O
futuro incerto do Museu Aberto do Descobrimento
O
Museu Aberto do Descobrimento (Made), um projeto da Fundação
Quadrilátero do Descobrimento, era uma idéia ambiciosa.
Nele, rios, trilhas naturais, paisagens, povos indígenas tornariam-se
peças expostas em céu aberto ocupando a região
da Costa do Descobrimento. Com isso, o projeto pretendia frear o ritmo
de destruição ambiental e das tradições
populares de uma região que abrange marcos históricos
da chegada dos portugueses no Brasil.
Aprovado
pelo governo federal em 1996 e previsto para estar concluído
em abril do ano passado a idéia, no entanto, não saiu
do papel. O projeto da Fundação Quadrilátero -
que tinha como membros figuras ilustres da música baiana como
Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa - foi alvo de críticas
de muitos pesquisadores e o principal idealizador do projeto, Roberto
Pinho, entrou em atrito com o então ministro Rafael Greca.
Pinho
brigou também com a comunidade acadêmica e com o grupo
dos Outros 500, que questionava as comemorações oficiais.
Segundo ele, a briga deu até processo contra a antropóloga
Celene Fonseca, que considera o projeto do Made colonialista até
no nome (veja box abaixo com declaração
da antropóloga).
Uma
das principais críticas ao Made referia-se à inclusão
em sua área de um território ocupado pelos índios
pataxó (veja texto).
Segundo o antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio,
da Associação Nacional de Ação Indigenista
(ANAI), estava previsto no projeto a construção de um
centro comercial no centro da aldeia pataxó.
Segundo Antônio Augusto Arantes, antropólogo que vem realizando
inventário das tradições culturais da região,
a proposta do Made "se mostrou dissociada da realidade social da
área - e mesmo em alguns aspectos antagônica a ela - e de efetivação
muito problemática em razão de estar superposta a uma série de unidades
jurídico administrativas diferenciadas (municípios, distritos e terras
indígenas) e de áreas de interesse ambiental e patrimonial especialmente
protegidas a nível federal, estadual e municipal. Não obstante essas
dificuldades, a ação de órgãos como o IPHAN, o IBAMA e a FUNAI, numa
tensa interlocução com organizações da sociedade civil (entidades sócio-ambientais,
indigenistas, culturais e científicas) pos em marcha a criação do Made,
como uma realidade distinta da que se tinha inicialmente o propósito
de criar, mas que conservou dela a mesma leitura temática do espaço,
ancorada na referência histórica fundadora". Arantes afirma ainda
que poucas reuniões públicas de discussão do projeto
foram realizadas.
Foi
com o presidente da Fundação Quadrilátero, Roberto
Pinho, que a revista Com Ciência conversou. Segundo ele, a Fundação
ainda existe e muitas idéias do Made ainda podem ser aplicadas.
Com
Ciência - Qual a avaliação que você faz dos fatos que envolveram o Museu
Aberto do Descobrimento (MADE)?
Roberto Pinho - Algumas propostas que estruturavam a idéia do MADE
foram realizadas. No plano institucional houve o decreto do presidente,
que delimitou a área do MADE. Posteriormente, inclusive, essa área foi
ampliada, abrangendo algumas reservas da mata atlântica. Do ponto de
vista físico, acho que algumas obras de infra-estrutura que eram importantes
foram realizadas, porém, não talvez com a adequação necessária.
Com Ciência - Do projeto original do MADE, o que saiu do papel?
Pinho - Saiu a delimitação institucional que está lá.
Com
Ciência - O museu só existe no decreto...
Pinho - Se ele não foi promovido, foi por falta de mobilização.
