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Universidades podem ajudar a divulgar ciência no Brasil

Crédito: Casa da ciência - Fiocruz

Ildeu de Castro Moreira fez parte da equipe de transição do Governo Lula na área de Ciência e Tecnologia, é físico e docente do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre suas atividades, Moreira ainda encontra tempo para editar livros de divulgação científica, área que tem ajudado a impulsionar. Nesta entrevista, concedida à ComCiência, ele explica que ainda não existe um programa de popularização da ciência estabelecido no novo governo, mas como a área foi considerada prioritária desde o programa de governo, deverá contar com ações governamentais somadas à ampla participação dos setores interessados e atuantes na produção e na transmissão de conhecimentos e na divulgação científica. Para um programa de popularização eficiente será preciso, de acordo com Moreira, desenvolver ações criativas, que levem em conta as condições específicas e a cultura nacional.

ComCiência - O ministro da educação, Cristovam Buarque, fez um apelo aos estudantes universitários para que participem do projeto de erradicação do analfabetismo no país. As nossas universidades estão suficientemente envolvidas com os problemas sociais?
Moreira -
A tradição universitária brasileira é ainda muito jovem, se comparada com a européia. A nossa rede de universidades públicas tem muitos méritos e uma amplitude grande, embora abarque uma parte pequena do total de universitários reais ou potenciais. Algumas dessas universidades se destacam por uma pesquisa de qualidade em diversas áreas. Mas deve ser reconhecido que, no geral, o desempenho dessas instituições, no que se refere à sua contribuição para o enfrentamento de problemas sociais e econômicos, está muito aquém do desejado e do possível. A proposta do ministro da Educação vai na direção correta de um engajamento maior das universidades - com sua capacidade física e seus professores, estudantes e funcionários - com a sociedade brasileira. A questão do analfabetismo é um problema social grave que deve ser atacado de forma rápida e eficaz. Acho, no entanto, que não devemos nos limitar a esse ponto. A universidade brasileira e as instituições de pesquisa têm um potencial muito grande em vários domínios e ele deve ser melhor utilizado. Para isto eles devem ser cobrados, mas também ser valorizados e devem ser estabelecidas metas que estejam de acordo com suas competências.

ComCiência - E qual pode ser o papel das universidades na divulgação científica?
Ildeu -
Você tocou em um ponto importante em que a universidade brasileira poderia contribuir significativamente: as atividades de divulgação científica. Por exemplo, se os alunos das universidades públicas têm ensino gratuito, e acho que devem continuar a tê-lo, isso poderia ser compensado com um maior engajamento em atividades voltadas para problemas nacionais ou locais. Se isso for bem feito, os alunos, ao dedicarem algum tempo de sua formação para atividades de apoio a escolas, à campanha contra a fome, à popularização da ciência, à melhoria da saúde etc, estariam colaborando socialmente e adquirindo uma melhor formação cidadã, conhecendo melhor seu país e sua realidade.
Nessas atividades, que poderiam estar relacionadas às suas preferências profissionais, os estudantes estariam também aprendendo conteúdos e práticas importantes de sua área de trabalho. Eles deveriam evidentemente ser orientados adequadamente por professores ou profissionais competentes. Tanto as universidades como as instituições públicas de pesquisa, sem prejuízo de suas atividades essenciais de ensino e pesquisa, deveriam ser estimuladas pelo novo governo a participar de um verdadeiro mutirão para a melhoria da formação dos brasileiros, aí incluída a educação científica.

