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Turismo sexual é mais intenso no litoral

As comidas típicas, as belas praias, o carnaval e os monumentos históricos não são os únicos elementos utilizados na propaganda turística sobre o Brasil. Para Maria José Bacelar Guimarães, coordenadora administrativo-financeira do Centro Humanitário de Apoio à Mulher (Chame), a imagem da mulher brasileira associada à sensualidade também é muito freqüente nessas propagandas, o que colabora para o crescente número de visitantes que chegam ao país em busca do turismo sexual, especialmente no litoral do nordeste. Segundo alguns textos do Chame, a Bahia passou a se destacar na última década, como um dos pontos mais procurados na rota do turismo sexual e, por conseguinte, como um dos principais pontos do tráfico de mulheres para o exterior.

O Chame surgiu a partir de uma demanda do FraueninformationsZentrum (FIZ), o Centro de Informação para Mulheres da Ásia, África, América Latina e Leste Europeu, baseada na constatação do alto percentual de brasileiras envolvidas em casos de tráfico internacional de mulheres e na necessidade de estabelecer políticas de prevenção nos países de origem. O Chame foi implantado em Salvador/Bahia em 1994. A partir de 1997, foi instituído como projeto permanente de extensão do Neim (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher), da Universidade Federal da Bahia e, em 2001, tornou-se uma associação civil sem fins lucrativos.
Maria José Bacelar Guimarães concedeu entrevista à ComCiência falando do turismo sexual e do tráfico de mulheres, e revelando a necessidade de conscientização e sensibilização da sociedade para as questões que envolvem essas práticas.

ComCiência - O que se deve considerar como turismo sexual?
Maria José -
O turismo sexual se caracteriza pelo deslocamento de homens de países ricos para países pobres ou em desenvolvimento, em busca de aventuras eróticas. Assim, é considerado turista sexual o estrangeiro vem ao Brasil com o objetivo específico de encontrar mulheres jovens ou adultas com as quais possa realizar fantasias sexuais. Mas esses homens não procuram profissionais do sexo, e sim garotas ou mulheres que os acompanhem durante sua permanência no país, não apenas atendendo sua expectativa sexual, mas servindo como guias, indicando desde pontos turísticos, até os locais mais seguros para que eles circulem sem que sejam explorados.
Desse modo, o turismo sexual em geral vem acompanhado de outras condições, o que dá ao turista uma temporada no Brasil mais barata (porque não pagam guias turísticos, por exemplo), e livre de problemas (porque se sentem mais seguros).

Quando estudamos o turismo sexual estamos nos referindo a esses casos, que algumas vezes são uma porta aberta para o tráfico de mulheres. A migração feminina se configura como tráfico quando as mulheres são envolvidas emocionalmente para concordarem com sua saída do país e, ao chegarem no exterior, têm seus documentos apreendidos e são impedidas de deixarem os locais em que se encontram, enfim, quando sua liberdade de ir e vir é tolhida e a mulher permanece "presa" a uma pessoa ou a um grupo de pessoas.
Alguns argumentam que o fato da mulher ter decidido livremente deixar seu país não caracteriza o tráfico. Entretanto, ao afirmarem isso, as pessoas não consideram um ponto importante: as circunstâncias em que a mulher concordou. Ou seja, de um modo geral ela desconhece, antes de sair do Brasil, as condições de vida que terá no país de destino e só ao chegar lá se defrontará com a dura realidade, que envolve discriminação, violência e abuso sexual, trabalho ilegal, escravidão, dentre outros. Há ainda um outro fator que também é decisivo nessa decisão: acalentamos o "sonho" de que o casamento com um estrangeiro, as perspectivas de um trabalho e a vida no exterior constituem em excelentes oportunidades para melhorar suas condições de vida. É evidente que esse sonho é alimentado pelo total desconhecimento das reais condições em que se vive como migrante em outro país, em especial em um país desenvolvido.

ComCiência - Como vêm se desenvolvendo as pesquisas sobre relações de gênero e turismo sexual?
Maria José -
Esse não é um tema simples, ao contrário, é bastante complexo, e envolve uma multiplicidade de fatores (culturais, políticos, econômicos, psicossociais, étnicos etc.). No Brasil, este é um tema muito pouco estudado. Entre os principais pesquisadores brasileiros estão Adriana Piscitelli, pesquisadora da Unicamp, que desenvolveu uma pesquisa sobre Fortaleza, e Antônio Jonas Dias Filho, professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), que estudou o turismo sexual em Salvador.

Também o Chame tem produzido textos voltados para o trabalho de sensibilização e para a divulgação da temática em eventos nacionais e internacionais. Em julho de 2001 o Chame publicou o trabalho intitulado "Empresário procura mulher jovem, morena, bonita, liberal... - Explorando os anúncios de estrangeiros" resultado de uma pesquisa desenvolvida por mim, articulando, na análise dos anúncios veiculados por estrangeiros em jornal local, a teoria de gênero e o turismo sexual e a migração feminina internacional, temas envolvidos nesse material. De qualquer modo, não se deve esperar que uma pesquisa possa fornecer números e percentuais exatos acerca do turismo sexual, afinal não existem pessoas que se identifiquem como turistas sexuais, pois essa é uma prática que ocorre à revelia da lei, na clandestinidade.

