Mostra
do Redescobrimento: o rico acervo cultural brasileiro
Em
23 de abril de 2000, quando foi
inaugurada oficialmente a Mostra do Redescobrimento Brasil+500,
o público brasileiro pôde ver e sentir de perto o maior painel já produzido
sobre a arte e a memória cultural desde o descobrimento do Brasil. Espalhada
em 60 mil metros quadrados, dentro do Parque do Ibirapuera, em São Paulo,
e dividida em 13 módulos temáticos, a Mostra recebeu, durante 5 meses,
mais de 1,8 milhão de pessoas.
A Mostra do Redescobrimento foi idealizada a partir da proposta,
do crítico Mário Pedrosa, para a criação do Museu das Origens após o
incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978. Esta idéia
inicial foi aprimorada, ampliada e o resultado final, um rico acervo
cultural, só pode ser percebido em sua amplitude quando o trabalho estava
finalizado.
Para os organizadores, a visitação foi considerada extremamente importante,
levando-se em conta que a grande maioria do público presente na exposição
em São Paulo nunca havia ido à uma exposição de arte. Pela sua grandiosidade,
a Mostra completa só pode ser vista em São Paulo, e desde o seu encerramento
nesta cidade, os módulos estão percorrendo separadamente algumas capitais
brasileiras e do exterior. A intensa procura por parte de curadorias
de instituições culturais e membros do governo de outros países, para
expor os módulos temáticos, revela o alcance deste trabalho, que se
concretiza em agendamentos para exposições até 2004.
A Com Ciência entrevistou Nelson Aguilar, historiador e curador-geral
da Mostra do Redescobrimento. Durante a entrevista ele falou sobre a
concepção, a receptividade e as críticas sobre o evento.
Com Ciência - Como foi concebida a mostra?
Nelson Aguilar - Quando o trabalho começou a ser feito, em janeiro
de 1997, a proposta era atuar dentro dos do que havia sido idealizado
por Mário Pedrosa. Após o incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro em 1978, Pedrosa sugeriu que fosse feito um Instituto de Arte
com 4 núcleos: o Museu do Índio, o Museu do Negro, o Museu das Artes
Populares e o Museu de Arte Moderna. Esta idéia ainda não tinha sido
estudada e comecei a trabalhar com ela. A medida que o trabalho foi
sendo desenvolvido, foi possível perceber que a proposta deveria incluir
outros tópicos, por exemplo, ela não contemplava a arqueologia. No meio
deste processo foi descoberto o esqueleto mais antigo das Américas,
a Luzia, e mais uma vez o projeto foi reformulado para contemplar: o
período em que isso ocorreu na história da evolução humana, o aparecimento
da humanidade e a ocupação humana do solo americano. Isso resultou no
módulo temático de arqueologia. O módulo consagrado à visão do estrangeiro
sobre o Brasil surgiu com um projeto de Manoel Araújo. O projeto dele
tinha uma abordagem antropológica do africano no Brasil, do afro-brasileiro
que foi negro copiado. Assim, a exposição que deveria ser feita apenas
no pavilhão da Bienal, acabou se ampliando e exigiu novos espaços para
coadunar o projeto. Houve também a necessidade, no módulo de arqueologia
por exemplo, de mostrar eventos que só poderiam ser exibidos dentro
de um contexto extra-muros. É impossível colocar um sambaqui dentro
do Ibirapuera, ou colocar uma gruta lá do Piauí, do Parque Nacional
da Capivara, ou mesmo, mostrar como funciona uma aldeia indígena. A
partir daí, surgiu a idéia de fazer um vídeo em alta definição para
comunicar ao público o que não poderia ser trazido. Foi utilizado um
novo meio tecnológico, que é a tv de alta definição, para mostrar a
novidade da arqueologia. Isso significa que o remoto só se dá com o
mais contemporâneo ao criar essa ponte. Um círculo onde o mais arcaico
liga-se ao mais contemporâneo despertando o interesse do público. Este
processo de preparação da mostra consumiu aproximadamente 3 anos e 4
meses e exigiu quatro espaços novos, que ao todo somam 60 mil metros
quadrados de exposição. Para se ter uma idéia, esse espaço é maior que
o Metropolitan, de Nova Iorque e sabíamos que nenhuma outra cidade do
Brasil, ou mesmo fora daqui, teria um espaço dessa envergadura. Expor
o conjunto completo só foi possível uma vez em São Paulo.
