Governo busca participação e consenso no debate
"Resolver o caos" é o primeiro objetivo da reforma universitária proposta pelo governo federal, nas palavras do representante do Ministério da Educação (MEC) no Rio de Janeiro, William Campos. O segundo propósito é definir pontos do texto da Lei Orgânica, em fase de elaboração e aberta ao debate até outubro. O dia 30 de novembro de 2004 será o prazo final para encaminhamento do Projeto de Lei ao Congresso, que pode votar em 90 dias se for escolhido o regime de urgência urgentíssima (45 dias no Senado e 45 na Câmara) ou pode ficar na "gaveta" por tempo indeterminado. Se aprovada, a implantação será imediata, confirma o MEC. Definida pelo governo como uma ofensiva democrática, a estratégia de elaboração aconteceu pela realização de plenárias, colóquios e audiências em todo o país, desde 2003. Formato esse que garantiu participação e apoio de diversas entidades. Mas por trás dessa aparente unanimidade existem algumas divergências, especialmente dentro do movimento estudantil. A União Nacional dos Estudantes (UNE), a qual o governo afirma estar apoiando a reforma, na verdade está dividida. A ala crítica é contrária, entre outras coisas, ao método pelo qual o MEC conduziu o debate, além de denunciar a fragmentação das propostas como estratégia de camuflagem do processo.
No momento em que todos esperavam uma proposta fechada e pronta, avalia Campos, o MEC provocou o debate, criando uma "crise na cabeça das vanguardas e motivando intelectuais que querem universidades mais fortes". Ele acredita que há uma confusão ideológica diante da questão. Mas garante que "ninguém, em sã consciência, está satisfeito com a universidade que existe hoje no Brasil". A universidade clama por essa reforma, defende o representante do governo.
A conclusão a que chegaram os representantes do MEC foi que o governo Fernando Henrique Cardoso privatizou o ensino superior brasileiro, como forma de atender diretrizes do Banco Mundial. As universidades públicas foram abandonadas, dando origem à "privatização por dentro" (cobranças de cursos de pós-graduação e criação de fundações). Segundo Campos, os números confirmam tal conclusão: em dez anos (1992 a 2002), o total de universidades no Brasil saltou de 893 para 1.637, das quais 1.442 são privadas. Mais da metade dos alunos está nas instituições pagas; são 2.428.258 alunos do total de 3.479.913 universitários brasileiros.
O objetivo da reforma é que, até 2010, a quantidade de jovens de 18 a 24 anos na universidade salte dos atuais 9% para o equivalente a 30% do total nessa faixa etária. Para isso, a meta é ampliar o ensino público e regulamentar o ensino privado. "Um sonho que existe desde a década de 60, na ditadura", diz o representante do MEC no Rio de Janeiro. Na visão do governo Lula, a missão da reforma universitária é aumentar a capacidade da universidade de influenciar no desenvolvimento do país. "A universidade precisa formar uma classe dirigente capaz de unir a ascensão com a preocupação social", afirma Campos, porque o sucesso individual tem de trabalhar em favor do coletivo.
O estudante de filosofia Antônio David, diretor do Diretório Acadêmico dos Estudantes (DCE - Livre) da Universidade de São Paulo (USP), considera falso o contorno democrático do debate promovido pelo MEC em mini-constituintes sobre a reforma. Além de serem restritas a entidades convidadas, com número definido de representantes, a divulgação das plenárias tem sido tímida, sem ampla convocação, afirma David, que critica ainda a dinâmica do debate, "em que a pessoa não tem voz e só se posiciona contra ou a favor". "A proposta está pronta", afirma o estudante, "apesar do empenho do MEC na legitimação do processo". Como integrante do grupo de oposição dentro da UNE, David esclarece que esse posicionamento não é o mesmo da direção da entidade estudantil, a qual se coloca ao lado do governo em quase todos os itens da proposta, com algumas poucas exceções, entre elas o voto universal para reitor, que a UNE é contra.
