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Crescimento de instituições privadas de ensino superior é fenômeno mundial

As reformas nas instituições superiores de ensino têm sido amplamente discutidas em todo o mundo, principalmente a partir da década de 90. Tal período é associado à globalização do capital e à expansão do chamado “capitalismo financeiro”, em que a educação começa a ser tratada como um serviço, e não mais como um bem público que deve ser assegurado pelo Estado. Isso leva a um rápido crescimento das instituições privadas de ensino superior, principalmente nos países subdesenvolvidos, onde as deficiências no sistema de ensino superior são maiores. Neste processo ocorre a ativa participação de várias instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial e a Unesco, que têm ditado regras das reformas educacionais.

Um documento publicado pela Unesco é bem ilustrativo da polêmica que o tema desperta. O texto, de 2000, aborda alternativas de políticas educacionais e aponta rumos para a educação superior nos países subdesenvolvidos, ressaltando a necessidade de empréstimos voltados à educação primária e colocando o ensino superior em segundo plano. O trabalho, intitulado “A educação nos países em desenvolvimento: riscos e promessas”, foi produzido por um grupo de especialistas de 14 países, entre os quais estão Brasil, Estados Unidos, Palestina, África do Sul e Japão.

A “sugestão” da Unesco e do Banco Mundial é baseada no modelo educacional dos Estados Unidos, país com uma realidade sócio-econômica muito diferente da dos subdesenvolvidos. Para o pesquisador Valdemir Pires, da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), o modelo de “autonomia que se autofinancia”, imposto pelo Banco Mundial desconsidera a trajetória de cada país, de cada universidade, e impõe um modelo a ser seguido, sem considerar que “a situação atual de uma universidade é sempre fruto de uma trajetória passada”, ressalta.

Os Estados Unidos têm o ensino superior dividido entre universidades de pesquisa, universidades de ensino e pós-secundários profissionalizantes, todos sustentados por meio de mensalidades, parcerias com o mercado, verbas de fundações e subsídios públicos. Mas mesmo com essa diversidade de financiamentos, o ensino superior, baseado em (ciclos básicos) – um dos pontos presentes na atual (proposta de reforma universitária) do governo brasileiro – tem contado com uma participação cada vez maior do governo federal, principalmente nos investimentos em pesquisa.

Autonomia sem privatização

Para o reitor da Universidade das Nações Unidas (UNU), Hans van Ginkel, o “modelo ideal” de ensino superior é o das universidades do Japão que, apesar de financiadas pelo Estado, são autônomas e livres para fazer a sua própria avaliação. “Quanto mais o Governo limitar a autonomia das universidades, menos capacidades as universidades terão”, afirma Ginkel, em artigo publicado no site da Universidade Laval, de Quebéc, Canadá. A Universidade das Nações Unidas possui atualmente 13 institutos e centros de pesquisa espalhados pelo mundo, além de uma série de parcerias com outras universidades.

Entre os países que buscaram a autonomia universitária, destaca-se o México que tornou-se o segundo país da América Latina, depois do Chile, a adotar uma política de reforma do Estado, que incluiu a educação. Durante a década de 90, a responsabilidade pela educação pré-escolar, primária e secundária passou do governo federal para os estados. A educação superior foi mesclada em universidades públicas autônomas, universidades públicas estatais (sem autonomia) e privadas. Na década de 90, cerca de 80% dos estudantes universitários encontravam-se no setor público.

Além disso, foi implantado, inicialmente na principal universidade do país – a Universidade Metropolitana do México (UAM) – um sistema de avaliação da produtividade dos professores, inclusive com uma tabela diferencial de carreira e salários. Esse mecanismo praticado na UAM serviu de base para o governo mexicano estabelecer, posteriormente, uma política do mesmo tipo a ser aplicada nas outras universidades mexicanas. (leia mais sobre autonomia) das universidades).