Não há uma consciência, primeiro, de cidadania, e depois, não há uma
memória histórica fortalecida para as pessoas se apropriarem da idéia
do modo como foi instrumentalizada e operacionalizá-la. Como não há,
ficou no papel. Inicialmente, você chegava lá -- estou falando do ponto
de vista documental, do resgate da informação -- e havia uma disputa
entre os municípios de Porto Seguro e de Cabrália, sobre onde é que
a esquadra de Cabral tinha aportado. Embora seja um dado puramente fatual,
na Nova História tem uma importância relativa, não deixa de ter importância
fundamental, na medida em que é um marco para você ter a descrição etnográfica
correta. Com o MADE essa disputa acabou. Os brasileiros podem dizer
"puxa estou no lugar em que foi descoberto o meu país." Hoje, se você
chega no Centro Histórico de Porto Seguro, tem um diretório - um mapa
- que aponta onde a pessoa está e onde estão os outros pontos históricos
referenciais. Fiquei até feliz outro dia; eu fui lá e tinha uma quantidade
enorme de pessoas, o centro está muito procurado, tinha umas 1500 pessoas.
Isso foi um ganho para a memória brasileira que me deu muita satisfação.
O que eu acho que ficou a desejar é que aquilo era para ser um grande
espaço onde se contasse os vários aspectos da nossa história e que as
instituições se apropriassem do espaço dessa maneira, e que empresas
financiassem exposições permanentes, lugares onde as informações fossem
concentradas através de multimídia, etc. Não se fez. Outra coisa me
entristece: uma grande exposição que fizemos, paga pelo Ministério da
Cultura, percorreu praticamente todas as capitais do país. Tinha 72
painéis, com dimensões gigantescas, painéis de 1,20 por 2 metros de
comprimento, que era a Carta de Caminha e os lugares onde as coisas
aconteceram, para divulgar o conceito do MADE. Fez-se essa exposição,
o Ministério da Cultura pagou e ela teve um grande sucesso. Abriu no
salão negro do Congresso Nacional em 97, depois percorreu várias capitais.
Essa exposição, que deveria estar hoje em Porto Seguro permanentemente,
para as pessoas verem e terem idéia do conceito, internalizá-lo, está
num depósito. Uma exposição cara, abandonada. Foi dinheiro do povo,
do governo.
Com
Ciência - Quando custou?
Pinho - Na época, custou 135 mil reais. Com 72 painéis, a exposição
precisa de uns 400 m2. As prefeituras, o governo baiano, deveriam construir
um pequeno espaço, uma sala de 500 m2, para ter a exposição permanentemente
lá. Essas coisas são assim no Brasil. Isso é um lado triste.
Com
Ciência - Você tem idéia de quanto foi o orçamento para o MADE?
Pinho - Não.
Com Ciência - Mas não foi feito o plano diretor?
Pinho - Foi, por Maria Elisa Costa, excelente plano diretor. Está
na gaveta, nunca foi aplicado. O IBAMA tem cópia, o IPHAN tem cópia,
o Ministério do Meio Ambiente tem, o Ministério da Cultura tem. Mas
é uma empreitada gigantesca, entendeu? Nunca se chegou a fazer um orçamento,
porque o principal era o plano diretor, feito pela Maria Elisa Costa.
A partir do plano diretor, algumas coisas ficaram evidentes. Por exemplo,
"tem que restaurar o Centro Histórico de Porto Seguro". Aquilo foi importante
na inauguração.
Com
Ciência - E a Fundação Quadrilátero, ainda existe?
Pinho - A Fundação Quadrilátero foi criada para institucionalizar
essa idéia. Foi ela quem bancou, quem promoveu e estruturou a idéia.
A partir daí, a Fundação Quadrilátero iria realizar alguns desses projetos.
Ela inclusive acabou sendo uma das principais assessoras da comissão
nacional do V Centenário, aquela ligada ao Ministério das Relações Exteriores.
Essa comissão era presidida pelo Embaixador Lauro Moreira, e o projeto
locomotiva era o projeto do MADE. O Ministério da Cultura ia usar a
Fundação Quadrilátero como um instrumento de longo prazo de realização
do museu. Ocorre que, como você sabe, no meio do caminho houve aquele
tiroteio todo. Entrou o Greca [Rafael Greca, então Ministro dos Esportes
e Turismo], a comissão foi esvaziada, e foi vinculada ao Itamaraty,
que era quem estava fazendo os 500 anos. E os projetos que estavam na
comissão dos 500 anos foram completamente esvaziados. No lugar deles,
uma nau, aquela que afundou não sei quantas vezes, que era mais um projeto
independente, empresarial, que a comissão dos 500 anos acompanhava.
