Entrevistas
Universidades
podem ajudar a divulgar ciência no Brasil
Ildeu de Castro Moreira
Sociólogo
critica a privatização da universidade
Boaventura de Sousa Santos
As
federais precisam de mais professores
Paulo Speller
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Universidades
podem ajudar a divulgar ciência no Brasil
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Crédito:
Casa da ciência - Fiocruz |
Ildeu de
Castro Moreira fez parte da equipe de transição do Governo
Lula na área de Ciência e Tecnologia, é físico
e docente do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Entre suas atividades, Moreira ainda encontra tempo para editar
livros de divulgação científica, área que
tem ajudado a impulsionar. Nesta entrevista, concedida à ComCiência,
ele explica que ainda não existe um programa de popularização
da ciência estabelecido no novo governo, mas como a área
foi considerada prioritária desde o programa de governo, deverá
contar com ações governamentais somadas à ampla participação
dos setores interessados e atuantes na produção e na transmissão
de conhecimentos e na divulgação científica. Para
um programa de popularização eficiente será preciso,
de acordo com Moreira, desenvolver ações criativas, que
levem em conta as condições específicas e a cultura
nacional.
ComCiência
- O ministro da educação, Cristovam Buarque, fez um apelo
aos estudantes universitários para que participem do projeto de
erradicação do analfabetismo no país. As nossas universidades
estão suficientemente envolvidas com os problemas sociais?
Moreira - A tradição universitária brasileira
é ainda muito jovem, se comparada com a européia. A nossa
rede de universidades públicas tem muitos méritos e uma
amplitude grande, embora abarque uma parte pequena do total de universitários
reais ou potenciais. Algumas dessas universidades se destacam por uma
pesquisa de qualidade em diversas áreas. Mas deve ser reconhecido
que, no geral, o desempenho dessas instituições, no que
se refere à sua contribuição para o enfrentamento
de problemas sociais e econômicos, está muito aquém
do desejado e do possível. A proposta do ministro da Educação
vai na direção correta de um engajamento maior das universidades
- com sua capacidade física e seus professores, estudantes e funcionários
- com a sociedade brasileira. A questão do analfabetismo é
um problema social grave que deve ser atacado de forma rápida e
eficaz. Acho, no entanto, que não devemos nos limitar a esse ponto.
A universidade brasileira e as instituições de pesquisa
têm um potencial muito grande em vários domínios e
ele deve ser melhor utilizado. Para isto eles devem ser cobrados, mas
também ser valorizados e devem ser estabelecidas metas que estejam
de acordo com suas competências.
ComCiência
- E qual pode ser o papel das universidades na divulgação
científica?
Ildeu - Você tocou em um ponto importante em que a universidade
brasileira poderia contribuir significativamente: as atividades de divulgação
científica. Por exemplo, se os alunos das universidades públicas
têm ensino gratuito, e acho que devem continuar a tê-lo, isso
poderia ser compensado com um maior engajamento em atividades voltadas
para problemas nacionais ou locais. Se isso for bem feito, os alunos,
ao dedicarem algum tempo de sua formação para atividades
de apoio a escolas, à campanha contra a fome, à popularização
da ciência, à melhoria da saúde etc, estariam colaborando
socialmente e adquirindo uma melhor formação cidadã,
conhecendo melhor seu país e sua realidade.
Nessas atividades, que poderiam estar relacionadas às suas preferências
profissionais, os estudantes estariam também aprendendo conteúdos
e práticas importantes de sua área de trabalho. Eles deveriam
evidentemente ser orientados adequadamente por professores ou profissionais
competentes. Tanto as universidades como as instituições
públicas de pesquisa, sem prejuízo de suas atividades essenciais
de ensino e pesquisa, deveriam ser estimuladas pelo novo governo a participar
de um verdadeiro mutirão para a melhoria da formação
dos brasileiros, aí incluída a educação científica.
ComCiência
- As publicações impressas que tratam de C&T no Brasil
têm alto custo. Os programas da TV satélite são restritos
àqueles que podem pagar pelo seu acesso e a maior emissora de canal
aberto brasileira transmite seu programa de ciência em horário
nada privilegiado. Ou seja, a dita popularização de ciência
é ainda muito tímida no país. Por que isso ocorre?
Ildeu - Creio que podemos entender isso se olharmos a história
de nosso país e a compararmos com as de outros. Na Europa, por
exemplo, a ciência moderna surge no século XVII pari passu
com um desenvolvimento econômico e social escorado no capitalismo.