Ainda segundo David, o posicionamento favorável à proposta seria uma decisão da direção da UNE, contrária às bases. Nos encontros de áreas como medicina, direito e comunicação, com até 4 mil estudantes, todos votaram contra o texto proposto, diz David. "Ninguém é contra a transformação nas universidades, mas essa reforma é contra as idéias da UNE, apesar da entidade estar dividida com relação a alguns pontos", afirma.
A iniciativa do governo de fragmentar as propostas também é criticada pelo estudante, que interpreta como uma estratégia de aprovação. A Lei Orgânica que vai ao Congresso, por exemplo, não define as questões das cotas – que têm outra tramitação legal –, nem a Lei da Inovação Tecnológica – também votada separadamente. Para os estudantes, diz David, a universidade pública está sendo submetida às necessidades imediatas do setor produtivo, que implicam nas metas do atual governo e do mercado. Também não há sinalização na proposta sobre a ampliação de verbas para a universidade pública, ao mesmo tempo que há metas de aumento no número de vagas, critica David. Nesse sentido, a UNE luta de maneira uniforme (sem divergências internas e desde antes do debate da reforma) pela derrubada do veto do governo FHC à proposta de 7% do PIB destinado à educação.
Ao contrário do que divulga o MEC, o documento da Lei Orgânica beneficia a iniciativa privada e tem um eixo privatizante, segundo avaliação da ala de oposição da UNE. O grupo já tem data definida para uma manifestação nacional contra a proposta da Lei Orgânica sobre a reforma universitária: dia 12 de setembro, em Brasília. Na oportunidade, informa David, será definido um calendário de mobilização estudantil até novembro, para impedir a aprovação da proposta que deverá ser encaminhada ao Congresso.
O MEC já deixou claro que, até novembro, a proposta será enviada ao Congresso. Dentro do processo, o governo entende que agora é o momento de afinar os termos, para chegar a um consenso mínimo por meio de negociação. O encaminhamento proposto, portanto, segundo o Ministério, é democrático, de diálogo, com participação da sociedade, de especialistas nacionais e internacionais, de entidades como UNE, Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), e de muito debate.
Seis eixos da proposta
Até aqui, a proposta do governo está fixada em seis eixos: conteúdos e programas, acesso e permanência, financiamento e gestão, autonomia, e avaliação. Um dos objetivos declarados é "recuperar o papel do Estado como normatizador e fiscalizador da educação", de acordo com o documento preliminar da Lei, assinado pelo ministro da Educação, Tarso Genro, apresentado dia 6 de junho. Essa já é a segunda versão do texto. Para o ministério, o MEC perdeu seu poder de fiscalização nos últimos anos. Em função disso, inclusive, uma medida provisória suspendeu em junho, por 180 dias (até novembro), a criação de novos cursos. Centenas de pedidos já se acumulam no Ministério para abertura de mais de 2000 novos cursos, dos quais 1700 vêm de universidades já em funcionamento.
A criação do Ciclo Básico é uma das novidades propostas pelo governo, que seria aplicada como Estudos Universitários Gerais. O representante do MEC no Rio de Janeiro, William Campos, explica que a idéia é que todos os alunos façam dois anos básicos, com ênfase em língua portuguesa e cidadania. A medida serviria como uma correção do ensino médio, além de proporcionar a formação de um "universitário mais pleno", ele diz, com base mais sólida e sem o limite de cada especialização, a qual seria o foco do aluno somente após os dois anos iniciais. "Precisamos reforçar que o universitário não é feito apenas para o mercado". De acordo com a proposta, o Ciclo Básico também permitiria o aprimoramento da capacidade crítica e de compreensão, das práticas esportivas, artísticas e outras.
