A Física no final do século XIX: modelos em crise
   
 
O salto cântico da Física:
Carlos Vogt
Física Quântica, o que é e para que serve:
Almir Caldeira

Ondas estacionárias circulares:
Luís Ferraz Netto

A interpretação da Mecânica Quântica:
Silvio Seno Chibeni

A Física no final do séc. XIX:
Roberto Martins

Max Planck e o início da teoria quântica:
Jean-Jacques de Groote
Teoria Quântica:
Jean-Jacques de Groote

A descoberta da estrutura atômica:
Afonso de Aquino

Caos e Mecânica Quântica:
Ozorio de Almeida e Raúl Vallejos
Digressões sobre a importância da Ciência Básica:
Peter Schulz e Marcelo Knobel

Dos transistores aos computadores:
Anna Paula Sotero

Quântica e a ciência dos materiais:
Alexandre Barros

O laser e a pesquisa básica:
Elza Vasconcellos

Consciência quântica ou consciência crítica?:
Roberto Covolan

Mecânica quântica e interpretação na mídia:
Ulisses Capozoli

Einstein e a Mecânica Quântica:
David Martinez

Poema
 

Roberto de Andrade Martins

Como era a Física do século XIX?

As áreas da Física que chamamos "Física Clássica" e que compreendem a mecânica, a óptica, a termodinâmica e o eletromagnetismo já haviam alcançado um grande aperfeiçoamento no século XIX. Quase tudo aquilo que se ensina sobre Física no segundo grau já havia sido descoberto naquela época - e, é claro, em um nível mais elevado do que aquilo que se ensina nos colégios.

O desenvolvimento da mecânica clássica tinha atingido uma grande precisão, permitindo o cálculo tão exato dos movimentos dos planetas, que qualquer pequena diferença entre a teoria e as observações precisava ser considerada seriamente. Foi investigando diferenças minúsculas desse tipo que a astronomia do século XIX descobriu a existência do planeta Netuno: sua existência foi prevista matematicamente por Urbain Le Verrier, e depois ele foi observado (em 1846) por Johann Gottfried Galle.

A mecânica do século XIX conseguia explicar movimentos complexos, como os dos piões e giroscópios; estudou os movimentos de líquidos e gases; e desenvolveu técnicas matemáticas muito sofisticadas com a chamada "mecânica analítica", que utiliza um formalismo diferente do que existia na época de Newton.

Sob o ponto de vista da tecnologia, esses conhecimentos foram aplicados no desenvolvimento de novos meios de transporte - grandes navios, submarinos, balões dirigíveis e até os precursores da asa-delta.

A física ondulatória (abrangendo a óptica e a acústica) também parecia ter atingido uma grande perfeição durante o século XIX. Até o século XVIII, a opinião predominante era a de que a luz era constituída por pequenas partículas muito rápidas que saíam dos corpos luminosos. No entanto, no início do século XIX foram estudados fenômenos de difração e interferência, que só podiam ser explicados supondo-se que a luz fosse constituída por ondas. Graças principalmente aos estudos de Augustin Fresnel e Thomas Young, os físicos foram se convencendo de que era necessário abandonar a teoria corpuscular da luz, e o modelo ondulatório se tornou uma unanimidade. Para o estudo dos fenômenos ondulatórios da luz, foram desenvolvidos métodos matemáticos bastante complicados.

Foi também durante o século XIX que foram estudadas as radiações infravermelha e ultravioleta, duas radiações semelhantes à luz, porém invisíveis. Assim, a óptica se ampliou, passando a abranger não apenas aquilo que vemos, mas também certos tipos de "luz invisível".

Além dos estudos puramente científicos, o estudo da luz levou a importantes inventos, durante o século XIX. Primeiramente, a invenção da fotografia por Niepce e Daguerre, permitindo a fixação de imagens através de meios químicos. As primeiras fotografias exigiam tempos de exposição enormes (alguns minutos), mas depois, com o gradual aperfeiçoamento técnico, foi possível produzir fotos "instantâneas", e por fim fazer seqüências de fotografias de objetos em movimento. Daí surgiu o cinema, na última década do século XIX.

Antes do final do século já existiam métodos de produzir fotografias coloridas. Um físico francês, Gabriel Lippmann, utilizou o princípio de interferência luminosa em películas finas e conseguiu produzir fotografias em cores que eram, na verdade, precursoras dos atuais hologramas de luz branca.