Mas não era o projeto dela. O projeto de maior viabilidade, bem sucedido,
foi a Bienal, a exposição dos 500 anos. Na medida em que o governo do
estado se concentrou nas obras da infra-estrutura na qual a Fundação
Quadrilátero não tinha participação, e por outro lado, o Ministério
da Cultura se concentrou em fazer obras de restauração no Centro Histórico,
a Fundação Quadrilátero ficou meio de lado, porque isso foi praticamente
realizado pelo IPHAN.
Com
Ciência - Mas a Fundação Quadrilátero ainda existe?
Pinho - Existe. Nós estamos tentando reeditar aquele livro que foi
o pontapé inicial, o livro do MADE (veja resenha). Um livro grande,
"Museu Aberto, o Brasil Renasce onde Nasce". Esse livro, que foi a primeira
iniciativa da Fundação Quadrilátero, patrocinada pela FIESP, é que propunha
o Museu. E a partir dele foram realizadas as coisas que eu lhe disse.
Nós hoje estamos tentando reeditar esse livro, porque na verdade os
espaços todos relacionados a essa idéia foram ocupados pela exposição
dos 500 anos. O grande fracasso do dia 22 de abril, de repercussão internacional,
com índio sendo espancado, esvaziou completamente o evento, ninguém
quer ouvir falar em 500 anos, em MADE, em nada. Na verdade, a gente
espera que essa coisa se recupere, que a poeira baixe, e que a gente
possa retomar, a partir da Fundação Quadrilátero, alguns projetos. E
o principal para mim, nesse momento, é que a Fundação Quadrilátero estaria
feliz se alguém aparecesse para tirar aquela exposição dos painéis porão.
Tirar a exposição do depósito e botar ela fixa lá, na área do MADE,
de preferencia em Porto Seguro, construir alguma coisa de 500 m2 para
colocar essa exposição permanente lá. Mas isso aí é coisa polêmica,
por casusa daquela briga do dia 22. Foi invasão, foi descobrimento,
não foi... A coisa foi para esse lado, foi mal conduzida pelo Greca,
entrou para o anedotário nacional, com a nau que não andava, e ficou
meio descartado o MADE.
Com
Ciência - Você acha que o projeto desvirtuou muito da idéia original?
Como está a região hoje? O que você espera para o futuro quanto ao MADE?
Pinho - Sobre o MADE, acho que desvirtuou. Houve uma chance de se
recuperar essa área, do ponto de vista cultural e social. Acho que o
que prevaleceu foi um turismo de massa, turismo de pacotes. E tudo é
visto a partir daí. Ou seja, a ocupação de uso do solo, os equipamentos
que são feitos, a qualidade das coisas, tudo é feito a partir do turismo
de massa. E a grande oportunidade de se tentar um espaço importante
para o Brasil e de se construir ali alguns elementos, equipamentos âncora,
algumas coisas que pudessem funcionar como um pólo onde as pessoas fossem
para se informar, acho que isso se perdeu. Por outro lado, acho que,
a existência dos planos diretores, não só do MADE como um todo, como
das cidades principais - Porto Seguro, Arraial d'Ajuda e Santa Cruz
de Cabrália, vai levar com que ali aconteça o mesmo que aconteceu com
qualquer outra cidade litorânea. Ou seja, uma baixíssima ocupação de
uso do solo, um crescimento acelerado da miséria social. Porque hoje,
Porto Seguro é uma grande favela. Tem um núcleo central, um pequeno
balneário cercado por uma enorme favela. Arraial d'Ajuda, idem. Trancoso,
idem. Acho que se criou uma atração para ali, muitas pessoas correram
até ali com a possibilidade de enriquecer, à medida que prometiam um
pólo turístico para oferecer emprego, etc. E o que a gente vai ter é
o inchaço desses núcleos urbanos que deveriam ter outro tipo de tratamento...
Com
Ciência - Você falou que o que houve foi turismo de massa. A idéia original
era outra?