A autonomia das universidades deve ser mantida, afirma Campos, tanto a pedagógica quanto a financeira e a administrativa. Os reitores das universidades públicas devem ser eleitos pelo voto direto, assim como o pró-reitor acadêmico da universidade privada. Uma vez eleito, o reitor da universidade federal teria um prazo de 60 dias para apresentar ao MEC o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), no qual deve constar a previsão de gasto para sua gestão.
Dentro do quesito autonomia, a proposta prevê a realização de uma certificação periódica. Isso implicaria uma prestação de contas por parte da reitoria à sociedade (não somente à comunidade acadêmica), a cada seis meses. Não existe um molde para essa avaliação, mas o conceito é de que é preciso haver um controle externo, através de um órgão colegiado máximo ou conselho comunitário. A prefeitura da cidade onde houver universidade pública, por exemplo, deve ter maior grau de influência e participação.
Sobre o acesso e a permanência, Campos explica que existe a política de cotas (projeto de lei elaborado separadamente da Lei Orgânica que está em debate). Caso aprovadas, deverão ser implementadas gradualmente pelas universidades num prazo de 240 dias. O governo entende que essa é uma das formas de inclusão social, que terá variações de acordo com a realidade de cada estado. A implementação de programas de bolsa trabalho e de primeiro emprego, além da criação de cursos noturnos, seriam algumas das estratégias da política de permanência na universidade. "Devemos subsidiar a permanência desse estudante com dinheiro, livros e outras possibilidades que se somam", afirma Campos.
Com relação ao financiamento das universidades, o projeto sugere a criação de um fundo federal não contingenciável que garanta, além da manutenção, o desenvolvimento das universidades. Seriam, portanto, novas bases de financiamento. Um fundo só para custeio (manutenção) e outro para o desenvolvimento. Campos diz que o governo se mostrou simpático a uma proposta apresentada pela Andifes na qual, do total de 18% dos recursos destinados à Educação pela União, 75% iriam para as universidades federais. Desse montante, 70% iriam para o fundo de custeio (todas as despesas obrigatórias, como folha de pagamento e administração) e 5% para o fundo de desenvolvimento (expansão, pesquisa e inovação). Ainda sobre financiamento, a idéia é definir um percentual fixo para as universidades dentro dos 25% dos estados e municípios destinados à Educação, assim como para os 18% do governo federal.
Para estrutura e gestão, a Lei Orgânica propõe a organização das universidades por ramo de conhecimento ou de especialização, explica William Campos. "Seria o fim dos departamentos dentro das universidades", afirma. A inspiração, segundo ele, vem de experiências européias. Campos cita o português Boaventura de Sousa Santos como um dos responsáveis pelo conceito. Isso promoveria, no conceito do governo, a interdisciplinaridade. Ao mesmo tempo que organizaria as especializações, com a criação de universidades da Saúde, por exemplo, ou universidades das Ciências Humanas.
Sobre a avaliação, Campos afirma que "virou uma bagunça" no governo anterior. Pela proposta, ela deve ser feita pelo MEC e deve estar vinculada à regulamentação. Isso significa que as informações coletadas sobre a instituição serão utilizadas para renovação ou suspensão das licenças, ou ainda para sugerir mudanças. A idéia do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) também possui uma lei com trâmite independente (Lei 10.861) e já foi aprovada. "Ela vai ser incluída na reforma e vai ser implementada", diz o representante do MEC. Segundo Campos, não será uma avaliação do castigo, mas ela vai se ancorar nas experiências de 30 anos da Capes e do CNPq, que possuem tradição de eficiência em avaliação.
"Vamos avaliar como o aluno entra e como ele sai. Isso vai permitir que ele veja o que ele agregou de valor", explica Campos, que também atua na Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Ele lembra que o Provão da gestão FHC só avaliava quando o aluno concluía seu curso. Campos garante que isso não vai gerar privilégios nem classificar melhores e piores. Sobre o quesito avaliação, os estudantes prometem uma mobilização contrária.
(AM)
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