O estudo do calor e de suas aplicações teve também um enorme desenvolvimento nessa época. Já no século anterior haviam começado a se difundir as máquinas a vapor, mas foi durante o século XIX que esses tipos de máquinas foram aperfeiçoadas e utilizadas em grande escala, produzindo a chamada "revolução industrial". Além de seu uso em indústrias, as máquinas a vapor foram aplicadas ao transporte (navios, trens, e até automóveis a vapor).

Os cientistas estudaram a conversão do trabalho em calor e do calor em trabalho, propuseram a lei da conservação da energia, determinaram as leis que regem o rendimento de máquinas térmicas e estabeleceram o conceito de entropia e a segunda lei da termodinâmica.

A eletricidade e o magnetismo, que antes de 1800 eram apenas fenômenos curiosos sem grande importância, também sofreram um importante avanço durante o século XIX. A invenção da pilha elétrica por Alessandro Volta permitiu pela primeira vez a produção de correntes elétricas duradouras e de grande intensidade, abrindo o caminho para estudos completamente novos - como a descoberta da eletrólise. Nas primeiras décadas do século XIX, Oersted e Faraday descobriram a possibilidade de produzir efeitos magnéticos utilizando a eletricidade, e vice-versa, nascendo assim o eletromagnetismo. Houve um intenso estudo experimental dessa nova área, seguido por desenvolvimentos teóricos que culminaram com a teoria eletromagnética de Maxwell.

Embora inicialmente fosse apenas um assunto para pesquisa científica, o eletromagnetismo logo levou a resultados práticos importantes. Foram construídos dínamos que produziam eletricidade a partir do movimento, e nas duas últimas décadas do século XIX foram construídas grande usinas termoelétricas para geração de eletricidade. Dessa forma, o uso doméstico e industrial da eletricidade começou a se tornar possível. As lâmpadas elétricas substituíram gradualmente os lampiões e a iluminação a gás. Os motores elétricos começaram a ser utilizados para várias finalidades, como por exemplo nos primeiros elevadores. A eletricidade também revolucionou as comunicações, primeiramente através do telégrafo (que já permitia a troca de mensagens de um continente para outro) e depois pelo telefone. Antes de 1900 já era possível fazer ligações interurbanas entre muitas cidades na Europa e nos Estados Unidos.

As grandes sínteses

Se compararmos a Física do final do século XIX com a de cem ou duzentos anos antes, poderemos considerar que o avanço científico havia sido espantoso. Os maiores sucessos não foram a descoberta de novos fenômenos, mas sim resultados teóricos que revolucionaram a visão sobre os principais fenômenos físicos. O eletromagnetismo conseguiu inicialmente unir duas áreas de estudo que eram totalmente separadas antes - a eletricidade e o magnetismo. Essa síntese foi apenas um primeiro passo, pois o estudo dos fenômenos eletromagnéticos levou, na segunda metade do século XIX, à previsão de ondas eletromagnéticas com a mesma velocidade da luz. Essas ondas foram depois criadas experimentalmente por Hertz, e confirmou-se que elas tinham propriedades muito semelhantes à das ondas luminosas. Concluiu-se então que a luz era um tipo especial de ondas eletromagnéticas, de alta freqüência, e assim a óptica passou a ser uma parte do eletromagnetismo.

O desenvolvimento da termodinâmica também levou a uma outra síntese. Embora os fenômenos térmicos possam ser estudados sob o ponto de vista puramente macroscópico (daquilo que se observa e mede), os físicos começaram a imaginar modelos microscópicos para explicar os fenômenos gasosos e assim nasceu a teoria cinética dos gases. Nessa teoria, a temperatura passa a ser uma indicação da energia cinética média das moléculas do gás e é possível relacionar o calor específico dos gases à sua composição molecular. No final do século XIX foi também desenvolvida a mecânica estatística, que aplicou leis probabilísticas ao estudo dos movimentos das partículas da matéria, permitindo explicar a segunda lei da termodinâmica a partir de um modelo mecânico. Conseguiu-se, assim, uma síntese entre a mecânica e a termologia.

Portanto, ao final do século XIX, os físicos podiam perceber grandes avanços e importantes sucessos. Novos fenômenos haviam sido descobertos, novas leis haviam sido estabelecidas, e havia resultados teóricos novos muito gerais. A eletricidade e o magnetismo haviam se unido, depois o eletromagnetismo e a óptica haviam se fundido, e a mecânica e a termodinâmica também estavam produzindo uma síntese teórica.

O fim da Física?