ComCiência - As publicações impressas que tratam de C&T no Brasil têm alto custo. Os programas da TV satélite são restritos àqueles que podem pagar pelo seu acesso e a maior emissora de canal aberto brasileira transmite seu programa de ciência em horário nada privilegiado. Ou seja, a dita popularização de ciência é ainda muito tímida no país. Por que isso ocorre?
Ildeu -
Creio que podemos entender isso se olharmos a história de nosso país e a compararmos com as de outros. Na Europa, por exemplo, a ciência moderna surge no século XVII pari passu com um desenvolvimento econômico e social escorado no capitalismo. Ela tem ali uma profunda inserção na estrutura social e permeia sua cultura.
Os países avançados construíram estruturas educacionais estáveis e abrangentes desde o século XIX. Outros países, especialmente no Oriente, desenvolveram-se tecnologicamente de forma diferente e mais acelerada, dentro de políticas educacionais direcionadas e de estímulo à inovação e ao desenvolvimento industrial. No Brasil, atividades científicas sistemáticas surgiram muito tarde em sua história. Nossas universidades são recentes. Por outro lado, grande parte da população sempre foi mantida à margem do conhecimento e do ensino formal. Muito disso por ausência de políticas (a ausência de política é, de fato, uma maneira de manter o status quo) de longo prazo. A educação científica nas escolas, no geral, sempre foi deficiente porque não havia motivações políticas ou econômicas esclarecidas que a estimulassem. Do lado da chamada educação informal, incluída aí a divulgação científica, apesar de terem existido, ao longo das décadas, muitos indivíduos e iniciativas generosas, ela raramente alcançou um universo mais amplo. Dentro desse quadro, a mídia impressa e televisiva, e especialmente esta, não tomou, no geral, a difusão científica como uma questão digna de ser considerada seriamente.

ComCiência - E isso restringiu a divulgação?
Ildeu -
Ilustro com um exemplo. Os museus e centros de ciência brasileiros embora tenham crescido nos últimos anos, têm ainda pequena capacidade de difusão científica e as universidades, apesar de esforços localizados, pouco fazem nesta linha. Enquanto em países desenvolvidos da Europa e nos EUA existe uma rede grande de museus e centros de ciência, freqüentados anualmente por parcela significativa da população, no Brasil a disponibilidade de locais e a taxa de visitação a tais instituições alcançam níveis ainda muito baixos. Não se pode esquecer que existem também desigualdades regionais na distribuição de tais instituições e no acesso à informação qualificada sobre a ciência, seus conteúdos e seu funcionamento. Grande parte dessas iniciativas estão altamente concentradas em São Paulo e no Centro-Sul do país e, mesmo aí, em áreas privilegiadas econômica e socialmente.

ComCiência - Como vai funcionar o Programa Nacional de Popularização da Ciência no novo governo?
Ildeu -
Eu participei da elaboração da proposta para se estabelecer um programa nacional de popularização da ciência. Algumas linhas gerais estão no programa do novo governo e emanaram também de um documento entregue aos candidatos presidenciais por vários museus e centros de ciência, cientistas e comunicadores em ciência.
Não se pode falar, portanto, de um programa de popularização de ciência do novo governo. Mas a intenção parece clara. O ministro [da ciência e tecnologia] afirmou em seu discurso de posse, literalmente: "Prioridade daremos à árdua tarefa de popularização das questões da ciência e da tecnologia. Trata-se de tarefa da maior importância política e ideológica. Precisamos levar a ciência para o dia a dia de cada brasileiro, para que cada cidadã e cidadão, cada contribuinte, entendendo a importância da pesquisa e da inovação na qualidade de sua vida, se transforme em seu defensor. Mobilizaremos todas as forças disponíveis."
Existem algumas propostas gerais para a constituição de um programa e que já avançam na direção de medidas concretas. Ele deve surgir de uma ação governamental e ser formulado e implementado a partir de uma discussão ampla com os setores interessados e atuantes na produção e na transmissão de conhecimentos e na divulgação científica. O fato de haver um processo de construção democrática do programa não significa, no entanto, que se deva gastar um tempo enorme com isto; alguns meses de uma ação bem articulada bastariam.