América Latina: crescimento do ensino privado

No Brasil, assim como em toda América Latina, as recentes mudanças no ensino superior têm caminhado para um número cada vez maior de vagas no ensino privado e para o sucateamento do ensino público. De acordo com Luis Yarárbal, presidente do Instituo Latino-americano para o Desenvolvimento (Ilaedes) de Porto Rico, as reformas educacionais na América Latina começaram na década de 80, num período em que a maioria dos países saía da ditadura militar e que havia duras políticas de ajustes fiscais. “As ditaduras militares prepararam condições sociais, políticas e econômicas necessárias para implementar na América Latina as reformas neoliberais baseadas no ajuste fiscal, na privatização e na desregulação do mercado”, afirma.

Como característica dessas reformas, houve um grande aumento do número de instituições privadas, que passaram de 70 para 800 na América Latina depois das reformas, sendo 60% delas privadas. O crescimento das instituições privadas, para Yarárbal, foi acentuado principalmente no Brasil, Colômbia, Chile, El Salvador e na República Dominicana.

O aumento da procura pelo ensino privado, para o pesquisador João dos Reis Silva Jr., da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), se deve à busca pela certificação, característica de países com altos índices de desemprego. “No entanto, com a educação a pessoa se torna empregável, mas não necessariamente empregada”, destaca. Para ele, tem se pensado a reforma universitária nos países subdesenvolvidos a partir de uma subordinação da atividade social e humana à econômica. “A idéia é formar um indivíduo que resolva todos os seus problemas usando seus conhecimentos acumulados, mas que nunca indague porque aqueles problemas emergem. Os indivíduos tornam-se úteis, mas alienados, mudos e acríticos”, afirma.

No Chile, as mudanças começaram logo após o golpe militar, em 1973, e intensificaram-se na década de 80, com os “Decretos de Força de Lei”(DFLs), que determinaram novas formas de captação de recursos e redução dos cursos de pós-graduação gratuitos. Além disso, as universidades públicas chilenas passaram a oferecer apenas cursos mais baratos e lucrativos, como direito, administração e bioquímica.

Para Ângela Siqueira, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) as mudanças no sistema de ensino chileno não trouxeram resultados positivos. “Essa grande redução do suporte financeiro afetou drasticamente as universidades tradicionais, não só com o abandono dos serviços de manutenção e infra-estrutura, mas também com a redução dos salários do seu pessoal.

Siqueira compara as reformas chilenas às que aconteceram na China, que passou por uma reforma no ensino superior no mesmo período. Assim como no Chile, a idéia de reforma na China foi a de redução de recursos. Houve um aumento de especializações e de pacotes educacionais “comprados” de outros países, o que resultou num aumento de estudantes matriculados de pouco mais de 2 bilhões, em 1986, para mais de 5 bilhões, em 1994. “Em ambas [as reformas] percebe-se a introdução de uma perspectiva de gestão empresarial de mercado, afetando os objetivos, os comportamentos, a administração, a organização, o referencial de avaliação etc”.

Na África, fuga de cérebros

Nos países da África, as reformas da educação caminham no mesmo rumo que os países da América Latina, com a diferença de que a implementação do sistema universitário nos países africanos é bem mais recente. De acordo com Molathegi Trevor Sehoole, pesquisador da Universidade de Pretória, da África do Sul, o sistema de ensino superior foi estabelecido no período colonial, nos moldes europeus. “Após a independência, as universidades africanas continuaram a contar com o formato das universidades coloniais e com donativos estrangeiros para o seu desenvolvimento”, afirma Sehoole, que estudou o processo da política voltada ao ensino superior no período pós-apartheid na África do Sul. Sehoole explica que, apesar da independência política, a dependência financeira das instituições de ensino superior continua, principalmente de agências como a US Agency for International Development (USAID) e a British Inter-University Council for Higher Education (IUC).

Para o pesquisador, o ensino superior africano tem sido marcado, nas últimas duas décadas, pelo crescimento desorientado de instituições privadas e pelo aumento do ensino à distância e de universidades virtuais. Tanto é assim que hoje, duas das mais importantes instituições africanas são a Universidade Virtual Africana (AVU, em inglês), estabelecida em 1997, e a Universidade Virtual Franchophone (UVF)”.