Diante dos grandes sucessos científicos que haviam ocorrido, em 1900 alguns físicos pensavam que a Física estava praticamente completa. Lord Kelvin - um dos cientistas que havia ajudado a transformar essa área - recomendou que os jovens não se dedicassem à Física, pois faltavam apenas alguns detalhes pouco interessantes a serem desenvolvidos, como o refinamento de medidas e a solução de problemas secundários. Kelvin mencionou, no entanto, que existiam "duas pequenas nuvens" no horizonte da física: os resultados negativos do experimento de Michelson e Morley (que haviam tentado medir a velocidade da Terra através do éter) e a dificuldade em explicar a distribuição de energia na radiação de um corpo aquecido.

Foram essas duas "pequenas nuvens", no entanto, que desencadearam o surgimento das duas teorias que revolucionaram a Física no século XX: a teoria da relatividade e a teoria quântica.

A visão otimista de Lord Kelvin, compartilhada por muitos físicos da época, não levava em conta que existiam, na verdade, muitos problemas na física do final do século XIX. No entanto, a maior parte dos cientistas pensava apenas nos sucessos, e não nessas dificuldades. Não percebiam a existência de grande número de fenômenos inexplicados e de problemas teóricos e conceituais pendentes.

As descobertas experimentais do final do século

Nas últimas décadas do século XIX foram estudadas descargas elétricas em gases rarefeitos. Estudando os fenômenos que ocorriam a pressões muito baixas, William Crookes descobriu os raios catódicos. Em 1895, investigando os raios catódicos, Röntgen descobriu os raios X. Foi uma descoberta inesperada, pois nenhuma teoria previa a existência de radiações invisíveis penetrantes como aquelas. Os raios X logo foram empregados na medicina e se mostraram muito úteis, mas não se sabia exatamente o que eles eram. Alguns pensavam que se tratava de uma radiação semelhante ao ultravioleta, outros imaginavam que eram ondas eletromagnéticas longitudinais, outros pensavam que eram partículas de alta velocidade. O que eram os raios X, afinal? Durante mais de 10 anos, eles permaneceram como uma radiação misteriosa.

O estudo dos raios catódicos levou a uma outra descoberta importante. J. J. Thomson mostrou que eles eram constituídos por partículas com carga elétrica negativa (os elétrons), e que eles pareciam sempre iguais, qualquer que fosse o gás utilizado nos tubos de raios catódicos. Mas que relação essas partículas tinham com os átomos da matéria? Até essa época, ninguém havia suspeitado que pudessem existir coisas menores do que os átomos que os químicos estudavam. Os elétrons constituíam um problema no estudo da constituição da matéria.

Também no final do século XIX os estudos de Henri Becquerel e do casal Curie levaram à descoberta da radioatividade e de estranhos elementos que emitiam energia de origem desconhecida. Ninguém sabia o que produzia esses fenômenos, e apenas vários anos depois é que se começou a desvendar a natureza da radioatividade. O que eram as radiações emitidas pelos corpos radioativos? De onde saia sua energia, que parecia inesgotável?

O estudo da luz e das novas radiações havia levado a muitos sucessos, mas também trouxe grandes problemas. O espectro da luz do Sol, quando analisado com um espectrógrafo, mostra linhas escuras (descobertas por Fraunhofer). Depois se compreendeu que cada elemento químico em estado gasoso é capaz de emitir ou absorver luz com um espectro descontínuo de raias, e que o espectro do Sol é produzido pelos gases que o cercam. A espectroscopia se tornou um importante método de identificação dos elementos, e passou a ser um instrumento fundamental na química. Mas qual era a causa física dessas raias? De acordo com a teoria ondulatória da luz, cada linha do espectro deveria estar relacionada a algum fenômeno de oscilação regular, de uma freqüência exata, capaz de emitir ou absorver aquela radiação. O que existia, nos átomos, que pudesse produzir isso?

Durante a última década do século descobriu-se que os raios X e a radiação ultravioleta podiam descarregar eletroscópios. Em alguns casos, a luz visível também podia produzir esse "efeito fotoelétrico", mas o fenômeno dependia da freqüência da luz e do tipo de metal utilizado. Não se compreendia como isso ocorria, nem por que motivo alguns tipos de luz não conseguem produzir o efeito fotoelétrico. Compreendeu-se que, no efeito fotoelétrico, a radiação arranca elétrons dos metais. Esse efeito deveria depender da intensidade da luz (energia), e não da cor ou freqüência. Mas não era isso o que acontecia.

Problemas teóricos

A teoria cinética dos gases havia sido um grande sucesso. No entanto, no final do século XIX, não se compreendia ainda muita coisa sobre a estrutura da matéria. O único estado da matéria para o qual havia uma boa teoria era o gasoso. Era incompreensível como os átomos podiam formar corpos sólidos, pois sabia-se (pelo eletromagnetismo) que era impossível produzir um sistema estável de partículas em repouso que se mantivesse apenas por forças eletromagnéticas. Existiriam outras forças desconhecidas agindo dentro da matéria?

