativas e estereótipos impostos, como: "brasileiro só toca samba e pagode" (no Café Ritz), "passaporte brasileiro não vale nada" (no episódio da venda do passaporte), "país de merda" (na transação de Igor com os contrabandistas franceses, ou belgas), os brasileiros violentos, perigosos, exóticos (para a personagem Loli e entre os angolanos).

Terra Estrangeira parece mais uma descrição antropológica - que usa da estética do filme noir e do documentário - de realidades duras e contraditórias. O poder das metáforas de Terra Estrangeira parece vir do próprio fato de que os personagens "estrangeirados" são excluídos por estruturas sociais e imaginários hegemônicos, cuja lógica é opressora, alienadora. Paco e Alex não fogem do mal que há dentro dos dois, mas buscam uma saída de males que lhes são impostos ao longo da história.

O filme demonstra-nos duas imagens bastante fortes para pensarmos uma metáfora em relação à experiência de imigração brasileira. As imagens se relacionam, construindo uma metáfora criativa que pode ilustrar o processo de migração mais geral. Como apontou Avellar (1996) [4], uma das imagens do filme, a do navio abandonado numa praia estrangeira reflete a "solidão cultural" pela qual se dá a experiência migrante, essa última condenada a encarar o peso das permanências culturais (Hall 1996) [5]. A imagem só faz sentido ao se contrapor a sua oposta, quando o carro dirigido pela personagem Alex, com o companheiro Paco quase morto ao seu colo, rompe a fronteira portuguesa/espanhola.

Como no relacionamento dialógico mencionado por Hall (1996), identidades culturais podem ser vistas em termos de cultura compartilhada e permanências, mas também são vistas através dos pontos críticos de diferença "profunda e significante que constituem o que nós realmente somos" (Hall 1996:69). Entre as permanências e singularidades históricas, a "identidade cultural não é jamais uma essência fixa que se mantenha imutável, fora da história e da cultura"(idem:70). Assim, as identidades culturais podem ser pensadas como "enquadradas por dois eixos ou vetores em ação simultânea: o vetor de similaridade e continuidade; e o vetor de diferença e ruptura. As identidades (...) têm de ser sempre pensadas nos termos do relacionamento dialógico entre esses dois eixos. O primeiro nos dá certo embasamento, certa continuidade com o passado. O segundo nos lembra que o que partilhamos é precisamente a experiência de uma descontinuidade profunda (...)" (ibidem).

Terra Estrangeira demonstra uma metáfora para todas as fronteiras, para todas as rupturas e diferenciações culturais, arrebentadas pelo movimento histórico. Continuidade e ruptura no contexto imigrante são pensados com um acréscimo de "complexidade teórica" bem captadas pelas imagens do filme: o fato de falarmos de pessoas recentemente imigradas para o país que representa o lugar da "presénce Européenne" (mesmo que falemos de um colonizador semiperiférico), que "interrompe a inocência" de todo o discurso da 'diferença', ao introduzir a questão do poder" (Hall 1996:73). Migrações para o país com o qual dividimos similaridades transnacionais, como lembra Boaventura Santos [6]. Para o autor, compartilhamos da mesma matéria cultural, a mesmos pertencimentos, ao contrário da situação caribenha analisada por Hall, onde a diferenciação entre ingleses e os povos colonizados sempre se manteve. Assim, falamos de permanências e continuidades que são compartilhadas com a própria cultura de nossos ex-colonizadores. Basta lembrarmos que a indiferenciação colônia/metrópole chegou ao ponto da colônia virar metrópole durante a invasão napoleônica.

[1] Antropólogos e pesquisadores do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI).

[2] Questiona-se aqui, de fato, a possibilidade do "puramente cultural ou psicológico".

[3] Portugal, atualmente, já se imagina mais como "Europa" do que foi há tempos atrás. Principalmente ao longo da década de 90, eventos como a Expo '98 fizeram de Lisboa uma legítima capital européia. Isso, no filme, não é tão claro, como mostram os diálogos do Café Ritz, e a passagem na fronteira, mas deve-se levar em conta que em 1990 ainda existiam fronteiras internas guardadas entre os países que, só mais tarde, formariam o espaço integrado do Acordo de Schengen.

[4] AVELLAR, José Carlos. Introdução. In CARVALHO, Walter. Terra estrangeira. Relume Dumará: Rio de janeiro, 1997. (7-11)

[5] HALL, Start. Identidade cultural na diáspora. In Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. nº 24, 1996.

[6] SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice, O social e o político na pós-modernidade. Porto:Afrontamento, 1994.

Atualizado em 10/12/00
http://www.comciencia.br
comciencia@epub.org.br

© 2000 
SBPC/Labjor

Brasil