Devido às deficiências do ensino superior africano e à falta de verbas para pesquisa, a saída de estudantes rumo aos Estados Unidos ou Europa tem sido crescente, fenômeno conhecido como “fuga de cérebros”. De acordo com Sehoole, no ano passado os Estados Unidos contavam com 5.684 estudantes vindos somente do Kenya, país com maior número de estudantes nos Estados Unidos. “As imigrações aumentam na medida que o ensino superior africano se deteriora”, afirma.

A pesquisadora Elizabeth Kabura Nyaga é um exemplo. Atualmente, ela faz seu doutorado na Universidade Hohenhein, Stuttgart, Alemanha. Para ela, as universidades do Kenya, privadas e públicas, são muito mais rígidas do que as européias. Mesmo assim, há muitos problemas. “Os professores das universidades públicas não ensinam muito bem”, afirma.

O mesmo caso é o do Guillaume Nyagatare, de Ruanda, que faz doutorado na mesma universidade. No caso de Ruanda, as deficiências no ensino superior são agravadas pela guerra. “Depois da guerra, o país é deixado com menos professores, menos infra-estrutura de laboratórios, menos recursos financeiros e com uma dívida social grande”, afirma Nyagatare.

Europa Ocidental: predomínio do sistema público

Na maioria dos países da Europa Ocidental, as universidades fazem parte das funções públicas em que o Estado tem a responsabilidade de prover a legislação, a administração e as finanças. Segundo o professor Johann W. Gerlach, da Freie Universität Berlin, isso é uma “conseqüência do desenvolvimento do Estado e da filosofia hegeliana, segundo a qual o Estado, e não a sociedade ou o indivíduo, tem a primazia da responsabilidade do bem-estar público, personificando a razão ética e a liberdade”.

No caso da Alemanha, o pesquisador afirma que as constantes reformas no tradicional sistema universitário determinaram o atual sistema público universitário forte. Estima-se, por exemplo, que mais de 5,7 bilhões de euros têm sido gastos desde a reunificação da Alemanha, no início da década de 90, para fortalecer as universidades do leste alemão. Por isso já era de se esperar que a Alemanha tivesse o cuidado de excluir o seu sistema educativo estatal do General Agreement on Trade in Services (Gats) e da OMC.

Apesar da preocupação em proteger o sistema público, especialistas apontam que há uma tendência em transformar as universidades em empresas. Atualmente, o crescente número de desempregados na Alemanha tem incentivado o governo a adotar medidas especiais no sistema de ensino. Uma tendência, semelhante ao que ocorre no Brasil, é o número cada vez maior de pessoas com curso superior ingressarem em cursos de doutorado como opção ao desemprego. Em 2003, havia 13,3% mais acadêmicos desempregados do que no ano anterior. Como no Brasil, as vagas para bolsas de doutorado também acabam sendo muito disputadas. Por causa do desemprego, muitos cientistas alemães têm buscado “asilo” em países como os Estados Unidos, mas o governo está tomando providências para impedir, também na Alemanha, a “fuga” de seus pesquisadores.

(SR e JS)


Leia mais sobre o assunto:

As novas faces da educação superior no Brasil - reforma do Estado e mudança na produção. João dos Reis Silva Junior e Valdemar Sguissardi. São Paulo: Cortez Editora, 2001.

Reforma do estado e na educação no Brasil de FHC. João dos Reis Silva Junior. São Paulo: Editora Xamã, 2003 p.146.

Higher education in Africa and the challenges of trade in education. Molathegi Trevor Sehoole (artigo ainda não publicado)

Impactos del neoliberalismo sobre la educación superior en America Latina. Luiz Yarzábal. Avaliação – revista da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior. Ano 6, vol. 6, número 1, março de 2001.

O documento “conjunto” Banco Mundial-Unesco sobre Ensino Superior. Ângela Siqueira. Avaliação – revista da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior. Ano 6, vol. 6, número 1, março de 2001.

As reformas do ensino superior no Chile e China. Ângela Siqueira. Avaliação – revista da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior. Ano 8, vol. 8, número 4, dezembro de 2003.

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Atualizado em 10/09/2004

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