Ela tem ali uma profunda inserção na estrutura social e
permeia sua cultura.
Os países avançados construíram estruturas educacionais
estáveis e abrangentes desde o século XIX. Outros países,
especialmente no Oriente, desenvolveram-se tecnologicamente de forma diferente
e mais acelerada, dentro de políticas educacionais direcionadas
e de estímulo à inovação e ao desenvolvimento
industrial. No Brasil, atividades científicas sistemáticas
surgiram muito tarde em sua história. Nossas universidades são
recentes. Por outro lado, grande parte da população sempre
foi mantida à margem do conhecimento e do ensino formal. Muito
disso por ausência de políticas (a ausência de política
é, de fato, uma maneira de manter o status quo) de longo prazo.
A educação científica nas escolas, no geral, sempre
foi deficiente porque não havia motivações políticas
ou econômicas esclarecidas que a estimulassem. Do lado da chamada
educação informal, incluída aí a divulgação
científica, apesar de terem existido, ao longo das décadas,
muitos indivíduos e iniciativas generosas, ela raramente alcançou
um universo mais amplo. Dentro desse quadro, a mídia impressa e
televisiva, e especialmente esta, não tomou, no geral, a difusão
científica como uma questão digna de ser considerada seriamente.
ComCiência
- E isso restringiu a divulgação?
Ildeu - Ilustro com um exemplo. Os museus e centros de ciência
brasileiros embora tenham crescido nos últimos anos, têm
ainda pequena capacidade de difusão científica e as universidades,
apesar de esforços localizados, pouco fazem nesta linha. Enquanto
em países desenvolvidos da Europa e nos EUA existe uma rede grande
de museus e centros de ciência, freqüentados anualmente por
parcela significativa da população, no Brasil a disponibilidade
de locais e a taxa de visitação a tais instituições
alcançam níveis ainda muito baixos. Não se pode esquecer
que existem também desigualdades regionais na distribuição
de tais instituições e no acesso à informação
qualificada sobre a ciência, seus conteúdos e seu funcionamento.
Grande parte dessas iniciativas estão altamente concentradas em
São Paulo e no Centro-Sul do país e, mesmo aí, em
áreas privilegiadas econômica e socialmente.
ComCiência
- Como vai funcionar o Programa Nacional de Popularização
da Ciência no novo governo?
Ildeu - Eu participei da elaboração da proposta para
se estabelecer um programa nacional de popularização da
ciência. Algumas linhas gerais estão no programa do novo
governo e emanaram também de um documento entregue aos candidatos
presidenciais por vários museus e centros de ciência, cientistas
e comunicadores em ciência.
Não se pode falar, portanto, de um programa de popularização
de ciência do novo governo. Mas a intenção parece
clara. O ministro [da ciência e tecnologia] afirmou em seu discurso
de posse, literalmente: "Prioridade daremos à árdua
tarefa de popularização das questões da ciência
e da tecnologia. Trata-se de tarefa da maior importância política
e ideológica. Precisamos levar a ciência para o dia a dia
de cada brasileiro, para que cada cidadã e cidadão, cada
contribuinte, entendendo a importância da pesquisa e da inovação
na qualidade de sua vida, se transforme em seu defensor. Mobilizaremos
todas as forças disponíveis."
Existem algumas propostas gerais para a constituição de
um programa e que já avançam na direção de
medidas concretas. Ele deve surgir de uma ação governamental
e ser formulado e implementado a partir de uma discussão ampla
com os setores interessados e atuantes na produção e na
transmissão de conhecimentos e na divulgação científica.
O fato de haver um processo de construção democrática
do programa não significa, no entanto, que se deva gastar um tempo
enorme com isto; alguns meses de uma ação bem articulada
bastariam.
ComCiência
- Quais seria essas propostas?
Ildeu - Entre os pontos centrais que foram propostos inicialmente
menciono: a necessidade e o processo para a formulação do
próprio programa nacional de popularização da ciência;
a necessidade de ampliação de recursos para as atividades
de divulgação científica, que poderiam vir do poder
público ou de parcerias com empresas estatais e empresas privadas;
uma melhor articulação entre os museus e centros de ciência
existentes; a criação, por todo o país, em articulação
com governos estaduais e municipais, de oficinas e centros que integrem
ciência, arte e cultura. Tratar-se-ia de utilizar espaços
públicos, como escolas, prédios históricos, estações
de trem (existem centenas dessas no país que estão desativadas
ou com uso inadequado), para criar tais centros, em colaboração
com instituições locais e com os governos estaduais e municipais;
o estabelecimento de mecanismos para estimular as universidades públicas
(e seus professores e alunos) a se integrarem num grande esforço
de divulgação científica de qualidade; o uso das
TVs educativas e universitárias para a divulgação
científica; a implementação de mecanismos para uma
maior participação popular nas questões referentes
à C&T, como já ocorre em outros países como a
Dinamarca, Canadá e Inglaterra.
