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Sociólogo critica a privatização da universidade
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Sociólogo critica a privatização da universidade

Em 2000, a Organização Mundial do Comércio (OMC) iniciou um grupo de negociação que têm em perspectiva a inclusão do setor de serviços no mercado mundial. Esse grupo está desenvolvendo propostas para a liberalização do comércio mundial nos setores de energia, saúde e educação. Uma vez aprovadas essas propostas, o setor de serviços dos países membros da OMC - o que inclui o Brasil - poderia ser alvo de companhias estrangeiras. Dada a força da OMC perante os governos nacionais - já que os países que desrespeitam as resoluções da OMC ficam sujeitos a sanções - várias entidades internacionais demonstraram sua oposição ao GATS (Acordo Geral de Comércio em Serviços, sigla em inglês), entre elas o Conselho de Educação dos Estados Unidos e a Associação das Universidades Européias. Conhecido por suas reflexões sobre a universidade e a educação, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos falou, durante o III Fórum Social Mundial, sobre sua expectativa com relação ao comércio internacional dos serviços. Ele também falou sobre a Universidade dos Movimentos Populares, idéia que foi apresentada em Porto Alegre.

ComCiência - A próxima rodada de negociações da OMC, que acontece em novembro, em Cancún, México, deve consolidar as propostas para a privatização do setor de serviços, o que inclui os setores de energia, saúde e educação. Qual a sua expectativa com relação especificamente à privatização da educação?
Boaventura de Sousa Santos -
Vejo da maneira mais negativa possível. Essa é uma discussão que estamos tendo no III Fórum Social Mundial e II Fórum Mundial de Educação. Nessa próxima rodada de liberalização dos serviços o ensino superior é considerado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) uma das grandes novas fontes de alimentação do mercado de serviços. Portanto, a idéia da internacionalização, da globalização dos serviços universitários, vai significar fundamentalmente a criação de empresas, empresas que fornecem professores, que fornecem currículos, que fornecem avaliação de professores, que fornecem avaliação de estudantes e empresas que fazem a certificação de cursos. É a liberalização total, é a destruição da universidade moderna, é impor para o ensino superior tudo o que é contrário à sua história, pois sua história foi no sentido de garantir a possibilidade de se pensar na sociedade a existência de interações não mercantis, isto é, a idéia de cidadania, a idéia de democracia, a idéia de conhecimento. Nesse momento, traz-se o mercantilismo para dentro da universidade. Como é que professores que estão envolvidos em uma universidade totalmente mercantilizada - ou que podem ser forçados a participar dela - podem depois defender durante as aulas os valores da solidariedade, da cidadania, da democracia. Obviamente não podem e, portanto, eu vejo esse processo da pior maneira possível.

ComCiência - Além da formação dos estudantes, que papel deve ter a universidade? O que o senhor acha da idéia de que a universidade deve formar profissionais para o mercado?
Santos -
A universidade tem que se abrir, ela tem sido tradicionalmente elitista e por isso é que se criaram universidades paralelas, universidades populares. Eu mesmo sugeri aqui a criação de uma universidade dos movimentos populares. A universidade tem que se abrir mais à sociedade, esta tem sido uma luta democrática. Simplesmente nesse momento, os neoliberais conseguiram tomar essa bandeira e transformaram a abertura da universidade à sociedade civil na abertura da universidade ao mercado. A extensão universitária foi uma coisa muito nobre e muito importante no sentido de abrir a universidade às comunidades populares, para trazer o direito, por exemplo. Os estudantes de direito foram aos bairros populares e deram assistência jurídica gratuita, e do mesmo modo, os jovens médicos. Mas tudo isso hoje foi adulterado, alterado e transformado em extensão econômica, no apoio da formação vinculada aos mercados. Isso não é possível. Até porque há gente que pensa o mercado estrategicamente e vê essa atitude como uma visão de pouco alcance, míope. As necessidades do mercado são de tal maneira dinâmicas que não se pode fazer uma formação para o mercado no sentido preciso. Quando os estudantes estiverem formados, o mercado já lá não estará mais lá, não será mais o mesmo. Isso tem acontecido em muitas áreas, então é preciso continuar a luta por essa educação que sempre almejamos, mais democrática, no sentido de distribuir o conhecimento socialmente de uma maneira mais ampla para uma sociedade também democrática mais ampla, já que a democracia esteve sempre extremamente restringida. Essa é que deve ser a extensão, não esta que está agora aí.

ComCiência - Como já disse, o senhor lançou, no Fórum, a proposta da Universidade Popular dos Movimentos Sociais. Como ela seria?
Santos -
Eu acho que o principal problema do conhecimento científico hoje é que ele se separou das práticas sociais e portanto temos uma realidade social que está subteorizada. E quanto mais se comercializa a universidade como estamos assistindo, mais essa separação fica nítida. Por outro lado, os movimentos sociais precisam de formulação teórica. Precisam parar para ver qual é o sentido das lutas, porque ser ativista cansa muitas vezes. O que estamos fazendo? Para onde vamos? Todas essas reflexões podem ser facilitadas por intelectuais. Mas hoje eles vivem em dois mundos bem distantes. Às vezes se reúnem como estamos aqui fazendo no Fórum, mas quando acaba, cada um volta para o seu mundo. Os líderes, cientistas sociais e ativistas trabalhariam em conjunto, vendo quais os problemas e comparando as práticas.

ComCiência - Já há alguma idéia mais clara e objetiva?
Santos -
Neste modelo de universidade, seriam salas de 30 pessoas. Os seminários teriam 15 dias para as questões internas e os outros 15 para se compararem com outros movimentos. Estou recebendo pedidos de informações sobre essa universidade. Precisamos intensificar as propostas e as redes para que o discurso vá para a agenda política. Agora que o presidente Lula já disse que temos que aprofundar o diálogo. E penso que a maioria das pessoas presentes no Fórum estão dispostas a aprofundar esse diálogo. Sanar o isolamento temático. O movimento feminista caminha sem saber muito como está o movimento indígena. Enquanto os movimentos não dialogarem mais vai ser difícil avançar nas lutas.

ComCiência - Onde esta universidade poderia ser implantada?
Santos -
Depende das propostas que possam surgir. Eu pensei que Porto Alegre poderia ser uma boa. Principalmente porque agora vai ser aliviada de organizar o Fórum. Claro que eu preferia que fosse num país do Sul. Mas se aparecer uma proposta do Norte, tudo bem.


Com a colaboração de André Deak
e Giovanna Modé, do Coletivo EmCrise

Atualizado em 10/02/03

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