Com Ciência - Como é feita a escolha dos módulos pelas instituições
interessadas em expô-los?
Aguilar - Nós só trabalhamos em regime de co-curadoria, o que significa
que o lugar que vai abrigar a mostra deve manifestar o interesse em
expor, porque ela é tão grande que pode ser reunida sob vários recortes.
A mostra é um teste projetivo. Por exemplo, a mostra do século XIX brasileiro
é muito difícil de ser mostrada no exterior, uma vez que trata-se da
internacionalização de um determinado academismo que aconteceu em todos
os países. Em Lisboa, já houve exposição de Bispo do Rosário e do Barroco.
Os portugueses escolheram apenas o módulo de arqueologia e da arte do
século XX para ter uma visão orgânica da arte brasileira neste período,
que nunca houve em Portugal. A arte moderna contemporânea brasileira
era um fenômeno de geração espontânea, quer dizer, não sabíamos qual
era a vinculação cultural entre uma geração e outra produzindo arte.
Foi a grande oportunidade para vincular corretamente Volpi e o concretismo
com os artistas dos anos 60 que quebraram o suporte. Portanto, foi possível
visualizar que os artistas não eram bastardos. Tinham pais e avós, dando
uma visão orgânica da arte brasileira.
Com Ciência - Qual é a agenda da Mostra?
Aguilar - A agenda está completa até 2004. Os últimos acordos foram
feitos com a Rússia, Suécia e Alemanha. Na Rússia estaremos presentes
nos festejos de São Petersburgo e também em Moscou. Em Estocolmo, estaremos
presentes em vários museus da cidade. Na Alemanha, haverá um resumo
de todos os módulos da exposição. Vai ser uma espécie de recapitulação
completa da exposição. Isso é resultado da visitação da Mostra do Redescobrimento
em São Paulo, com a presença de autoridades russas, suecas e alemãs.
Essas pessoas nos convidaram para fazer um movimento artístico nesses
lugares.
Com Ciência - Como foi manifestado o interesse pela exposição nos
estados brasileiros e no exterior?
Aguilar - O interesse se manifesta através do governo de cada estado.
Por exemplo, a governadora do Estado do Maranhão interessou-se pela
exposição, assim como os governadores dos Estados do Rio de Janeiro,
Ceará, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul. É necessário, antes de
mais nada, uma instituição cultural que seja adequada para receber a
exposiçãoisto é, que seja climatizada, que tenha segurança, enfim, que
reúna condições para abrigar a mostra, pois o seguro é muito caro. Nesse
momento está em São Luiz do Maranhão.
Com Ciência - Como o senhor analisa a Mostra do Redescobrimento?
Aguilar - Para mim, a Mostra foi uma descoberta pois eu não tinha
um visão desta síntese, nem a imaginava. Quando ela ficou pronta e todas
as pontas foram unidas é que o resultado ficou claro. Acho que nunca
se conheceu arte indígena. Mesmo a idéia do Mário Pedrosa ficou um pouco
restrita, limitada, porque quando se fala Museu do Índio é uma coisa
problemática, pois colocar o índio no museu é como afirmar que ele já
não existisse mais. Para acabar com esse tipo de impressão, convidamos
representantes de 4 etnias para construírem objetos dentro da exposição,
no sentido de estarmos mais próximos de um Centro Cultural do que de
um Museu. Se mostrássemos um Museu seria a desqualificação completa
da contemporaneidade indígena. Até aconteceram coisas muito interessantes.
Eu tenho impressão que houve um despertar de uma consciência nativa
e até reivindicações de heranças indígenas. Por exemplo, o Manto Tupinambá
que esteve na exposição foi reivindicado por uma comunidade baiana de
descendentes tupinambás. Embora seja uma reivindicação um pouco excêntrica,
isso foi maravilhoso, uma vez que o Manto pertence ao Museu Real da
Dinamarca, foi um presente do Príncipe Maurício de Nassau para o seu
irmão. Aliás, se não fossem as coleções européias que conservaram esses
objetos ao longo de todos esses anos não teríamos nada, a química orgânica
tropical é muito brava. A coleção Alexandre Rodrigues Ferreira, que
é o grande naturalista brasileiro e que trabalhou na Academia de Ciências
de Lisboa, foi muito bem conservada pelos portugueses. Além disso nossas
coleções datam da segunda metade do século XIX, então não tínhamos maneiras
de fazer história da arte indígena. Acho que houve várias conquistas.