Pinho - É, a idéia era ter um turismo de massa de qualidade. Em
outros lugares do mundo tem-se turismo de massa. Mas o espaço, o local,
é preparado para conduzir essa massa de uma forma ordenada, ou melhor,
de uma forma planejada. Não é você fazer pacotes, onde o objetivo maior
é tirar o dinheiro do turista e oferecer péssimos serviços. Nesse sentido
é que eu critico os pacotes. Promete-se o paraíso, e na verdade o indivíduo
chega lá, e o que é oferecido a ele são serviços de baixa qualidade,
comidas de baixa qualidade, equipamentos de baixa qualidade.
Celene
Fonseca critica o Made
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"Até
o nome do projeto é equivocado! Foi um tremendo deslize técnico
do Ministério da Cultura (que foi quem formalizou o projeto como
projeto público) e do presidente da República. O termo 'museu
aberto' é normalmnete utilizado para designar sítios arqueológicos
ou grande monumentos da natureza (grutas, etc.) que não podem
ser aprisionados em museus convencionais. Em Porto Seguro não
há nada disso, pois a região passa por um grande boom turístico.
Existem muitos loteamentos na área; inclusive um loteamento milionário
que 23 dias após a criação do 'museu aberto' fez publicidade sobre
o empreendimento dizendo-se ironicamente implantado "no coração
do MADE". Tudo é muito inacreditável. Inclusive o tamanho do dito
museu: 1200 km2, quase do tamnho do município de São Paulo! Consultei
museólogos e eles disseram que nunca viram nada igual. Dentro
do 'museu' se encontra as cidades de Porto Seguro e de Cabrália,
aeroportos, estradas, etc. - parece piada. Isto sem falar que
o projeto era completamente colonialista. A não mais poder! Havia
até Portal do Avistamento da Terra, ou seja, uma tentativa de
materializar a visão de fora, eurocêntrica. O fato é que o governo,
percebendo o mico que ele ia pagar, levou vários anos dissimulando
o recuo em relação ao projeto, para finalmente enterrá-lo. Soube
que do 'museu' resta o nome inscrito em uma placa, salvo engano,
no interior de outro museu na Cidade Histórica de Porto Seguro.
A ele não é feita referência explícita nem na Coroa Vermelha!
Foi a maneira que o governo achou para sair de fininho..."
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Com
Ciência - A antropóloga Celene Fonseca diz, numa matéria
da revista Época, que o projeto do MADE é equivocado desde o nome, que
ela considera colonialista.
Pinho - Isso é um ponto de vista dela, que seria um ponto de vista
interessante de se discutir, essa visão de que é colonialista. Mas infelizmente,
no decorrer do processo, a professora. Celene descambou para uma série
de acusações de caráter pessoal dirigidas a mim, a ponto de me levar
a processá-la criminalmente por calúnia e difamação, e por cujo processo,
infelizmente ela foi condenada a um ano e seis meses. Como ela é réu
primaria, o juiz deu a sentença que converteu em prestação de serviços
junto ao grupo dos aidéticos. A questão da pessoa Celene ficou prejudicada,
porque a discussão dela tinha outras motivações que não acadêmicas.
(veja resposta de Celene
Fonseca)
Com Ciência - O MADE acabava englobando também uma área indígena
grande. Incorporava a aldeia dos índios pataxó?
Pinho - Sim. Englobava o Parque Nacional do Monte Pascoal. E dentro
desse, que era uma discussão de 50 anos, há uma área que ao longo dos
anos vem sendo discutida entre a FUNAI e o IBAMA. A qualidade de vida
dos pataxós da Coroa Vermelha, que é uma outra aldeia, pelo menos a
qualidade espacial urbana é incrivelmente melhor do que era. Estavam
numa favela. Estão feito ambulantes os miseráveis. Hoje, e isso quem
propôs foi o MADE, hoje tem saneamento básico, escola, que não tinham,
tem um shopping com mais de 70 postos de comercialização - o Pataxoping
- e tem o museu da identidade pataxó. Do ponto de vista pataxó, não
há dúvida são eles que administram o parque. Você chega lá, paga na
entrada pra ver essas coisas.
Com Ciência - Então, não haveria nenhuma agressão...
Pinho - Não, criou-se uma receita para eles. Porque na verdade eles
já estavam completamente aculturados.