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"Os índios nada têm a comemorar ou festejar"
Orlando Villas Bôas

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"Os índios nada têm a comemorar ou festejar"

Uma das figuras mais importantes na história do contato entre índios e não índios, Orlando Vilas Boas teve um papel ambíguo nessa relação. Ao mesmo tempo em que sempre manifestou uma sincera preocupação com o bem-estar e com a sobrevivência das populações indígenas Orlando esteve junto de algumas expedições do Marechal Rondon pelo interior país. Essas expedições, que estabelecerem o primeiro contato com muitas populações indígenas, também criaram as rotas que foram usadas por madereiros, garimpeiros e industriais responsáveis por muitas das mazelas vividas pelos índios. A Expedição Roncador-Xingu, lançada em 1943 - da qual Orlando participou ao lado de seus irmãos Cláudio, Leonardo e Álvaro e que foi liderada por Rondon - abriu mais de 2 mil Km de picadas, 36 campos de pouso, 42 vilas e cidades em 42 anos.

Hoje, às vésperas da aprovação do Estatuto das Sociedade Indígenas (veja texto), Villas Bôas demonstra estar inquieto com o futuro dos índios que, segundo ele, nada tiveram a comemorar nos festejos do ano passado. Tendo desenvolvido a maior parte de suas atividades no chamado período da "tutela" das populações indígenas - em que os índios eram tidos como populações que não têm condições de assumir integralmente suas responsabilidades - Villas Bôas afirma que "bom seria se sobre eles chegasse a nossa proteção", Para ele, as populações indígenas "caminham para o fim". Foi sobre esse assunto e sobre como os índios encararam as comemorações dos 500 anos que Orlando Villas Bôas falou à revista Com Ciência.

Com Ciência - Houve alguma mudança na vida dos índios após as comemorações?
Orlando Villas Bôas
-
Não. A situação continua essencialmente a mesma. Não obstante, a atual gestão da FUNAI pareça ter um maior interesse que a desastrada gestão anterior, é possível verificar a continuidade no estado de abandono das aldeias, sobretudo daquelas que se localizam na faixa litorânea ou gravitam à margem de grandes centros urbanos, como é o caso das aldeias do Jaraguá e Parelheiros aqui em São Paulo. Esses são exemplos de uma pseudo-política integracionista que não integra ninguém, apenas desestrutura e exclui. As comemorações do Brasil 500 anos foram para "inglês ver" e, de fato, talvez eles as tenham visto. O índio certamente não viu nada.

Com Ciência - Segundo a organização do evento "Brasil 500 anos", houve uma renda de R$ 4,5 milhões, entre bilheteria e venda de catálogos, de um total de 1.883.872 visitantes somente na cidade de São Paulo. O Sr. foi informado se houve ou há algum projeto para que parte desta renda seja revertida aos indígenas?
Villas Bôas -
O evento "Brasil 500 anos" não atingiu o índio. Ele foi esquecido como esquecido continua sendo. Para boa parte de nossa gente, e isso inclui até nossas autoridades, o índio é ainda uma figura folclórica. Desconheço qualquer projeto que estabeleça a reversão de parte da renda obtida na "comemoração" para as comunidades indígenas.

Com Ciência - Quando o sr. afirma que "os índios, tal como o conhecemos na sua cultura pura, não existirão mais", qual o aspecto mais relevante que o faz pensar assim? Dos 851.196.500 hectares do território brasileiro, as terras reservadas aos indígenas ocupam 104.367.993, ou seja 12,26%. Este número é suficiente? Além de outros fatores, isto influencia de que maneira na expectativa de vida indígena?
Villas Bôas - Os índios caminham para o fim. Bom seria se sobre eles chegasse a nossa proteção. A proteção do Estado e as da gente. Parece que nós não levamos em conta que eles nos deram um continente para que nos tornássemos uma nação. Não creio entretanto que haja apenas um aspecto essencial para isso. Há, isso sim, uma conjunção de aspectos que vão desde o descaso do poder público à sanha de riqueza de vários grupos que tornam o índio como um estorvo, ou como um meio de enriquecimento. Não basta garantir a terra do índio (o que por vezes nem sequer é feito), é preciso resguardá-lo de um contato indiscriminado com pessoas que visam explorar as riquezas dessa terra e de sua cultura.

Com Ciência - Marechal Rondon tinha como ideal em relação aos índios, o lema "Morrer se preciso for, matar nunca", que era seguido à risca por todos os integrantes da Fundação Brasil Central (FBC). Como o sr. vê este lema nos dias de hoje?
Villas Bôas -
Não canso de dizer que vivemos num país sem memória. Não fosse isso, o velho Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon seria considerado por todos como o maior homem do século XX. Foi ele que, já no início da República começou a implantar as linhas telegráficas nas selvas do Planalto Central brasileiro, desbravando nossos sertões e empurrando nossas fronteiras até encostar nos andes. Foi ele também que, muito adiante de seu tempo, criou o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), em 1910. Rondon era um humanista. O lema "morrer se preciso for, matar nunca", apenas expressa o ideal de Rondon no trato com estas gentes. Sua preocupação com os índios foi decisiva na história de nosso país. Nós tivemos o privilégio de conhecê-lo, e dele nos tornarmos amigos em meados da década de quarenta, quando engajávamos na Marcha para o Oeste, que havia sido criada em 1943 por Getúlio Vargas. Lembramos que ainda no início da expedição Roncador-Xingu, a intervenção de Rondon foi decisiva para que os índios Xavantes não fossem massacrados por uma frente militar que iria "limpar o caminho" para a expansão brasileira. Após alertarmos o Marechal a respeito disso, ele mandou que a frente militar fosse suspensa, e foi quando assumimos a vanguarda da Expedição. Rondon influenciou toda uma geração de indigenistas e antropólogos brasileiros, dentre os primeiros incluo a mim, e a meus irmãos Cláudio, Leonardo e Álvaro. Dentre os segundos, destaco sobretudo, Darcy Ribeiro. Hoje Rondon está esquecido e, com ele, toda uma política de trato com os índios que foi se estiolando até descambar no que hoje temos.

Com Ciência - Em uma oportunidade, o senhor disse que após tantos anos vivendo na selva com os índios, de alguma maneira, o sr. se transformou em um deles. Então, será que o sr. poderia dizer qual foi o significado/ou sentimento que as comemorações do Redescobrimento do Brasil gerou nos indígenas? Tiveram motivos ou benefícios para festejar?
Villas Bôas - Em verdade não chegamos a nos "transformar" em índios. Entretanto, o que nos impressionou ao longo do convívio com eles, foi observar uma verdadeira lição de como se deve viver em sociedade. Nunca vimos dois índios discutirem, nem um casal se desentender. Entre os índios, o velho é o dono da história, o homem é o dono da aldeia, e a criança é a dona do mundo. Diante do que vimos, hoje podemos aquilatar o que não devem eles ter sofrido ante uma gente desordenada e, por essa razão, os índios nada têm a comemorar ou festejar.

 

Atualizado em 10/04/01

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