Por exemplo, nunca os acervos dos hospitais psiquiátricos brasileiros
foram reunidos. Sempre se conhecia o Museu de Imagem do Inconsciente
ou o Museu Lins da Silveira, de Jacarépaguá, no Rio de Janeiro, que
abriga a obra do Bispo do Rosário. Essa reunião foi formando novos sentidos.
Com
Ciência - O que o senhor pode nos dizer em relação ao público que visitou
a Mostra e suas reações?
Aguilar - Mais de 1,8 milhão de pessoas visitaram a Mostra em São
Paulo. No início, como o ingresso era caro, o público foi a classe A.
Depois, o ingresso foi barateado e possibilitou atingir a classe B.
Quando a entrada foi gratuita, a Mostra foi vista pelas classes C e
D, cobrindo assim todo um amplo espectro social, inclusive tendo transporte
gratuito para a população marginalizada. Houve aspectos interessantes
da visita de jovens "psiquiatrizados". Monitores reportaram um comentário
de um jovem que dizia que o seu médico havia corrigido o seu problema
e, que se não fosse isso, ele estaria ali, expondo suas obras. O desdobramento
da exposição não é possível ser alcançado neste sentido. Fazemos apenas
uma parte analítica de montagem. Quando o produto é entregue ao público
as reações são totalmente surpreendentes. O máximo que se pode fazer
é colocar o pessoal de arte e educação para dar um nível de apreciação
correta. Eu aprendi a ouvir o público e não sobrepor um "conhecimento"
à manifestação, à expressão de conhecimento por parte do público.
"Em
Londres, o Museu Britânico se interessou por fazer uma exposição
cujo nome é Amazônia Desconhecida e essa exposição está sendo
produzida totalmente pelo Museu Britânico e curadores brasileiros."
|
Com
Ciência - Qual a representatividade da Mostra no exterior?
Aguilar - Até o momento conhecemos apenas a de Lisboa. Em Santiago
do Chile, a exposição está acontecendo nesse momento e ainda não é possível
analisar a receptividade do público. Mas, é muito curioso como a escolha
do curador foi feita bastante de acordo com o novo socialismo do governo
Lagos. O curador, que também é o diretor do Museu Nacional de Belas
Artes de Santiago, escolheu somente arte patrimonial, como arqueologia,
barroco, artes indígenas e arte popular, no sentido de apresentar uma
arte sem uma assinatura, sem uma autoria, onde o autor é a comunidade.
É muito curioso, pois isso veio fazer justiça a ação de Mário Pedrosa,
quando esteve exilado em Santiago, durante o governo Allende. Nessa
época ele propôs a criação do Museu de La Solidariedad. Quando a exposição
chegou a Santiago, as pessoas puderam estabelecer uma ponte que haviam
perdido entre 1972 e 2001. A exposição foi aberta em fevereiro. Em Londres,
o Museu Britânico se interessou por fazer uma exposição cujo nome é
Amazônia Desconhecida e essa exposição está sendo produzida totalmente
pelo Museu Britânico e curadores brasileiros. Vai ser discutido o problema
da Amazônia como espaço mundial. Em cada lugar a exposição se modifica
completamente sob um novo recorte. A exposição de Lisboa foi feita na
Fundação Calouste Gulbenkian e a curadora escolheu arqueologia no século
XX, o mundo que o português não fez. Isso foi uma idéia muito generosa.
O retorno foi muito importante.
Com Ciência - Como foi a crítica da Mostra?
Aguilar - Nós estamos em fase de aprendizado e a imprensa também
aprendeu com a Mostra. Nas exposições itinerantes brasileiras e internacionais,
a presença indígena é sempre requisitada. A reação dos indígenas em
relação aos festejos dos 500 anos foi muito negativa, a imprensa noticiou
isso com bastante ênfase. Aqui em São Paulo, os índios não realizaram
nenhum protesto e participaram ativamente do evento. Com relação ao
público, que pela primeira vez presenciou uma exposição de arte, os
monitores relataram que essas pessoas diziam que haviam descoberto a
arte com a Mostra e que não deixariam mais a arte de lado.