A própria produção de moléculas era um mistério. Os átomos imaginados pelos químicos eram simples "bolinhas" sem estrutura. Como eles se unem? E por que motivo alguns átomos se unem entre si, mas não se unem com outros? Que tipos de forças são essas, que escolhem os parceiros? A Física não tinha resposta para essas perguntas.

Um dos grandes problemas teóricos no final do século XIX era compreender a interação entre matéria e radiação. Como funcionam os materiais luminescentes? Por que os sólidos emitem um espectro luminoso contínuo, e os gases emitem espectros descontínuos? Se a luz é uma onda eletromagnética, existem cargas elétricas vibrando dentro dos gases, para produzir a luz emitida? Por que essas vibrações possuem apenas certas freqüências, diferentes de um elemento químico para outro?

Outro problema teórico provinha da mecânica estatística. Nos gases, a energia cinética média das moléculas depende apenas da temperatura. Numa mistura de gases, a energia se distribui por todos os tipos de moléculas, e as moléculas de menor massa (como hidrogênio) têm maior velocidade média do que as de maior massa. A teoria previa, assim, uma "equipartição de energia" por todos os tipos de partículas e de movimentos possíveis. Ela previa bem o calor específico dos gases, supondo que as moléculas eram simples "bolinhas". Mas se os gases são capazes de emitir espectros luminosos descontínuos, essas moléculas devem ser sistemas complexos. Por que, então, a teoria funcionava?

Além disso, dentro de um recipiente com gás aquecido também existe radiação eletromagnética (térmica), e a energia deveria se distribuir entre as moléculas e as ondas luminosas. A teoria parecia indicar que iriam sendo criadas ondas luminosas, e que elas ficariam com toda a energia. No entanto, isso não acontecia. Por que?

Uma cavidade quente ("corpo negro") emite radiação com um espectro contínuo. A teoria previa que ela deveria emitir mais radiação de pequenos comprimento de onda (grande freqüência) do que de grande comprimento de onda. Mas não era isso o que se observava. Até Lord Kelvin havia notado que havia algum problema nisso.

Havia, na verdade, um enorme número de nuvens no horizonte da Física, uma verdadeira tempestade que ameaçava derrubar tudo. Era o otimismo, ou talvez o orgulho de saber muito, que impedia a maioria dos físicos de perceber como a situação era grave.

As tentativas de unificação

No final do século XIX, o estudo de alguns desses problemas e as tentativas de continuar a unificar a física levaram a problemas teóricos complicados, desencadeando a criação da teoria da relatividade e da teoria quântica. As dificuldades surgiram basicamente quando se procurou unificar a mecânica com o eletromagnetismo (daí surgiu a teoria da relatividade) e a termodinâmica com o eletromagnetismo (daí se originou a teoria quântica).

A teoria quântica, que é o tema que nos interessa aqui, surgiu da tentativa de compreender os problemas de interação da radiação com a matéria e solucionar alguns desses problemas. Procurando fundir a teoria eletromagnética da luz com a termodinâmica e a mecânica estatística, logo surgiram dificuldades que pareciam insuperáveis. O primeiro passo no desenvolvimento da teoria quântica foi dado por Max Planck, há cem anos - mais exatamente, em 1900. Nos primeiros anos do século XX, a teoria quântica começou a resolver diversos problemas: a radiação do corpo negro foi explicada por Planck; Einstein utilizou a teoria quântica para explicar o efeito fotoelétrico e o calor específico dos sólidos; e Bohr desenvolveu um modelo atômico quântico que explicou o espectro descontínuo emitido pelos átomos. Mas esses primeiros passos eram apenas um início. Apenas na década de 1920 a teoria quântica se transformou na Mecânica Quântica, com uma compreensão mais profunda da dualidade onda-partícula, graças a De Broglie, Schrödinger, Heisemberg, Bohr e outros. A teoria quântica nos permitiu compreender muitos fenômenos importantes, como a estrutura de átomos e moléculas (que forma a base de toda a química), a estrutura de sólidos e suas propriedades, a emissão e absorção de radiações. Apenas através da teoria quântica podemos compreender alguns dos mais importantes fenômenos da Física.

Roberto de Andrade Martins é professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp. Veja também o seminário do autor sobre o assunto.

   
           
     

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Atualizado em 10/05/2001

   
     

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