ComCiência - Quais seria essas propostas?
Ildeu -
Entre os pontos centrais que foram propostos inicialmente menciono: a necessidade e o processo para a formulação do próprio programa nacional de popularização da ciência; a necessidade de ampliação de recursos para as atividades de divulgação científica, que poderiam vir do poder público ou de parcerias com empresas estatais e empresas privadas; uma melhor articulação entre os museus e centros de ciência existentes; a criação, por todo o país, em articulação com governos estaduais e municipais, de oficinas e centros que integrem ciência, arte e cultura. Tratar-se-ia de utilizar espaços públicos, como escolas, prédios históricos, estações de trem (existem centenas dessas no país que estão desativadas ou com uso inadequado), para criar tais centros, em colaboração com instituições locais e com os governos estaduais e municipais; o estabelecimento de mecanismos para estimular as universidades públicas (e seus professores e alunos) a se integrarem num grande esforço de divulgação científica de qualidade; o uso das TVs educativas e universitárias para a divulgação científica; a implementação de mecanismos para uma maior participação popular nas questões referentes à C&T, como já ocorre em outros países como a Dinamarca, Canadá e Inglaterra.
A Associação Brasileira de Museus de Ciência está atenta à questão; a SBPC tem também uma longa tradição de se empenhar nessa direção. Além disso, há o exemplo externo. Existe todo um movimento em vários países de buscar favorecer uma popularização da ciência mais efetiva e que atenda às necessidades de um cidadão atual. Em muitos deles, a iniciativa privada tem atuado na criação de museus de ciência ou apoiado projetos de divulgação. Por que as grandes empresas estatais brasileiras não apoiam projetos de popularização da ciência? É correto que apoiem (com critérios que busquem ampliar o seu alcance social) projetos culturais, mas ciência também não é cultura? E, na medida em que a população estiver melhor informada e mais participante em relação a temas e escolhas científicas e tecnológicas isto não poderá contribuir para a melhoria, por exemplo, da economia de energia ou da preservação ambiental?

ComCiência - Na sua opinião quais poderiam ser as primeiras ações?
Ildeu -
Creio que se deveria iniciar logo uma discussão sobre a constituição de um programa deste tipo, envolvendo as sociedades científicas, FAPs [Fundações de Amparo à Pesquisa], museus e centros de ciências, universidades e instituições de pesquisa, grupos de pesquisa na área (como o Labjor), setores empresariais e entidades da sociedade civil.
A reunião anual da SBPC poderia ser um bom momento para um balanço dessa iniciativa. Como isso será feito depende também da ação do novo governo. Uma iniciativa deste tipo deverá contar com a atuação não só do MCT, mas também do MEC [Ministério da Educação] e do MINC [Ministério da Cultura]. Os governos estaduais e municipais têm evidentemente um papel importante na definição e implementação de políticas regionais para a difusão científica e tecnológica.

ComCiência - Existe algum modelo de popularização científica no qual o programa do novo governo está se inspirando?
Ildeu -
Existem programas nacionais de popularização da ciência em vários países. Na formulação das propostas, e insisto em dizer que elas têm ainda um caráter incipiente, levamos em conta experiências que foram ou estão sendo implementadas em alguns deles. A Grã-Bretanha tem uma longa tradição em divulgação científica de qualidade e programas e atividades em caráter nacional que costumam envolver milhões de pessoas. Mas mesmo ali existe uma discussão permanente sobre os êxitos, fracassos e limitações destes programas. Eles têm, por exemplo, uma campanha nacional - Respect - para atrair jovens negros, da comunidade afro-caribenha, para a ciência. A China desenvolve interessantes experiências, especialmente no meio rural.
Eles têm uma estrutura de 'vans da ciência' e um 'trem da ciência' que percorre mais de 4 mil km. A Índia, com sua cultura multifacetada e levando em conta conhecimentos locais milenares, tem conseguido êxito em algumas províncias. No México surgiram, na última década, vários e grandes museus de ciência. Na África do Sul existe um fundação nacional que cuida da questão. A Austrália tem também projetos integradores para todo o país. O Chile criou um programa nacional de divulgação científica. No entanto, alguns desses programas nacionais tendem a ver a questão da popularização da ciência de um ângulo estreito e tratam apenas de "alfabetizar" cientificamente as pessoas, de forma unidirecional e dentro de uma concepção elitista do processo.
Mas essas práticas estão sendo questionadas e revistas na direção de levar em conta as audiências e suas experiências e de abrir espaço para a discussão de questões polêmicas advindas do desenvolvimento científico e tecnológico, seus benefícios, riscos, incertezas e impactos sociais. É claro que esses exemplos internacionais não devem ser tomados como modelos e copiados diretamente, mas como experiências importantes que devem nos inspirar. Em nosso contexto sócio-cultural devemos buscar desenvolver ações criativas e que levem em conta nossas condições específicas e nossa cultura.

Atualizado em 10/02/03

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