A Associação Brasileira de Museus de Ciência está
atenta à questão; a SBPC tem também uma longa tradição
de se empenhar nessa direção. Além disso, há
o exemplo externo. Existe todo um movimento em vários países
de buscar favorecer uma popularização da ciência mais
efetiva e que atenda às necessidades de um cidadão atual.
Em muitos deles, a iniciativa privada tem atuado na criação
de museus de ciência ou apoiado projetos de divulgação.
Por que as grandes empresas estatais brasileiras não apoiam projetos
de popularização da ciência? É correto que
apoiem (com critérios que busquem ampliar o seu alcance social)
projetos culturais, mas ciência também não é
cultura? E, na medida em que a população estiver melhor
informada e mais participante em relação a temas e escolhas
científicas e tecnológicas isto não poderá
contribuir para a melhoria, por exemplo, da economia de energia ou da
preservação ambiental?
ComCiência
- Na sua opinião quais poderiam ser as primeiras ações?
Ildeu - Creio que se deveria iniciar logo uma discussão sobre
a constituição de um programa deste tipo, envolvendo as
sociedades científicas, FAPs [Fundações de Amparo
à Pesquisa], museus e centros de ciências, universidades
e instituições de pesquisa, grupos de pesquisa na área
(como o Labjor), setores empresariais e entidades da sociedade civil.
A reunião anual da SBPC poderia ser um bom momento para um balanço
dessa iniciativa. Como isso será feito depende também da
ação do novo governo. Uma iniciativa deste tipo deverá
contar com a atuação não só do MCT, mas também
do MEC [Ministério da Educação] e do MINC [Ministério
da Cultura]. Os governos estaduais e municipais têm evidentemente
um papel importante na definição e implementação
de políticas regionais para a difusão científica
e tecnológica.
ComCiência
- Existe algum modelo de popularização científica
no qual o programa do novo governo está se inspirando?
Ildeu - Existem programas nacionais de popularização
da ciência em vários países. Na formulação
das propostas, e insisto em dizer que elas têm ainda um caráter
incipiente, levamos em conta experiências que foram ou estão
sendo implementadas em alguns deles. A Grã-Bretanha tem uma longa
tradição em divulgação científica de
qualidade e programas e atividades em caráter nacional que costumam
envolver milhões de pessoas. Mas mesmo ali existe uma discussão
permanente sobre os êxitos, fracassos e limitações
destes programas. Eles têm, por exemplo, uma campanha nacional -
Respect - para atrair jovens negros, da comunidade afro-caribenha, para
a ciência. A China desenvolve interessantes experiências,
especialmente no meio rural.
Eles têm uma estrutura de 'vans da ciência' e um 'trem da
ciência' que percorre mais de 4 mil km. A Índia, com sua
cultura multifacetada e levando em conta conhecimentos locais milenares,
tem conseguido êxito em algumas províncias. No México
surgiram, na última década, vários e grandes museus
de ciência. Na África do Sul existe um fundação
nacional que cuida da questão. A Austrália tem também
projetos integradores para todo o país. O Chile criou um programa
nacional de divulgação científica. No entanto, alguns
desses programas nacionais tendem a ver a questão da popularização
da ciência de um ângulo estreito e tratam apenas de "alfabetizar"
cientificamente as pessoas, de forma unidirecional e dentro de uma concepção
elitista do processo.
Mas essas práticas estão sendo questionadas e revistas na
direção de levar em conta as audiências e suas experiências
e de abrir espaço para a discussão de questões polêmicas
advindas do desenvolvimento científico e tecnológico, seus
benefícios, riscos, incertezas e impactos sociais. É claro
que esses exemplos internacionais não devem ser tomados como modelos
e copiados diretamente, mas como experiências importantes que devem
nos inspirar. Em nosso contexto sócio-cultural devemos buscar desenvolver
ações criativas e que levem em conta nossas condições
específicas e nossa cultura.
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