ComCiência - É possível dizer que o turismo sexual é mais freqüente no litoral?
Maria José -
O turismo sexual no Brasil é realmente muito mais freqüente nas cidades litorâneas. Em parte isso se deve exatamente a uma espécie de pacote turístico que as agências de turismo divulgam e que coloca o conjunto praia, sol e mulheres brasileiras. O corpo seminu da mulher é freqüentemente veiculado nessas propagandas, até mesmo quando estão divulgando o turismo ecológico.
Esse conjunto é a imagem do Brasil que é passada no exterior. Fica claro para o turista que aqui ele vai encontrar sol, mar, comidas exóticas e muitas mulheres à sua disposição. Pensando nas conseqüências dessas propagandas é importante que seu conteúdo seja alterado, porque até mesmo propagandas oficiais trazem esses elementos como um atrativo. É importante frisar que é possível fazer uma propaganda turística exaltando os monumentos históricos, a comida representativa da nossa cultura e a beleza natural das praias, sem utilizar o corpo da mulher, a exemplo do que vemos em propagandas turísticas da maior parte dos países europeus.

ComCiência - De que forma essa imagem da mulher se formou?
Maria José -
Acredito que isso tenha raízes históricas na nossa cultura. Os livros de Jorge Amado, por exemplo, que foram traduzidos em inúmeras línguas, trazem a figura feminina como sendo a mulher "de cama, mesa e banho", à serviço do homem. Essa é a imagem da mulher brasileira que é vendida no exterior. Os estudos de Gilberto Freyre mostram como a mulher, principalmente negra, tinha uma condição diferente. A mulher negra é aquela que estava à disposição do dono da casa e também dos visitantes, transformada em objeto de satisfação dos seus desejos. A mulher branca era a dona da casa, aquela que deveria procriar, era preservada, não ficava exposta às vistas dos visitantes. Tanto que as casas tinham um espaço reservado para as mulheres e não era permitido ao visitante ter acesso a ele. Existe nesses exemplos uma visão sobre a mulher branca e sobre a mulher negra. Essa imagem da mulher negra, fortemente associada a uma função sexual, continua presente hoje e apresenta como alvo central os corpos das mulheres, representados como objetos de desejo, transformados em símbolo nacional. Na realidade do turismo sexual, apesar da preferência evidente pela mulher negra, trata-se da mulher brasileira, seja ela branca ou negra. É uma situação que pode envolver todas as mulheres. Por outro lado, também não considero que o turismo sexual envolva exclusivamente mulheres oriundas de famílias de baixa renda, porque existem muitas mulheres e garotas que sonham namorar estrangeiros, esperando encontrar o "príncipe encantado", aquele que transformará a sua vida, tornando-a "feliz para sempre", em um país "civilizado".

ComCiência - Por onde passa a solução dessa questão?
Maria José -
Essa questão demanda antes de tudo uma mudança de mentalidade, demanda a sensibilização das pessoas para que percebam o que está por trás desses homens que aqui chegam de férias, cheios de gentilezas e dólares, e agora euros, para gastar.
O Chame foi criado a partir da experiência de sua fundadora, a brasileira Jaqueline Leite, no atendimento a migrantes da América Latina no FIZ . Esse centro é uma associação independente, sediada em Zurique/Suíça, que tem por objetivo principal o combate à exploração de mulheres estrangeiras na Suíça, e é mantido por diversas organizações de mulheres, instituições de políticas desenvolvimentistas, centros religiosos e fundos públicos do governo suíço. Anualmente, eles enviam uma estatística do atendimento, mantendo-nos informados sobre o atendimento pessoal, atendimento telefônico, atendimento a mulheres e crianças e os temas dos atendimentos. Essas informações são importantes para avaliarmos não só a demanda como também os principais problemas vividos pelas mulheres migrantes. No ano de 2000, por exemplo, último relatório recebido, o FIZ atendeu a 1797 mulheres, destas, 313 com crianças na Suíça e 279 com crianças em outros países. Entre os temas do atendimento a violência (psíquica, física e sexual) foi relatada por 205 mulheres, separação e divórcio por 135, direitos de estrangeiros, 114, dentre outros.

A criação do Chame visou alertar e prevenir a sociedade para os riscos da exploração da mulher jovem e adulta nas diferentes formas de migração e recrutamento para o trabalho forçado (sexual, doméstico e demais modalidades de escravidão, usualmente relacionadas à violência física e/ou psicológica), respeitando a sua liberdade de escolha.

ComCiência - Em quanto a participação de crianças e adolescentes na prática do turismo sexual?
Maria José -
Quanto ao tema prostituição infantil, ele não faz parte da abordagem do Chame. No que se refere ao envolvimento de meninas com o turismo sexual, é um crime caracterizado na legislação brasileira como pedofilia e os envolvidos nessa prática são devidamente enquadrados na lei. Para tanto, é indispensável a denúncia, para que a polícia instaure o inquérito que apurará os fatos e dê prosseguimento à ação condenatória dos responsáveis. Esta, inclusive, tem sido uma preocupação constante dos órgãos governamentais, no sentido de abolir definitivamente esse tipo de ação, seja ela praticada por estrangeiros ou brasileiros.

No que se refere ao tráfico de mulheres, uma situação que dificulta muito a ação da justiça é a raridade das queixas. Essa situação ficou visível pelo Centro de Referência de Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), que identificou raras ocorrências de denúncia do tráfico. Esse fato não só dificulta a investigação como também, e principalmente, inviabiliza o conhecimento dessa realidade. Entretanto, é de certo modo compreensível essa dificuldade, uma vez que o tráfico de mulheres é ligado a uma rede de poder muito forte e as mulheres são coagidas e intimidadas, sob o risco de vida não só delas como de seus familiares, para se manterem em silêncio. A percepção dessa dificuldade, a partir, inclusive dos resultados da pesquisa do Cecria, tem mobilizado os órgãos governamentais no sentido de propiciar a proteção das testemunhas. Apesar disso, a garantia de direitos no que se refere a essas questões ainda é muito precária em nosso país, e torna necessária uma luta constante da sociedade civil organizada para conseguir avanços.

Atualizado em 10/03/03

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